Para tradutora e escritora, a obra e os pensamentos de Virginia Woolf ressaltam a experiência humana e a vontade de viver mesmo em tempos sombrios
Toda obra de arte está inserida no momento histórico em que foi criada. Esse pressuposto se acentua ainda mais quando avaliamos os escritos de Virginia Woolf, autora britânica expoente do modernismo na literatura do século XX. O mundo onde Virginia nasceu e cresceu estava em ruínas: o novo século deteriorou as concepções do período anterior a partir da eclosão de guerras e de uma revolução no pensamento com base nas teorias de Freud, Einstein e Nietzsche. Como representar a realidade desse mundo usando como meio as palavras? A resposta está na busca, no caminho.
É nesse sentido que o modernismo busca “uma certa irreverência, esse foco na linguagem e que ela dê conta dessa realidade caótica pós-primeira guerra”, afirma Ana Carolina Mesquita, doutora em Teoria Literária, tradutora e editora, em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Nessa efervescência artística do começo do século XX surgem nomes como Pablo Picasso, Salvador Dalí, James Joyce, William Faulkner e, claro, Virginia Woolf. Sua diferença para os demais está em um estilo muito particular de escrever, representar a realidade e o pensamento humano. “Ela consegue fazer o que se convencionou chamar de ‘fluxo de consciência’, mas no caso dela não era exatamente fluxo de consciência [...] porque ela salta entre consciências fazendo ligações entre elas, o que ela chama de ‘ligações subterrâneas’. É como se, em uma cena, o pensamento saltasse, sem aviso, de uma para outra personagem, e os pensamentos ecoassem uns aos outros, criando uma espécie de identidade coletiva, um senso histórico de consciência coletiva [...] jogando por terra as preconcepções do que significa ser uma pessoa, ter uma identidade, o que é uma consciência”, pontua.
Sua obra e seus pensamentos seguem atuais até hoje. Há uma vontade de viver que exala de todos os seus livros; embora alguns temas e assuntos possam ser tristes, no fim a experiência de estar vivo se sobressai. “É possível perceber na literatura dela uma imensa vontade de vida, uma imensa crença na vida enquanto experiência sublime e maravilhosa. Esse abraçar da experiência humana, abraçar o milagre de estar vivo, essa experiência maior... isso é o que vale a pena, isso é o que está na obra dela do início ao fim”, comenta.
Ana Carolina Mesquita | Foto: Arquivo Pessoal
Ana Carolina Mesquita é tradutora e escritora. Doutora em Letras pela USP, sua tese envolveu a análise e a tradução dos diários completos de Virginia Woolf, tendo sido para isso pesquisadora visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e trabalhado com os originais de Woolf na Berg Collection, também em Nova York.
De Woolf, traduziu Um esboço do passado, os volumes 1, 2 e 3 dos Diários (4 e 5 estão no prelo), o Diário de Asheham, os ensaios Pensamentos de paz durante um ataque aéreo, Sobre estar doente (cotradução com Maria Rita Drumond Viana) e A morte da mariposa, os contos “Mrs. Dalloway em Bond Street”, “A Apresentação”, “O Vestido Novo” e “Juntos e Separados”, todos pela editora Nós. Ana leciona na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU – Para começar, o que Virginia Woolf representa para o modernismo na literatura?
Ana Carolina Mesquita – São diferentes tipos de modernismo, com suas particularidades cronológicas. As mulheres modernistas têm projetos distintos dos homens modernistas. Quando pensamos em modernismo na língua inglesa, pensamos em William Faulkner nos Estados; no Império Britânico em James Joyce. Os dois autores são diferentes da Virginia.
Eu acredito que ela tenha uma diferença na linguagem: primeiro porque ela não é explosiva como Joyce. A grande inovação da Virginia não é fazer novos vocábulos ou mesmo de ter uma representação da consciência, o processo da consciência por meio do vocábulo. Ela tenta emular o processo da consciência na forma narrativa, mas ela mantém coerências. Não é completamente explosivo como é o caso do Joyce.
