A opção Vaticano II. Entrevista com Massimo Faggioli

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07 Agosto 2018

Faggioli durante sua participação no XVIII Simpósio
Internacional IHU. A virada profética de Francisco
Foto: João Vitor Santos - IHU

"Olhando para os escândalos na Igreja de hoje, a tentação é voltar para uma abordagem pré-moderna à questão da reforma, ou seja, puramente em termos de corrupção de indivíduos. Este problema está certamente lá e precisamos enfrentá-lo. Mas não deveria se tornar uma forma de evitar a questão das mudanças estruturais que são necessárias pelo fato de que a Igreja vive em um mundo global e multicultural", diz Massimo Faggioli, em entrevista publicada por The Jesuit Post, 06-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.

Massimo Faggioli é historiador da Igreja, professor da Universidade de Villanova e notável comentarista sobre a vida pública da Igreja.

Segundo ele, "a purificação da Igreja da corrupção e dos abusos não é uma questão partidária, mas a forma como fazemos a purificação diz muito sobre nossa eclesiologia".

Eis a entrevista.

Professor Faggioli, você poderia falar um pouco sobre o cerne de seu trabalho?

Eu fui treinado como historiador da Igreja. Comecei com estudos em patrística para minha graduação e pós-graduação na Universidade de Bolonha no início de 1990. Então mudei meu foco para o Concílio de Trento em minha tese de doutorado defendida em 2002. Depois da minha dissertação, passei a focar o Concílio Vaticano II e sua história, especialmente a teologia das instituições da Igreja, como o episcopado, a diocese, o serviço diplomático, as atividades diplomáticas da Santa Sé, o papado. Nestes 10 anos, me voltei para um aspecto ligeiramente diferente: a história da teologia católica, especialmente a história em curso da recepção do Concílio Vaticano II.

Como a sua mudança para os Estados Unidos afetou seu trabalho?

Afetou muito o meu trabalho. Trabalhar nos EUA tem sido - e ainda é – um grande processo de aprendizado para mim, uma grande descoberta não só linguisticamente, mas também porque o catolicismo americano tem uma história muito diferente da história do italiano e da Europa católica: há um conjunto diferente de questões, uma cronologia diferente e diferentes relações entre a Igreja e outras igrejas e religiões, uma grande diferença de toda a questão da Igreja em relação ao governo e ao estado. Como podemos ver a partir do pontificado de Francisco e de sua recepção nos EUA, a imaginação geopolítica da Igreja Católica nos Estados Unidos é muito diferente da geopolítica da Itália e Vaticano.

Ter vindo para a América tem sido uma grande bênção. Também porque aconteceu num momento muito especial. Estes últimos 10 anos em que estive nos EUA, os primeiros cinco foram com o Papa Bento XVI e nestes últimos cinco anos com Papa Francisco. E então, eu vi essa transição de pontificados do ponto de vista muito particular e que me deu muito que pensar e escrever para aqueles que me acompanham em periódicos acadêmicos, mas também em revistas para um público mais amplo.

O que você acha distintivo sobre a experiência católica nos Estados Unidos?

Devemos lembrar do que vimos no século XX: é o século americano, momento em que o mundo inteiro está centralizado em torno dos Estados Unidos por causa da democracia, dos direitos humanos, do capitalismo e anticomunismo. Esse contexto atraiu um certo catolicismo cuja perspectiva tem uma versão particularmente bem sucedida do catolicismo que, segundo as pessoas seguidoras desta perspectiva, é essencialmente uma religião ocidental. Claro, isso está sendo rediscutido e reavaliado, não apenas à luz de um historiador da Igreja não-europeu, como também se levando em conta a globalização do catolicismo e o surgimento do "Sul global" da Igreja.

O fato que a Igreja Católica nos Estados Unidos é uma Igreja que está enfrentando o secularismo mais vibrante, mais militante e mais resistente do que as igrejas na Europa é verdade. Existe também um risco no presente no sentido de que há a tentação de às vezes pensar que existe uma solução americana e perfeita para questões e problemas católicos – uma solução que pode ser aplicada universalmente.

