Ódio e negação: “Ficamos paralisados. Parece que não estamos conseguindo ter consciência, nem fazer coisa alguma”. Entrevista especial com Milena Gordon Baker

“A educação teria que mostrar como foi possível o holocausto acontecer. Não se trata só de transmitir o Holocausto, mas transmiti-lo de uma maneira dinâmica, com testemunhas, com crianças e adolescentes lendo histórias e romances porque aí a pessoa se coloca no lugar da outra e isso traz um resultado muito positivo”, diz a pesquisadora

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 17 Julho 2023

“O ser humano tem muita frustração quando não encontra uma resposta plausível para si e aí tem a necessidade de culpar alguém, de encontrar um bode expiatório”. Essa, segundo Milena Gordon Baker, é uma das formas de explicar o discurso de ódio que, embora não seja novidade na história humana, tem sido uma constante nas inter-relações pessoais nas redes sociais. Segundo ela, outra explicação para compreendermos o fenômeno reside nas teorias freudianas. “Freud, em 1930, disse algo que ainda serve para a atualidade: o ser humano pode ter avançado no domínio da técnica, da cultura, da mente, mas continua sendo primitivo. Isso acaba sendo sua contradição porque o ser humano não tem controle, muitas vezes, em relação às suas emoções”, sublinha.

Associada ao discurso de ódio está a negação, seja violência, seja dos direitos humanos. Esse ato, explica, “é o ato de virar o olho para o outro lado. Não se quer enxergar o sofrimento do outro”. Em casos de violência, crimes cometidos contra a humanidade, como o Holocausto, frisa, “isso serve para os perpetradores que infligem o sofrimento, mas também para as pessoas que estão olhando, que são espectadoras. O mais alarmante é que a indiferença das pessoas que estão olhando afirma e encoraja os atos dos perpetradores. Essa é uma questão para refletirmos. Muitas vezes, lemos no jornal que está acontecendo algum genocídio em algum lugar do mundo e não queremos saber do que se passa. O mesmo acontece quando viramos o rosto diante de um morador de rua. É uma negação, de certa forma. As pessoas não entendem muito essa questão, mas os espectadores também contribuíram para o Holocausto porque eles contribuíram para isso de alguma forma; eles o negaram e evitaram de se conscientizar sobre o problema”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Milena discorre sobre o Holocausto, as distorções contemporâneas em relação aos crimes cometidos, as novas pesquisas realizadas e a dimensão do perdão em casos de genocídios.


Milena Gordon Baker (Foto: Reprodução PUCPR)

Milena Gordon Baker é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e mestre e doutora em Direito Penal pela mesma instituição. É autora de Criminalização da negação do Holocausto no Direito Penal brasileiro (Thoth, 2020)

Milena Gordon Baker é uma das palestrantes do minicurso de férias on-line, promovido pelo Instituto Berliner,  que ocorrerá entre os dias 17 de julho e 21 de julho de 2023 (todos os dias, das 20h às 21h30), sobre Holocausto e Direitos Humanos. As aulas terão transmissão ao vivo, ou, se não conseguir participar, o inscrito poderá assistir às gravações que ficarão na plataforma, com o login e senha enviados. Para mais informações, acesse aqui. Para os leitores do IHU, o curso está sendo ofertado com 50% de desconto, a partir do preenchimento do formulário disponível aqui

Confira a entrevista.

IHU – Como você tem refletido sobre o discurso de ódio? A que atribui essa prática? O que está na raiz desse fenômeno observado no mundo todo?

Milena Gordon Baker – A prática do discurso de ódio não é nova. Ela se proliferou mais com o acesso à internet, que hoje é relativamente barato e está disponível a qualquer horário. A rede mundial tem favorecido a situação de anonimato, que serve de incentivo e brinda aqueles que praticam o discurso de ódio. As pessoas ficam mais confortáveis para verbalizar suas frustrações nesse ambiente.

Freud, em 1930, disse algo que ainda serve para a atualidade: o ser humano pode ter avançado no domínio da técnica, da cultura, da mente, mas continua sendo primitivo. Isso acaba sendo sua contradição porque o ser humano não tem controle, muitas vezes, em relação às suas emoções.

IHU – O que o discurso de ódio revela sobre a condição humana?

Milena Gordon Baker – Segundo Freud, nós ainda somos frágeis e continuamos sendo vulneráveis. Não importa se estamos em 2023, com inovações tecnológicas e Inteligência Artificial – IA, continuamos sendo aquele ser humano frágil.

O que contribuiu para o aumento do discurso de ódio foi a pandemia e a polarização política. A polarização política trouxe uma oposição muito forte entre os grupos de esquerda e as pessoas de direita, não só no Brasil, mas no mundo todo. Nos EUA, na Europa, as pessoas ficaram fechadas em casa e utilizaram ainda mais a internet. O que também ajudou foi a criação, cada vez maior, das teorias conspiratórias, que querem encontrar uma explicação para fenômenos que não conseguimos explicar. O ser humano tem muita frustração quando não encontra uma resposta plausível para si e aí tem a necessidade de culpar alguém, de encontrar um bode expiatório.

Houve a alegação de que a Covid-19 foi criada em um laboratório chinês e os chineses foram culpados. Inclusive, foram cometidos crimes raciais contra asiáticos. O discurso de ódio, portanto, alimenta crimes de ódio, que diz respeito à violência física. Na França, os judeus também foram culpados pela criação da Covid-19 porque, à época, a ministra da Saúde era judia e tinha uma política em prol da vacina. As ideologias da extrema-direita trazem um conforto para as pessoas ao trabalharem a ideia de um mundo melhor, a salvação, e sempre trabalham para mostrar que existe um inimigo. Foi assim na Alemanha nazista e é assim até hoje, na propagação do ódio.