Outra particularidade dela no modernismo é que seu papel não se resumiu, de forma alguma, a sua atividade como artista. A Virginia foi importante para divulgar e publicar autores modernistas. Ela tinha uma editora, a Hogarth Press, e essa editora foi um polo de descoberta e promoção de autores que talvez não encontrassem vazão no mercado. Ela publicou T.S Elliot, Hope Mirrlees... Sua casa e a editora foram grandes polos aglutinadores dos pensadores, intelectuais, escritores e pintores modernistas. Woolf tem essa importância que vai além da relevância da sua própria obra.
Falando da sua obra, ela consegue um feito que, em minha opinião, é muito particular porque não vejo outros autores atingirem isso como ela. Ela consegue fazer o que se convencionou chamar de “fluxo de consciência”, mas no caso dela não era exatamente fluxo de consciência – isso seria o que James Joyce e William Faulkner fizeram – porque ela salta entre consciências fazendo ligações entre elas, o que ela chama de “ligações subterrâneas”. É como se, em uma cena, o pensamento saltasse, sem aviso, de uma para outra personagem, e os pensamentos ecoassem uns aos outros, criando uma espécie de identidade coletiva, um senso histórico de consciência coletiva. E, com isso, jogando por terra as preconcepções do que significa ser uma pessoa, ter uma identidade, o que é uma consciência. Isso foi uma mudança que não se vê em outros autores nem antes nem depois, da forma como ela fez ao juntar histórias coletivas a partir de histórias individuais não apenas no discurso, mas na própria forma narrativa.
IHU – O título da sua tese doutoral é “O Diário de Tavistock: Virginia Woolf e a busca pela literatura”. Chama a atenção a frase “busca pela literatura”. O que seria essa busca?
Ana Carolina Mesquita – A cada obra ela busca quebrar o molde da anterior. Ou seja, ela fazia e tentava algo novo, era uma inquietação da representação, de como representar o que ela iria falar. Ela sentia que o realismo vitoriano não dava conta de expressar a realidade como ela via. Para ela, a representação do discurso indireto livre é uma forma de dar conta da experiência humana como ela é. Nosso pensamento vagueia: você tem pensamentos sublimes ao lado de outro banal; você pensa algo filosófico sobre a vida e a morte e, ao mesmo tempo, está pensando na lista do supermercado, em buscar seu filho na escola... Nós somos isso. É isso que a motivava, não simplesmente um ensejo estético para ser vanguardista. Existe uma motivação muito clara ali e ela nunca sentia que tinha alcançado seu objetivo.
Então a cada obra ela tentava de um jeito diferente. Por exemplo, em As ondas, as personagens estão praticamente misturadas e muitas vezes é difícil discernir quem está falando porque ela leva ao extremo essa atividade de um ecoar o outro e de como nós, seres humanos, temos muito uns dos outros em nós mesmos. Existe algo que nos une, é quase algo místico essa visão da Virginia. Ela chama de um “momento de ser”, e esse momento é sempre violento. É quando ela fala que nós somos como embarcações em uma mesma água, embarcações separadas... em algum momento essa embarcação quebra e a água entra em nosso casco e nesse momento você tem uma junção com toda experiência dessa água comum, onde navegamos. Nos tornamos um pouco uns aos outros e tomamos consciência dessa não separação.
Essa busca pela literatura é uma constante. No meio de uma obra que parece tão inconstante, que ora você tem um livro como As ondas, ora como Um teto todo seu, mais ensaios, cartas... Dá para perceber que existe essa linha condutora de uma busca do literário, o que é representar, o que é fazer literatura, como posso fazer isso se toda representação será artificial, se não será aquilo que eu sinto, mas sempre mediada pela forma e pela linguagem.
IHU – Imagino que a tradução dos diários da Virginia Woolf deve ter sido uma tarefa intensa. Como foi embarcar nos pensamentos da autora?
Ana Carolina Mesquita – A tradução dos diários dela foi uma das mais difíceis e desafiadoras que eu já fiz porque é uma tradução que não se resume apenas aquela obra. Ela usava os diários não como uma coisa confessional, mas como um hub onde ela aglutinava ideias de outras obras. Exigiu uma pesquisa muito grande: ler toda obra dela e saber de muitas coisas diferentes da época porque as referências são muito veladas.
