Para além da sustentabilidade: decrescimento demoeconômico com regeneração ecológica

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07 Junho 2018

"A Terra deveria ter o potencial de alcançar um “Equilíbrio Evolucionário”, significando que os solos, os oceanos, as plantas, os animais, a atmosfera, o ciclo da água e o clima da Terra possam interagir de uma forma natural, sem interferência humana. Se estivermos conscientes disso e não interferirmos no Sistema Terrestre os interesses da humanidade podem coincidir com os interesses de todos os seres vivos da Terra. A civilização precisa ser compatível com a reselvagerização do mundo", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 06-06-2018.

Eis o artigo.

O desenvolvimento sustentável virou um oximoro e o tripé da sustentabilidade virou um trilema. A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga do Planeta e, a cada ano, o dia da sobrecarga chega mais cedo. Isto significa que o contínuo crescimento da produção de bens e serviços acontece em detrimento da saúde dos ecossistemas e às custas da perda da biodiversidade. Enquanto a humanidade progride, o meio ambiente regride. Mais desenvolvimento implica menos natureza.

Portanto, o desenvolvimento – que significa o contínuo processo de acumulação de riqueza por parte dos seres humanos – não é um processo ambientalmente sustentável. Pretender enriquecer a humanidade mediante o empobrecimento da natureza é como cortar o galho de uma árvore sentado na ponta. O resultado é um colapso, pois não existe ECOnomia sem ECOlogia. A primeira é um subsistema da segunda, como nos ensina a Economia Ecológica.

Para haver sustentabilidade é preciso um pensamento ecológico holístico. Ou seja, é necessário reconhecer que o ser humano é apenas uma parte da comunidade biótica e que o egoísmo do homo economicus é incompatível com o requisito básico de uma relação altruísta e pacífica entre todos os seres vivos da Terra. Em vez de transformar toda a riqueza do meio ambiente em “valor de troca”, o certo seria reconhecer que a natureza tem valores intrínsecos e princípios que são inegociáveis, como nos ensina a Ecologia Profunda.

A principal característica dos últimos 250 anos foi a exploração desenfreada da natureza. Somente no século XX, a população mundial passou de 1,65 bilhão de habitantes em 1900, para 6 bilhões em 2000, um aumento de quase 4 vezes. Mas o crescimento da economia ocorreu em ritmo bem mais elevado. A emissão de gases de efeito estufa atingiu níveis alarmantes e a concentração de CO2 na atmosfera é a maior em milhões de anos. O consumo per capita de energia aumentou quase 4 vezes, como mostram os gráficos abaixo (Heinberg, 2016).

Mas, o mais grave, é que a destruição da natureza continua em ritmo assustador no século XXI. A promessa do desenvolvimento sustentável e da economia verde se mostraram uma ilusão. A desmaterialização e a descarbonização da economia – promessa da 4ª Revolução Industrial, baseada na Internet, celulares, impressoras 3D, etc. – não aconteceu na prática. A extração global de recursos naturais foi elevada entre 1970 e 2010. Como mostra o “Paradoxo de Jevons”, a maior eficiência energética e a menor intensidade de uso de materiais não elimina o fato da demanda agregada aumentar o uso global dos recursos naturais.

O relatório “Global Material Flows And Resource Productivity” (UNEP, julho de 2016) mostra que a extração de recursos naturais globais aumentou três vezes nos últimos 40 anos. A quantidade de matérias-primas extraídas do seio da natureza subiu de 22 bilhões de toneladas em 1970 para 70 bilhões de toneladas em 2010. O aumento do uso de materiais globais acelerou rapidamente nos anos 2000, com o crescimento das economias emergentes, em especial com o crescimento da China. O crescimento na extração de recursos naturais passou de 7 toneladas per capita em 1970 para 10 toneladas per capita em 2010.

Se a extração de recursos continuar, em 2050, haverá uma população de 9 bilhões de habitantes e uma demanda de 180 bilhões de toneladas de material a cada ano para atender às demandas antrópicas. Esta é a quantidade quase três vezes a situação atual e provavelmente vai aumentar a acidificação dos terrenos e das águas, a eutrofização dos solos do mundo e dos corpos de água, além de aumentar a erosão e aumentar a poluição e as quantidades de resíduos. O mais grave é que, desde 1990, tem havido pouca melhoria na eficiência no uso dos materiais globais. Na verdade, a eficiência começou a declinar por volta do ano 2000. Ou seja, em vez de haver “desacoplamento” (decoupling), a economia internacional está utilizando cada vez mais recursos da natureza per capita e por unidade do PIB. O modelo marrom não recua. As emissões de carbono e de metano continuam em ritmo perigoso.