E eu tento ter precaução contra isso porque há uma história muito particular nos EUA: é uma Igreja católica que tem crescido de uma situação de minoria, no século XIX, para uma lenta mas firme situação nos últimos 100 anos, até se tornar a maior igreja nos Estados Unidos. E isso aconteceu por uma mistura de razões: econômicas, sociológicas, culturais e de migração em curso.

Eu tento em meus escritos, em minhas palestras e em meus cursos também, enfatizar a necessidade de olharmos para os nuances da história católica e dos modelos católicos que queremos aplicar. Não existe um modelo perfeito, especialmente hoje, onde temos católicos preenchendo grandes igrejas na Ásia, na Indonésia, nas Filipinas, na China e na África, claro.

Vejo meu trabalho não como dando fáceis respostas, mas fazendo perguntas que aumentam a complexidade das questões. Eu tento ser um teólogo balizado pela regra da academia, e ao mesmo tempo servir a Igreja. E então o que eu faço também serve como uma contribuição para uma abordagem equilibrada, e, eu diria, pastoral para questões complicadas.

Como surgiu esta dimensão pública da sua vocação como teólogo?

Isso é algo que aconteceu porque me pediram para fazer alguma coisa aqui ou me convidaram para fazer alguma outra coisa lá... Imediatamente depois que deixei a Itália no verão de 2008, comecei a escrever para um jornal italiano de assuntos americanos porque o que estava acontecendo aqui era a campanha e a eleição de Barack Obama, onde a religião jogou um lugar muito importante. É muito complicado para os italianos entenderem como a religião é importante na política americana e por quê.

Eu aprendi isso imensamente por tentar explicar religião e política aos leitores italianos. Li um monte de coisa da história americana e da história religiosa americana. Então no começo eu tentava dizer alguma coisa aos italianos sobre os EUA e aos poucos, depois de alguns anos, fui convidado para escrever ocasionalmente para a revista America e regularmente desde 2015 para Commonweal.

Após a eleição de Francisco, houve a necessidade de explicar aos católicos americanos algo do Vaticano e do catolicismo italiano num momento muito particular, que era da transição do Papa Bento XVI ao Papa Francisco que é argentino mas cuja cultura também é, em parte, italiana. E havia a dimensão inteira da governança do Vaticano e de sua história que precisava de uma nova luz.

Gradualmente fui sendo chamado, no sentido de que me pediram para escrever mais regularmente para um público maior. Nestes três anos, eu tenho escrito muito regularmente para o Commonweal e ao La Croix International. Isto era algo totalmente inesperado, porque eu não tinha ideia que seria algo que hoje é uma parte fundamental do meu trabalho.

Como você viu viu seu papel ou sua ação no Twitter?

Essa é uma pergunta complicada. Entre sua presença on-line e seu perfil acadêmico, existe um equilíbrio muito delicado porque o Twitter pode ser muito destrutivo de relações pessoais e do seu equilíbrio em termos da maneira correta de falar em público. E eu tento muito, muito mesmo não fazer declarações contra uma pessoa em particular.

Um tema que tem sido de grande interesse para você é o 'illiberalismo' católico e a crise de confiança católica na democracia liberal. O que explica o aumento deste catolicismo anti-liberal, e o que está em jogo com isso?

O que explica a ascensão do antiliberalismo católico são razões que são múltiplas e complexas, claro. Mas como um historiador, vejo algumas semelhanças com a ascensão do antiliberalismo católico na Europa na década de 1920, de 1930 e hoje: isso deve nos preocupar muito porque uma das semelhanças é a ideia de que a modernidade e democracia liberal são inerentemente inimigo do cristianismo, do catolicismo, da Igreja e da religião.

Esta cultura antiliberalismo e antimoderna é uma expressão de indignação moral de muitos católicos para com a questão do aborto, a ascensão de uma mentalidade tecnocrática, sobre que tipo de vida se vale a pena viver, vale a pena cuidar e as vidas que podem ser destruídas. Esses são assuntos muito sérios. Mas estou preocupado com a tentativa de dizer que tudo isso acontece por causa do liberalismo: porque historicamente isso não é uma verdade, mas é ideológico.

Porque se olharmos para a história, a investida contra à santidade da vida humana na modernidade é muito visível também em regimes antiliberais ou 'illiberais'. Fascismo, comunismo, regimes autoritários católicos ou cristãos – não tem um registro melhor em relação a proteção dos direitos humanos ou até mesmo do aborto ou da eutanásia.