Foi muito interessante e impactante do ponto de vista pessoal porque foi a obra que me fez ver a Virginia como uma pessoa. Pode parecer estranho, mas quando comecei a tradução tinha uma ideia mais distanciada de pesquisadora no sentido de “esse é o meu objeto, vou estudar essa autora”, com ideias mais ou menos formadas, imaginando o que desejava buscar. Mesmo na abordagem de tradução – quando comecei eu já trabalhava na área editorial há mais de 15 anos com uma carreira consolidada –, o que foi muito modificador foi perceber que aquilo tinha sido escrito por uma pessoa e isso se deu quando consegui ter acesso aos manuscritos e quando pude ver a caneta correr; as marcas de borrão, que podiam ser de lágrimas, de tinta; quando eu vi as páginas coladas umas nas outras com reescrita, modificação; ou mesmo o esmero de ela mesma encadernar os diários.
Isso mudou tudo tanto que eu joguei fora tudo que tinha feito até ter acesso aos arquivos e recomecei toda minha tradução porque consegui ouvir a voz da Virginia. Isso aconteceu com ela. Eu nunca tinha tido nenhuma experiência semelhante, então foi mais do que mergulhar nos pensamentos dela: foi ter contato com o corpo da obra; eu tive corpo a corpo com a obra. Foi menos um mergulho, e mais uma coisa corpórea, física, de contato com alguém que existiu antes de mim, não simplesmente uma autora, um conjunto de vanguardas, mas uma pessoa que existiu com suas fragilidades, vulnerabilidades, sua genialidade.
IHU – Como o pensamento e os escritos da autora podem nos ajudar a entender, perceber e trazer alento para um mundo que está em tamanho sofrimento com a guerra em Gaza, na Ucrânia, com o aquecimento global e demais problemas atuais?
Ana Carolina Mesquita – Essa é a grande pergunta da literatura. A literatura é sobre como ser humano quando se está vivo. É disso que trata a literatura. E nós sempre interpretamos os acontecimentos da nossa época como sendo aqueles mais pungentes ou mais terríveis. Tudo isso relatado: aquecimento global, guerras, conflitos, a ascensão da extrema-direita, são terríveis, mas a gente não pode esquecer que, no caso da Woolf, ela atravessou duas grandes guerras mundiais. A ascensão do nazismo, a ascensão do fascismo, a possibilidade de Hitler ganhar a guerra. Isso foi muito importante. Um dos fatores que a levou a tirar a própria vida foi essa crença de que Hitler invadiria a Inglaterra a qualquer momento.
Fala-se do suicídio como uma fraqueza da Woolf, mas não podemos esquecer que, por exemplo, Walter Benjamin tirou a vida também pelo mesmo motivo. São duas pessoas melancólicas, duas pessoas com suas questões psíquicas em um momento muito difícil. O próprio Leonard Woolf, judeu, marido da Virginia e uma pessoa pragmática, havia combinado com a esposa que os dois iriam se matar juntos caso o Hitler realmente invadisse a Inglaterra porque eles sabiam que eles estavam na lista e que seriam mandados para um campo de concentração.
Como parte da intelectualidade da época, eles não sabiam detalhes do que estava acontecendo em campos de concentração e de extermínio, mas sabiam da extensão da destruição e que havia algo terrível ocorrendo. Ela atravessou tudo isso e, ao mesmo tempo, é possível perceber na literatura dela uma imensa vontade de vida, uma imensa crença na vida enquanto experiência sublime e maravilhosa. Esse abraçar da experiência humana, abraçar o milagre de estar vivo, essa experiência maior... isso é o que vale a pena, isso é o que está na obra dela do início ao fim.
Mesmo quando ela trata de temas muito difíceis e muito tristes como a morte, por exemplo em Ao farol, não é a morte só das pessoas, mas é a morte de uma época, a morte de modo de vida. Lily Briscoe, personagem que finaliza o romance, é uma artista plástica e ela termina sua obra de arte e confia nesse poder da arte de libertar, esse poder da arte de seguir. Não é com uma nota de tristeza que esse romance termina.