O crescimento exponencial das atividades humanas resultou na ultrapassagem da capacidade de carga do Planeta. Segundo a Global Footprint Network (2017), a pegada ecológica per capita do mundo, em 1961, era de 2,27 hectares globais (gha) e a biocapacidade per capita do Planeta era de 3,12 gha. Para uma população de 3,1 bilhões de habitantes, o impacto da pegada global do ser humano era de 6,98 bilhões de gha, representando apenas 73% dos 9,53 bilhões de hectares globais da biocapacidade disponível naquele momento. Portanto, havia um superávit ou reserva ecológica na década de 1960. A economia cabia na sustentabilidade da ecologia. Mas com o crescimento da população e do consumo, a reserva ecológica foi sendo reduzida e, a partir de 1970, o superávit se transformou em déficit ambiental. Em 2013, a pegada ecológica per capita do mundo subiu para 2,87 gha e a biocapacidade caiu para 1,71 gha. Para uma população mundial de 7,2 bilhões de habitantes, o déficit ambiental chegou a 68% em 2013. A humanidade está gerando uma dívida ambiental, de tal ordem, que provocará uma falência que não haverá montante monetário capaz de saldar esta dívida.

O capitalismo, que conseguiu produzir uma quantidade tão grande de bens e serviços, não consegue ser ao mesmo tempo economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Diversos estudos mostram que nenhuma indústria seria lucrativa se tivesse de pagar pelo capital natural que utilizam. Desde que a humanidade ultrapassou a capacidade de carga do Planeta, o crescimento da produção tem caminhado para uma situação, definida por economista ecológica Herman Daly, como “crescimento deseconômico”.

Para impedir uma catástrofe é preciso evitar o crescimento econômico quantitativo que extrai volumes crescentes de recursos naturais e gera volumes ainda maiores de resíduos sólidos e poluição do solo, das águas e do ar. Não basta o desacoplamento relativo. A solução passa por uma mudança de paradigma e pelo decrescimento demoeconômico, como forma de reduzir a Pegada Ecológica. E como bem mostra o livro “Enough is Enough” (2010), não basta reduzir a pegada ecológica, também é preciso reduzir o número de pés. O decrescimento da população poderia dar uma grande contribuição para diminuir o impacto negativo sobre o meio ambiente.

Desta forma, a perspectiva do decrescimento demoeconômico é o primeiro passo para o equilíbrio homeostático da economia e do ambiente. Mas é preciso ir além, os seres humanos precisam recuperar grande parte do que foi destruído e reverter a tendência à 6ª extinção em massa das espécies.

Artigo de Daniel Christian Wahl (Beyond Sustainability??—?We are Living in the Century of Regeneration, Resilience, 18/04/2018) mostra que é preciso valorizar o ecossistema e promover uma mudança de paradigma, deixando para trás as atitudes ignorantes e egoístas de destruição do próprio habitat para garantir que os sistemas naturais da Terra possam alcançar sua capacidade ideal de sustentar a vida. Em vez de desenvolvimento sustentável é preciso avançar no desenvolvimento regenerativo.

Para o autor, o termo sustentável foi cooptado e algumas pessoas consideram sua empresa sustentável porque sustentou o crescimento e os lucros por vários anos seguidos. O termo sustentabilidade nos pede para explicar o que estamos tentando sustentar. O termo desenvolvimento regenerativo, por outro lado, traz consigo um objetivo claro de regenerar a saúde e a vitalidade dos ecossistemas. Em um nível básico, a regeneração significa não usar recursos que não podem ser regenerados. Nem usar os recursos mais rapidamente do que eles podem ser regenerados. Desenvolvimento neste contexto é “co-evolução da mutualidade”.

A segunda razão é que é preciso ir além de ser apenas sustentável para realmente regenerar o dano que a humanidade provocou no planeta desde o alvorecer da agricultura, das cidades, dos Estados e dos Impérios.

O diagrama acima mostra a passagem de um sistema degenerativo para um sistema regenerativo. A escrita verde e vermelha acima e abaixo do eixo x se refere ao impacto positivo (verde) e impacto negativo (vermelho). No modelo em que tudo continua na mesma (“business as usual”) o primeiro avanço ocorre quando as práticas se movem para o estágio “Green” (economia verde), que significa fazer um pouco mais do que o usual, ou seja, poluir um pouco menos, usando menos energia de fontes não renováveis, etc. Este é um passo frequentemente denominado “maquiagem verde” (“greenwashing”), mesmo que seja uma necessidade nos diversos passos na jornada para ir além da sustentabilidade.

Na passagem do verde (“Green”) para o sustentável (“sustainable”) se chega ao ponto do impacto neutro, em que as atividades sustentáveis não causam danos adicionais. No entanto, com os enormes prejuízos ambientais causados desde o início da revolução industrial é preciso fazer mais do que simplesmente sustentar uma população humana de mais de 7 bilhões de pessoas e que pode chegar a 11 bilhões até 2100, com um crescimento econômico ainda maior.

