Os direitos sociais são traídos até pela aplicação da lei que os prevê

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08 Junho 2018

"Aqui, os direitos sociais, mesmo aqueles que a Constituição reserva percentual orçamentário próprio de custeio buscando garanti-los, como é o caso da educação - que, em seu artigo 212 prevê, para a União, a reserva de 18% de sua receita tributária e, para os Estados, Distrito Federal e Municipal, 25%, para a sua sustentação - sofrem de disputas geradas por demandas de outros interesses, com poder para fixar na letra o que não vai acontecer no conteúdo", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo. 

Com muita frequência se discute no meio jurídico se um direito, despido de efetiva garantia, constitui realmente direito. A possibilidade de os direitos humanos fundamentais sociais, que refletem condições básicas de uma vida de bem estar para qualquer pessoa - do tipo educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados”, como diz a nossa Constituição em seu artigo 6º - serem garantidos a todas as pessoas, passa por esse debate.

A cada estatística publicada sobre o número de brasileiras/os que, por sua pobreza e até miséria, não conseguem gozar desses direitos, a polêmica toma vulto e as ideologias, cada uma convencida de ser a única de confiança, armam-se de argumentação assumida como insofismável.

É que a eficácia dos direitos sociais, para não iludir como pura ficção, depende de uma administração pública equipada com recursos financeiros suficientes para cobrir as despesas necessárias ao seu custeio, e esses devem ser previstos em lei de orçamento, votada anualmente para isso. A disputa por inserir nesta lei reserva prioritária de aplicação dos recursos públicos para cobrir suas despesas depende da arrecadação de tributos, para posterior partilha do seu montante.

Lembradas obviedades como essas, tudo parece muito simples, mas, tanto a elaboração do orçamento quanto a execução do que ele prevê não convém serem feitas à luz do dia, para alguns grupos de poder econômico influente e poderoso, muito menos à sua revelia. Para esses, às prioridades de aplicação dos recursos públicos o Estado deve obediência preferencial aos seus interesses. Por isso, o custeio da ação do Estado para garantir direitos sociais, no Brasil, sempre sofreu influência contrária de grupos econômicos com poder suficiente para elaborar e executar orçamento público que, por dever de respeito às garantias devidas àqueles direitos, ameace ou infrinja a dita preferência. Os chamados “anões do orçamento”, do nosso passado recente e vergonhoso, deram uma das muitas e tristes provas disso.

Aqui, os direitos sociais, mesmo aqueles que a Constituição reserva percentual orçamentário próprio de custeio buscando garanti-los, como é o caso da educação - que, em seu artigo 212 prevê, para a União, a reserva de 18% de sua receita tributária e, para os Estados, Distrito Federal e Municipal, 25%, para a sua sustentação - sofrem de disputas geradas por demandas de outros interesses, com poder para fixar na letra o que não vai acontecer no conteúdo. Acabando por justificar a crítica contrária ao tipo de manipulação subjacente a tal prática, ironizada sob descrença geral, repetida todos os anos: “todo o orçamento público não passa de ficção”.

Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Tim organizaram uma coletânea de estudos sobre essa realidade com a publicação de um livro, a respeito (“Direitos fundamentais orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008), procurando dar resposta ao tumultuado e confuso ambiente político-jurídico que preside o orçamento público, bem como denunciar as causas pelas quais os direitos fundamentais padecem de garantias para valer, efetivamente. Nesta coletânea, José Reinaldo de Lima Lopes intitulou sua contribuição, sugestivamente, como “Em torno da “reserva do possível”, para demonstrar o que acontece na elaboração e na execução dos orçamentos em visível prejuízo dos direitos humanos fundamentais:

“Como se sabe, algo pode ser dito impossível quando o detentor de tais bens ou recursos não está disposto a cedê-los. Se houver excessiva identificação dos corpos políticos com certos setores sociais, o processo distributivo ou não se realiza ou se realiza segundo o ritmo imposto por uma só das partes. Este é, em última instância, o problema político e institucional grave por trás dos direitos sociais. Como concedê-los se eles são direitos de distribuição? E como distribuir se o funcionamento do Estado, do estado de coisas e dos que detêm recursos e poder no atual estado de coisas não estão dispostos a ceder? Visto que o financiamento dos direitos sociais depende de arranjos orçamentários e estes, em algum grau pelo menos, dependem da capacidade de a autoridade (Estado) extrair recursos da sociedade, e extrair diferencialmente de diferentes grupos, a não cooperação de tais grupos é um direito real, embora não cósmico, a tal distribuição.”

Aí está. Como a pobreza e a miséria, a par da carência econômica, sofre também de fraqueza política para garantir eficácia material dos direitos sociais que devem garantir vida digna para todas/os e não para uma fração de gente com poder para, prioritariamente, “extrair recursos da sociedade”, os direitos sociais terminam por refletir a mesma pobreza e a mesma miséria das/os que, formalmente, são os seus “titulares” (!?).

Dessa forma, para se conservar os privilégios daquela fração, sacrificam-se os direitos humanos fundamentais sociais do restante da população. Em vez de direito, então, a minoria abonada garante em seu exclusivo interesse a confirmação do que não poderia nem ser reconhecido como direito, ou seja, um privi-légio (lei privada) e, assim, não votado nem aplicado sobre todas as pessoas, mas só em favor de algumas.

O pior é que isso não acontece só em matéria de orçamento. O direito moderno, como um todo, está contaminado por essa injustiça. No mesmo ano de 1988, quando nossa Constituição entrou em vigor, a editora Sergio Fabris publicou um livro de autoria de Eduardo Novoa Monreal intitulado “O direito como obstáculo à transformação social”. Se a releitura desse estudo for feita hoje, é surpreendente confirmar-se como o tempo decorrido desde então comprovou repetidamente a crítica deste autor ao direito vigente:

“O Direito, hoje dominante, atua, em nossa vida social, como um verdadeiro freio às transformações sociais que parecem indispensáveis.” {...} “Profuso, até tornar quase impossível seu cabal conhecimento; defeituoso, na forma; vastamente manipulado, nas teorias fundantes e na inspiração de seu conteúdo; avassalado por concepções ideológicas reacionárias, em tudo o que concerne a suas regras de mais efetiva e frequente aplicação, e transformado em instrumento de sacralização de graves distorções do funcionamento social.” (página 175)

Profetizou o que acontece hoje no Brasil. Os “sujeitos de direito” que elaboram, julgam, aplicam, executam nossas leis, têm sido em sua maioria guardas vigilantes da manutenção desse “estado de coisas”. Se as eleições deste ano se confirmarem - até sobre isso pesam dúvidas, tal a confusão reinante neste Estado de exceção - o tempo de aceitação ingênua de qualquer “reserva do possível” para sustentar a ineficácia dos direitos sociais das/os brasileiras/os está no fim. Não bastam as/os candidatas/os assinarem escrituras públicas e promissórias sobre o que farão pelo reconhecimento da existência, da validade e da eficácia desses direitos. Que tratem de provar, por seu passado, se prestaram mesmo algum serviço em sua defesa para garanti-los materialmente.

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