Há também o ensaio A morte da mariposa, que é essa grande resistência da pequeneza da vida, da pequeneza de uma mariposa diante de exércitos hitlerianos. E que a pequeneza dessa mariposa, dançando em uma vidraça de uma janela, é o que vale a pena. Isso a gente vê na obra dela do início ao fim, e é isso que vai fazer nos sustentar a ir em frente, em lutar contra as adversidades, em ter esperança de se levantar amanhã.
Podem dizer “nossa, ela se suicidou”. Sim, ela tinha suas próprias questões e estava em um momento difícil. Quando ela sente não ter mais forças, é o momento que ela resolve sair de cena. Um grande erro que ocorre é essa tendência de ver essas artistas suicidas como tendo fracassado, falhado e desistido. Não é esse o caso. Cesare Pavese tirou a própria vida e não vemos ninguém falar sobre este fato, não tem essa marca em cima da sua obra como algo pessimista e de desistência. Pelo contrário, a obra da Virginia não tem nada de pessimista e de desistência. Tem, sim, um reconhecimento das dificuldades, das tristezas, dos horrores, mas sempre em contraponto com essa experiência maravilhosa de estar vivo, de estar no mundo e é isso o que podemos tirar da obra dela – e é isso o que faz tantas pessoas continuarem a ler Woolf nestes momentos sombrios que vivemos. Porque ela pega em nossa mão e nos dá esse alento.
Além disso, duas reflexões me vêm à mente principalmente nesse momento do mundo com a ascensão da extrema-direita, desse nazifascismo: a primeira foi que ela conseguiu articular, talvez de uma forma que ninguém tinha feito até então, a violência que acontece dentro de casa, no microuniverso do lar, especialmente contra as mulheres, com a situação política macro. Ela articula como essa violência feita dentro de casa, com a subordinação de uns pelos outros, no caso de mulheres pelos homens com o cerceamento de liberdades, de ser, gera macropolíticas de enaltecimento à violência física, ao patriotismo como se fossem impulsos do ser humano, mas que, na verdade, não seriam impulsos das mulheres.
Dentro dessa linha, um pensamento que ela exprime, de maneira magnifica no livro Pensamentos de paz durante um ataque aéreo, é que os “Hitlers” são engendrados por escravas, voltando a essa ideia de dominação doméstica. Mas ela também fala que as mulheres têm um papel nisso: elas perpetuam o machismo e as estruturas a partir do momento em que naturalizam essa estrutura e, por exemplo, efetuam uma separação daquilo que a mãe exige de uma menina que não exige de um menino. A menina tira a mesa, o menino se levanta, deixa seu prato e vai cuidar dos seus afazeres mais importantes. A menina não, ela precisa ter esse cuidado com a casa.
É possível ver isso na política de hoje, quando há mulheres sendo contra o feminismo como se ele fosse uma ameaça a esse papel tradicional da mulher, porque não interessa à macropolítica que haja uma mudança efetiva, tanto que as mudanças são conquistadas com muita luta. Não podemos esquecer que o movimento sufragista teve muitas mulheres sendo mortas, presas e ainda hoje, com os movimentos de igualdade de gênero, não podemos esquecer esse retrocesso com a política antiaborto.
Tudo isso reflete esse tipo de domínio subjacente que continua vivo, e a Virginia denuncia isso nos seus ensaios. Isto tudo, infelizmente, continua muito atual.
IHU – Como o modernismo britânico, encarnado na figura da Woolf, difere do modernismo em outros países, especialmente no Brasil?
Ana Carolina Mesquita – Eles têm pontos em comum, independentemente de onde tenham acontecido porque eles se situam nesse recorte histórico do começo do século XX. Outro ponto em comum é uma certa irreverência, esse foco na linguagem e que ela dê conta dessa realidade caótica pós-Primeira Guerra. Ao mesmo tempo que existe um desejo de criar formas, de quebrar moldes, de ter uma liberdade criativa, também existe, tanto no modernismo brasileiro quanto no modernismo de língua inglesa, um resgate da tradição. Por exemplo, T.S Eliot escreve Tradição e talento individual. É importante esse diálogo com a tradição para o modernismo.