Acho que esta tentação antiliberal ou tentação 'ilibera'l católica seja a voz de uma minoria, mas é uma minoria também feita de intelectuais que lecionam em universidades importantes. Eles escrevem, são ouvidos, respeitados. Acredito que é simplista a tentativa de igualar a secularização e a tecnocracia com o liberalismo. Eu argumentaria que a tecnocracia e o ódio pela religião, numa visão não-espiritual da pessoa humana, tem funcionado muito bem em sistemas não-liberais, democracias não-liberais, democracias não-constitucionais.

Isso me preocupa por causa da enorme contribuição feita pelos católicos no século XX – contribuição marcada a tinta e também em sangue – para nos fazer entender que para ser testemunha do evangelho, você não precisar ter uma agenda que está tentando tirar a liberdade do ser humano criado à imagem de Deus.

Isso é algo que se tornou mais evidente nestes últimos anos porque o que vemos agora neste caos global é a evidente crise e o colapso da globalização. Vivemos numa época de destruição que é social, econômica, política e constitucional. E tenho muito medo que alguns católicos possam ser tentados a dizer, "Bem, temos leis de aborto. Temos este desrespeito pela vida humana e isso é por causa do que aconteceu nestas últimas décadas. Então vamos voltar a década de 1930 ou de 1920, ou do século XIX e não teremos mais abortos". Acho que isso é ingênuo ou hipócrita e muito perigoso.

Também porque este argumento antiliberal de deveríamos limitarmos nossa ideia de liberdade tem um certo peso para, por exemplo, os católicos americanos que se revoltam contra o abuso das liberdades individuais. Mas se você falar com os cristãos que vivem em países onde nunca apreciaram um sistema de direito constitucional, que olham para você como se fosse louco, a ausência de uma cultura de direitos protegidos pela Constituição significa para eles não ter liberdade religiosa, por exemplo.

Então, se levamos a sério a natureza global do catolicismo, nós não podemos ficar tão tranquilos em relação a importância da ideia de liberdade para a Igreja Católica – que claramente não é a mesma ideia de liberdade que tem a cultura liberal americana. A liberdade é um negócio complicado, porque pode ser perigoso, é claro. Mas vejo que é um momento muito perigoso para os católicos quando eles tentam argumentar pelo antiliberalismo, porque pode ser excitante dizer, "Vamos derrubar o sistema onde os liberais comemoram quando marcam uma vitória contra os cristãos com relação ao aborto".

Eu entendo a raiva da cultura pró-vida, mas estou profundamente cético com a ideia de que um regime antiliberal seria mais amigável às questões sobre as quais eles se preocupam profundamente – que eu me preocupo profundamente. Acho que é muito ingênuo e historicamente falso pensar isso. Além de tudo, se os católicos querem ser contraculturais, não existe nada mais contracultural hoje do que defender a democracia constitucional que protege os direitos e a liberdade da pessoa humana, especialmente as minorias religiosas. Olhe o mundo onde homens fortes estão no comando: Rússia, China, Índia, Filipinas e EUA. As regras e o ethos da democracia constitucional não são muito populares hoje. E todos esses homens fortes não estão fazendo o que estão fazendo porque gostam de religião ou são contra o aborto. Eles fazem isso em função de um conjunto diferente de problemas.

Existe uma responsabilidade dos católicos em reforçar a ordem liberal? Com que recursos eles fariam isso?

A parte construtiva é dizer que existe um fundo, há um núcleo de ideias católicas que podemos realmente usar a apontar para rediscutir o que a democracia é, o que é democracia constitucional. Então, nós precisamos desse debate. Não estou dizendo que está tudo bem com o nosso sistema. Pelo contrário – veja a desigualdade social e econômica na América, mas não só isso.

Há um patrimônio de ideias e de experiências dos católicos que acredito que ainda é válido. O fato é que existem algumas ideias católicas sobre a economia, por exemplo, que são muito impopulares, mesmo com aqueles que defendem uma ordem pós-evangélica. Então, eles tendem a ser muito inflexíveis no fato de que a alguns aspectos da ordem liberal são contra a respeito da vida humana, e eu concordo totalmente. Mas eles não estão tão interessados em considerar o que doutrina social católica diz – por exemplo, sobre guerra, tributação progressiva, ou armas ou sindicatos dos trabalhadores.

