Black Face à brasileira

Sérgio Cardoso e Edney Giovenazzi na novela "A cabana do Pai Tomás", 1969 | Foto: Biblioteca Nacional

21 Novembro 2022

"Sim, a teledramaturgia brasileira fez isso, em pleno auge da luta pelos direitos civis no mundo, na década de 1960: escalar um ator branco para viver um personagem negro e escravo", escreve Marcelo Zanotti, aluno dos cursos de história e jornalismo da UNISINOS e estagiário do IHU.

Eis o artigo. 

A história que tenho para lhes contar hoje, com certeza, não é das mais bonitas, nem das mais conhecidas, mas, com certeza, é uma das histórias mais emblemáticas da televisão brasileira nos seus 72 anos de existência. Muito se ouviu falar do Black face utilizado pelo cinema americano, mas, você sabia que essa prática foi usada também na teledramaturgia brasileira? Pois assim aconteceu em 1969, quando a então jovem TV Globo resolveu adaptar o romance americano “A cabana do Pai Tomás”.

Sim, a teledramaturgia brasileira fez isso, em pleno auge da luta pelos direitos civis no mundo, na década de 1960: escalar um ator branco para viver um personagem negro e escravo. Com direito a maquiagem para escurecer a pele! A novela em questão foi exibida pela TV Globo entre 7 de julho de 1969 e 28 de fevereiro de 1970. A mesma era em preto-e-branco (não existia televisão em cores no Brasil). Foi a sexta novela do horário das sete horas da noite na emissora, com um total de 204 capítulos. A emissora coloca em seu site Memória Globo, um argumento aparentemente decisivo para recorrer a esse lamentável artifício. O patrocinador, no caso a Colgate-Palmolive, teria imposto essa alternativa, apesar da grande disponibilidade de atores afrodescendentes que poderiam perfeitamente interpretar o papel. Uma escolha meio óbvia já naquela época era Milton Gonçalves, o qual, aliás, acabou por participar da novela, porém não no papel título. O conhecido ator Sergio Cardoso, recém chegado da TV Tupi (emissora maior concorrente da Globo naquele momento), assumiu o personagem do escravo Tomás e mais outros dois: Dimitrius e, pasmem, Abraham Lincoln!

Divulgação da novela, estrelada por Ruth de Souza e Sérgio Cardoso | Foto: Biblioteca Nacional

Para viver o personagem negro, Sergio Cardoso além de pintar o rosto e parte do corpo, usava peruca e rolhas no nariz a fim de alterar o formato . Tudo isso gerou uma grande polêmica e um dos primeiros a levantar a questão na imprensa da época foi o também ator, escritor e teatrólogo Plínio Marcos, na coluna diária que escrevia no jornal Última Hora de São Paulo. Em várias oportunidades ele protestou contra esse recurso, o qual, em todos os aspectos, acabava por remeter ao racismo e ao preconceito contra atores negros em nossa televisão.

Abaixo segue trecho de uma das crônicas de Plínio Marcos:

LINCOLN SÓ QUERIA A IGUALDADE DOS HOMENS

COLUNA: NAVALHA NA CARNE – ÚLTIMA HORA, SP, 2/5/1969 – PLINIO MARCOS

“Meus cupinchas, são muitos os pererecos que servem pra provar que nos tempos que correm o homem não é parceiro do homem. Mas o que mais me atucana a cuca é a presepada que o canal 5 [Tevê Globo] está armando. Eles vão montar A Cabana do Pai Tomás em forma de novela. E o Tomás, que é um personagem negro, vai ser vivido por um ator branco. Vão tingir o panaca de preto. Vão deixar uma curriola de bons atores crioulos fazendo papel de esparro. E o branco tingido se badalando de estrelo. O Sérgio Cardoso é o cara que vai se prestar ao triste papel de se pintar de preto pra fazer o Tomás. E vai, na mesma novela, fazer mais dois outros papéis. O de Lincoln e um outro branco. Vai dar seu show. Vai satisfazer sua vaidade. Enquanto Samuel, Dalmo Ferreira, Benê Silva (formado pela Escola de Arte Dramática), Milton Gonçalves, Antônio Pitanga, Carlão Caxambu e tantos outros atores negros, de valor provado, ficam pegando as rebarbas das quebradas da vida.”

Na época, a esses profissionais eram reservados os papéis de cozinheiros, empregados (as) domésticos (as) ou escravos (as). E isso, desde que não fosse o personagem principal! Sergio Cardoso tentou justificar-se, por meio de uma declaração, que tornou-se uma emenda a prejudicar ainda mais o soneto: "Tenho vários amigos de cor que são como meus irmãos; tenho afilhados pretinhos que amo como se fossem meus filhos." Na visão dele, pintar o rosto de negro era apenas fazer a caracterização de um personagem e como algo desafiador para um ator, não uma discriminação racial.

A novela, escrita inicialmente por Hedy Maia, Glória Magadan e Walther Negrão, foi uma adaptação do conhecido romance Uncle Tom's Cabin (traduzido em português como "A Cabana do Pai Tomás") da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852. Ao todo, a novela teve cinco roteiristas, inclusive o próprio Sérgio Cardoso, que deu várias sugestões para o andamento da trama, a qual, ao final, muito longe do livro, assemelhava-se mais a um faroeste, de acordo com o conhecido novelista Walter Negrão, um dos roteiristas.

Ruth de Souza, atriz negra muito competente, que chegou a concorrer a prêmios internacionais por sua atuação e vivia a protagonista, mulher de Pai Tomás, afirmou, em entrevista, que algumas atrizes mostraram-se insatisfeitas por ela ter o seu nome na frente dos créditos da abertura, mesmo tendo papel importante como a mulher de Tomás. Mais uma evidência de como o racismo é algo palpável em nossa sociedade e até mesmo, no meio artístico.

Ruth de Souza e Milton Gonçalves | Foto: Acervo pessoal

A novela não correspondeu às expectativas da emissora, não apenas devido aos contratempos, mas também às dificuldades de assimilação por parte do público, de uma história muito distante de nossa realidade. Além disso, sofreu a concorrência de um grande sucesso da TV Tupi, "Nino Italianinho", que ganhava audiência enorme junto ao público de origem italiana, como a novela anterior "Antônio Maria" (personagem aliás, vivido pelo próprio Sérgio Cardoso) havia obtido junto aos descendentes portugueses. A TV Globo encerrava o ciclo das novelas de época e passou a buscar tramas mais relacionadas à nossa realidade, sobretudo nos textos de Janete Clair e Dias Gomes.

O recurso de escurecer o corpo para representar um personagem, não foi mais utilizado? Em termos! Por exemplo, a atriz Sônia Braga, para viver a Gabriela do romance de Jorge Amado na novela de 1975, recorreu a uma tintura na pele para que parecesse morena e de acordo com a personagem.

Existe um documentário, disponível no YouTube, chamado “A negação do Brasil”, onde histórias como essa são contadas para retratar a trajetória de como o negro é retratado na telenovela. Nele tem depoimento de inúmeros atores e atrizes que fazem parte da história da TV no Brasil retratando casos como o contado aqui nesse artigo. Vale muito a pena ver, pois, apesar de ser um documentário de 2000, fica a pergunta: Será que mudou muita coisa de lá pra cá?

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