Nós vemos os nossos modernistas daqui, como Oswald de Andrade e o Mario de Andrade, fazendo isso. No Brasil, houve também um resgate da tradição popular. É possível ver o desejo de emular a linguagem popular como em Guimarães Rosa. Há um certo espírito de ironia, de comicidade, que tem a ver com essa irreverência, essa valorização extrema do experimento que responde a esse mundo que já não é mais aquele ordenado do século XIX; a partir do fim do século XIX, o mundo como eles conhecem cai por água abaixo. Tudo se modifica com Nietzsche, Freud, Darwin, Einstein, as guerras... A forma de pensar o mundo mudou e, consequentemente, a expressão artística também.
Percebemos a simultaneidade no modernismo britânico, principalmente na figura da Virginia Woolf. Essa preocupação em como retratar essa época que, ao mesmo tempo, é da memória, da simultaneidade, da velocidade... O trafegar humano já não é pelo cavalo, é pelos trens; a escrita é feita na máquina. E como isso tudo afeta nossa percepção até por conta das imagens em movimento, que depois vem mais forte com o cinema. É uma grande explosão que traz isso tudo. Não é uma irreverência pela irreverência, ou um experimentalismo pelo experimentalismo. É um movimento que responde ao seu tempo. Esse período é da efervescência, mas depois há outras propostas no mundo, principalmente no pós-Segunda Guerra, o que não corresponde mais ao período modernista.
IHU – Dizem que a literatura está em crise, principalmente a clássica. Você enxerga essa crise na sociedade contemporânea?
Ana Carolina Mesquita – Não vejo essa crise. Inclusive vejo uma proliferação de clubes de literatura, serviços com a TAG Livros e outros que a pessoa assina e recebe os livros em casa. Meus alunos mais jovens leem autores que só fui conhecer mais tarde, como Jane Austen, Machado de Assis. Vejo que a literatura ainda tem muita força hoje.
Essa “crise da literatura” acredito que seja natural depois do advento de outros tipos de representação para narrativa, como o cinema e a televisão, que são “grandes rivais” da literatura desde o século XX. A particularidade da literatura é que ela exige tempo. Não é possível consumir um romance ou uma novela em um dia. Isso demora dependendo da nossa disponibilidade de tempo, da dificuldade do livro. É um compromisso mais longo e que, muitas vezes, nos pede mais. E estamos em um momento histórico onde queremos coisas rápidas, nossa atenção não é mais a mesma, salta rapidamente entre coisas.
Mas não vejo isso como uma crise da literatura; vejo mais como uma competição que a literatura perde, mas não por causa dela, mas por causa desses comprometimentos. Ao mesmo tempo, vejo muitos jovens interessados em literatura, vejo ela chegando a lugares que não chegava. Quero lembrar que a literatura também é oral, também são as histórias contadas na fogueira, quando falta luz, ou as histórias das famílias, os contos de fadas, mitos... Isso tudo é literatura. Não é só o livro que você compra e consome.
A literatura continua muito viva se pensarmos deste ponto de vista que não somente o objeto livro. O que vejo também é gente enxergando os livros como uma forma de fazer pontes com as pessoas e que um filme, pela rapidez, não gere essa ponte tão profunda e tão emotiva.
Eu não consigo perceber esse afastamento dos clássicos. Vejo meus filhos naturalmente interessados por Frankenstein, Drácula, Conan Doyle... A minha filha ama uma série chamada Anne with an E, baseada em uma série de livros, e ela, depois de ver a série, me pediu os livros.
Tem um outro lado que eu queria destacar. Há muitos anos eu trabalhava na Martins Fontes e logo em seguida a editora recusou publicar os livros do Harry Potter. O Sr. Valdir Martins Fontes, editor na época, achou que não era um livro bom, que não ia vender. E essa saga de livros foi tão adorada pelas crianças. Harry Potter recebeu por volta de 12 negativas de editoras na Inglaterra e quem conseguiu fazer com que ele fosse publicado foi uma criança que viu o original na mesa do pai, editor, que tinha recebido aquele original para avaliação. A criança começou a ler e amou, e aí o pai, que ia recusar, resolveu publicar. Esse livro foi tão abraçado pelas crianças que na época elas se juntavam e faziam coletivos de tradução porque não existia ainda para o português. Uniam-se e traduziam o Harry Potter muito antes e disponibilizavam entre elas, e eu achei isso fantástico. A gente vê esse tipo de paixão, por exemplo, com Game of Thrones e Senhor dos Anéis. São adolescentes devorando essas megasséries que consomem um tempão, que exigem bastante, mas continuam por conta desse afeto que a literatura provoca, dessa união.