Na passagem do estágio sustentável para o restaurativo (“restorative”) ainda é possível utilizar a mentalidade antropocêntrica instrumental que vê o ser humano como a medida de todas as coisas. Essa mentalidade de engenharia para a restauração pode criar projetos que restaurem florestas ou ecossistemas, mas de maneira não sistêmicas e integrativas e, portanto, esses esforços e seus efeitos podem ter vida curta ou resultar em efeitos colaterais inesperados e negativos.

Na passagem do estágio restaurativo (“restorative”) para o reconciliatório (“reconciliatory”) se busca projetos de restauração em grande escala para a adaptação cuidadosa à singularidade biocultural do lugar, podendo gerar sucessos de curto prazo, mas falhar em criar significado suficiente para motivar a transformação de longo prazo.

Na passagem do penúltimo estágio, o reconciliatório (“reconciliatory”), para o último o regenerativo (“regenerative”) o desenvolvimento revela o total potencial ecocêntrico. A reconciliação entre natureza e cultura permitiria reconciliar a jornada evolutiva da vida e iniciando uma nova trilha de atuação de forma regenerativa. Regeneração de ecossistemas em grande escala para reverter o aquecimento global, estabilizar o clima, recuperar a biodiversidade e permitir a transição para uma economia baseada em biomateriais de padrões ecológicos de produção e consumo descentralizados biorregionalmente e orientados para a regeneração social e econômica, a resiliência e a colaboração global na aprendizagem de como viver bem e conjuntamente na mesma nave viva que é a Terra (WAHL, 18/04/2018)

A Terra deveria ter o potencial de alcançar um “Equilíbrio Evolucionário”, significando que os solos, os oceanos, as plantas, os animais, a atmosfera, o ciclo da água e o clima da Terra possam interagir de uma forma natural, sem interferência humana. Se estivermos conscientes disso e não interferirmos no Sistema Terrestre os interesses da humanidade podem coincidir com os interesses de todos os seres vivos da Terra. A civilização precisa ser compatível com a reselvagerização do mundo.

Existe a necessidade de fazer a transição da economia fóssil para a “bioeconomia”, que é uma economia centrada no uso de recursos biológicos renováveis em vez de fontes baseadas em fósseis para produção industrial e de energia sustentável. Abrange várias atividades econômicas desde a agricultura até o setor químico e farmacêutico. Ou seja, é uma economia com base nos recursos renováveis, conhecimento biológico e processos biotecnológicos para estabelecer uma economia de base biológica e, acima de tudo, ecologicamente sustentável, focada na renovabilidade e na neutralidade do carbono.

A greve dos caminhoneiros, de maio de 2018, mostrou como é problemático um país ficar totalmente dependente dos combustíveis fósseis e como o aumento do preço dos combustíveis pode gerar revoltas e protestos. Ainda existem setores da sociedade que defendem a exploração do petróleo como fonte de recursos para financiar o desenvolvimento industrial, educacional e cultural brasileiro. Contudo, depender de um combustível poluidor e que aumenta o aquecimento global é uma estratégia ambientalmente equivocada e insustentável. O correto é apostar no desenvolvimento da energia renovável, produzida de forma democrática e descentralizada, com uma tecnologia própria do século XXI e a geração de empregos verdes. Ao invés das jazidas abissais das profundezas salgadas do pré-sal, o Brasil tem a opção de aproveitar o vento, o sol e a água que são recursos abundantes e que não agravam a situação climática do Brasil e do mundo.

Desta forma, a opção pela descarbonização da economia e pelo decrescimento demoeconômico aliado à bioeconomia e à regeneração ecológica permitiria colocar a humanidade em um espaço seguro no Planeta, possibilitando não somente a sustentabilidade, mas também a recuperação dos danos causados no passado, além de viabilizar a reselvagerização do mundo, para evitar o ecocídio e o colapso ambiental.

Referências:

ALVES, JED. O trilema da sustentabilidade e o decrescimento demoeconômico, 22º Congresso Brasileiro de Economia, BH, 08/09/2017

ALVES, JED. Do antropocentrismo ao mundo ecocêntrico, Ecodebate, 13/06/2012

ALVES, JED. Os oito Princípios da Ecologia Profunda, Ecodebate, 05/06/2017

Daniel Christian Wahl. Beyond Sustainability??—?We are Living in the Century of Regeneration, Resilience, 18/04/2018

MARTINE, G. ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? R. bras. Est. Pop. Rebep, n. 32, v. 3, Rio de Janeiro, 2015 (em português e em inglês)

O’Neill, D.W., Dietz, R., Jones, N. (Editors), Enough is Enough: Ideas for a sustainable economy in a world of finite resources. The report of the Steady State Economy Conference. Center for the Advancement of the Steady State Economy and Economic Justice for All, UK, 2010.

Richard Heinberg. You Can’t Handle the Truth, Resilience, 02/08/2016

UNEP, Global Material Flows And Resource Productivity: Assessment Report for the UNEP International Resource Panel, Jul 2016

Tharanga Yakupitiyage. Dreaming of A New Sustainable Economy, IPS, Apr 20 2018

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