Então, eu acho que não é viável transpor imediatamente a doutrina social numa plataforma política ou num partido político. Meu trabalho é nos lembrar que temos um corpo de ensinamento que é católico e que é compatível com a democracia constitucional. Na verdade, alguns estudiosos que defendem ideias fundamentais da democracia constitucional são uma expressão da doutrina social católica no século XX. Por outro lado, o catolicismo não é um quadro liberal. Existem algumas diferenças com o quadro liberal, mas ao mesmo tempo, o catolicismo não é simplesmente a negação do liberalismo. Aqui se chega na redução e simplificação americana em que tudo é ou liberal ou antiliberal e o elemento católico se perde no meio disso.

Você fala na introdução de seu livro “Catholicism and Citizenship” (Catolicismo e Cidadania, em português) sobre o que eu acho que quer dizer que é uma falha na dessacralização da política: "até agora, a dessacralização da política não significa tomar distância da idolatria das ideologias e das identidades. Pelo contrário, a sacralização da política hoje traduz a perda do sentido de um compromisso mútuo para com os outros."

Acho que já vimos estas últimas décadas não só uma secularização da religião, mas também uma secularização desse vínculo sagrado que era a política como um compromisso para com o outro. Por isso me preocupa quando vejo a teologia sendo usada de forma antiliberal, ou de forma liberal, porque o que nós precisamos é de uma nova teologia da democracia: não no sentido de que a verdade é encontrada pela votação, mas de democracia no sentido de que somos responsáveis uns pelos outros e que existem instituições que nos mantém juntos, além de um sistema constitucional que é o melhor que temos no momento para manter essa coisa funcionando.

Francisco não está defendendo como um lobista um determinado grupo de pessoas, uma Igreja particular. Ele está dizendo que estamos nisto juntos. Seu discurso no Sínodo de 2015 é magistral, porque ele diz que a Igreja Católica tem de dar um exemplo sobre como governar o nosso mundo numa época onde as decisões são feitas mais por pequenos grupos de poucos selecionados que agem ignorando a voz do povo. Francisco tem captado exatamente qual é o problema globalmente, politicamente e teologicamente. Francisco não é um teólogo liberal. Mas ele entende que há uma maneira de ser Igreja e uma verdadeira teologia que pode dar uma resposta ao que está acontecendo.

Você recentemente tuitou: "Entre outras coisas, o abuso sexual clerical ampara o discurso católico de reforma da Igreja: até recentemente estávamos convencidos de que o problema era principalmente o atraso institucional em lidar com novos problemas e não mais o problema da profunda corrupção dos indivíduos." Qual é a natureza deste contratempo, e como isso pode ser superado?

Em um dos clássicos da eclesiologia Católica, “True and False Reform in the Church” (Verdadeira e Falsa Reforma na Igreja, em português), o mais importante teólogo do Concílio Vaticano II, Yves Congar, O.P., escreveu que a Igreja tinha que enfrentar o problema da reforma, não em termos de corrupção ou de abusos, mas principalmente em termos do atraso das instituições eclesiásticas em lidar com a necessidade de atualizar a sua estrutura e práticas tendo em conta as mudanças no contexto social, cultural e político. Em 1950, o ano da primeira edição do livro, Congar assumiu que o problema da corrupção moral da Igreja não era mais o mais importante. Agora, se olharmos para a situação e especialmente o abuso sexual clerical e os escândalos financeiros, vemos a diferença entre o mundo de Congar e o nosso. Olhando para os escândalos na Igreja de hoje, a tentação é voltar para uma abordagem pré-moderna à questão da reforma, ou seja, puramente em termos de corrupção de indivíduos. Este problema está certamente lá e precisamos enfrentá-lo. Mas não deveria se tornar uma forma de evitar a questão das mudanças estruturais que são necessárias pelo fato de que a Igreja vive em um mundo global e multicultural. A purificação da Igreja da corrupção e dos abusos não é uma questão partidária, mas a forma como fazemos a purificação diz muito sobre nossa eclesiologia.

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