IHU – Além de traduzir os diários e livros de Virginia Woolf, você também traduziu escritos da Joan Didion. Quando penso nas duas, outra autora me vem à cabeça é Sylvia Plath. É possível estabelecer uma relação entre a obra das três?
Ana Carolina Mesquita – Achei interessante essa pergunta. Entre Woolf e Plath é possível estabelecer a ligação mais rapidamente porque elas eram de gerações próximas. Para a Didion, a distância é um pouco maior. São autoras movidas por experiências pessoais e essas experiências são transmutadas em forma artística. Nas três, verificamos isso claramente. Outra correlação entre ela é o tema da morte.
A Woolf e a Plath sofreram de algo como depressão, talvez bipolaridade... Não gosto de fazer diagnósticos, mas pelo que sabemos da vida delas, de suas trajetórias e elas trazem isso para sua literatura. No caso da Didion, o tema da morte é de quem fica, pelo luto. A Virginia também tem isso muito profundamente no As ondas, em Mrs. Dallaway. Uma certa pulsão de morte, para usar o termo da psicanálise, presente na Woolf e na Plath. Na Didion, não é da mesma maneira, mas também há certa pulsão de morte sendo exprimida pela dor da perda de pessoas próximas.
Existem muitas semelhanças entre a Virginia Woolf e a Clarice Lispector. Inclusive já dei um curso com uma estudiosa de Clarice em que falávamos dessas relações entre as duas. Eu já escrevi um artigo sobre a aproximação entre elas e é um tema fascinante. Uma dessas semelhanças é essa visão da realidade como algo que vai além do real. Esse toque que na Clarice é por um lado de epifania, e na Woolf são os “momentos de ser” que perpassam a literatura dela e é algo próximo a uma epifania, mas não tão clariciano. Na obra da Clarice, a partir dessa epifania existe uma modificação profunda em quem a experimenta. Existe um antes e um depois. Na Virginia, a pessoa foi impactada, mas pode esquecer essa experiência.
As duas são autoras muito filosóficas e ambas têm essa preocupação quase mística no sentido do além do real, esse além da percepção dos sentidos, essa percepção da vida como algo pulsante que ultrapassa a mera cotidianidade. Elas investigam o ser humano de forma muito profunda, que até já foi assemelhada com a psicanálise, com mergulhos psicológicos, mas que na verdade é uma concepção do humano diferente porque relaciona essa experiência profunda de estar no mundo com a experiência do dia a dia. Em A paixão segundo GH, a experiência que ela vive com a barata é uma experiência cotidiana no sentido de que ela está em seu apartamento e abre a porta do quarto da empregada que foi embora e acaba sendo um mergulho profundo em uma forma de perceber a realidade da empregada, na cobertura de classe alta carioca, mas é uma experiência modificadora dentro de um cotidiano banal. Não tem uma aventura para levar a essa mudança.
A mesma coisa com a Virginia, mas não em todas as suas obras. Isso vale para As ondas, mas não vale tanto para Orlando. Porém, em Orlando temos a mesma discussão daquilo que está além, da experiência do humano e que ele é mais do que ir e vir do cotidiano, ter filhos, viver e morrer. O ser humano é muito mais do que isso: é algo que impacta os outros, nos precede, nos ultrapassa. Tem essa semelhança muito forte que chega a ser uma visão de mundo.
É importante dizer que essa visão de um humano que nos precede, que nos ultrapassa, não necessariamente é uma experiência tranquila. Ela é aterrorizante, nas duas, Clarice e Virginia. Ela é terrível, dura e cruel. Mas também pode ser sublime, maravilhosa. Com todas essas nuanças do que significa esse estar humano.