IHU – Que tipo de frustrações as pessoas expressam no discurso de ódio?

Milena Gordon Baker – Nos EUA, por exemplo, as pessoas ficaram muito frustradas com a crise econômica e criticaram os democratas. Disseram que a Hillary Clinton era dona de uma máfia que traficava crianças, que Bill Gates criou o vírus, ou seja, existe essa questão política.

IHU – Em que medida é possível afirmar que o discurso de ódio é retroalimentado por agressores e agredidos?

Milena Gordon Baker – Em The roots of evil [As raízes do mal], Ervin Staub diz que quando uma pessoa se encontra em uma situação de dificuldade financeira, de falta de emprego, além do fato de ter sido vítima ou marginalizada, ela quer preservar seu ego e imagina que deve se defender tanto emocionalmente quanto fisicamente. O discurso de ódio não é proferido por um perfil específico de pessoa, embora, se pensarmos na definição de discurso de ódio formulada pelos direitos humanos, veremos que se trata sempre de ódio em relação às minorias – pretos, nordestinos, judeus, estrangeiros. Esse grupo é marginalizado. Mas, ao mesmo tempo, às vezes, são pessoas que precisam desabafar e não têm outra forma de fazer. Mas o problema são as células nazistas que estão em ascensão na extrema-direita. Precisamos nos preocupar com as crianças acessando vários sites e aprendendo valores que não devem ser aprendidos ou devem ser aprendidos com a instrução de um educador ou da família. Ao mesmo tempo, o discurso de ódio gera o estereótipo, que está ligado com a percepção errônea da pessoa.

É preciso ficar claro que o discurso de ódio tem uma definição fechada: é uma agressão verbal contra uma minoria. Esse é um conceito fechado para os direitos humanos porque não pode ter arbitrariedade quando se diz que alguém praticou discurso de ódio. Se alargar demais o conceito, pode ter implicações negativas. Ao mesmo tempo, ele é um discurso variável. O conceito do Facebook, por exemplo, inclui oposição entre castas, possivelmente porque está considerando o caso da Índia, onde existem castas.

IHU – Que semelhanças e diferenças percebe no modo como o discurso de ódio é propagado nos EUA e no Brasil?

Milena Gordon Baker – O modo é parecido porque um se alimenta do outro. A verdade é que a internet tornou o mundo globalizado. Muitas coisas que acontecem nos EUA e na Europa, em seguida, acontecem no Brasil também. A polarização política entre democráticos e republicanos foi muito parecida com o que aconteceu entre Lula e Bolsonaro, e a própria questão da vacina.

IHU – Quais são as minorias atacadas pelo discurso de ódio nos EUA?

Milena Gordon Baker – As minorias que estão sendo bastante atacadas nos EUA são os judeus. Está tendo muito antissemitismo, principalmente nas faculdades, e existem também ataques físicos. De 2021 para 2022, aumentou de 2.700 para mais de três mil ataques. É algo que ocorre no Brasil também, mas não nessa proporção. Usar o quipá, que é uma reverência do judeu a Deus, virou algo complicado no país. As pessoas têm medo de usá-lo; os judeus religiosos estão sendo os mais atacados porque são visivelmente mais reconhecidos como judeus.

IHU – Qual a causa desses ataques?

Milena Gordon Baker – Existem várias causas, desde antigos preconceitos e estereótipos até o antissemitismo, que é uma ideologia de racismo contra o povo judeu. O antissemitismo é contraditório: acusam o judeu ou porque ele é capitalista ou porque ele é comunista. Hitler destruiu os judeus do Leste Europeu porque dizia que eram bolcheviques. Há estereótipos de que os judeus controlam a economia, a imprensa, e, infelizmente, também tem a questão de Israel e, por conta disso, cataloga-se todo judeu como ferrenho adepto da política de Israel. O ser humano precisa culpar alguém, e é muito fácil culpar um determinado grupo se as coisas vão mal. Já vimos isso.

IHU – Em um de seus artigos, a senhora menciona que “um dos aspectos mais nefastos em relação aos discursos de ódio é a questão dos efeitos psicológicos causados nos grupos vulneráveis atacados”. Pode nos dar exemplos desses efeitos?

Milena Gordon Baker – Os abusos verbais sofridos pelas minorias fazem com que essas pessoas sintam-se menos respeitadas e pensem que não são dignas de estar dividindo espaços com outros. Elas acabam, muitas vezes, duvidando de si próprias, do seu valor. As minorias que são acusadas de serem preguiçosas, ignorantes, sujas, acabam por acumular essas imagens negativas que fazem com que acabem tendo duas saídas destrutivas: ou se odiando, odiando sua cultura por não pertencer àquele grupo majoritário, ou acabam não tendo identidade alguma; ficam sem identidade e não sabem se defender.

A reação psicológica é o sentimento de humilhação, de isolamento, de não estar de acordo com a sociedade. As pessoas acabam tendo problemas de relacionamento com os membros do próprio grupo. Outro problema grave que aparece nesses grupos é o nascimento de doenças mentais, psicossomáticas, abuso de drogas e álcool. A taxa de internação por álcool e droga é mais alta em grupos minoritários. São questões que acabamos não falando, mas existem e são sérias porque dizem respeito à saúde mental e física das pessoas dessas comunidades.

IHU – Muitas reações ao discurso de ódio apelam para o Direito como o campo através do qual os discursos e ataques poderiam ser penalizados. Como vê essa perspectiva? Quais os limites e as potencialidades do Direito no tratamento da questão?

Milena Gordon Baker – A lei 7.716/1989, de discriminação racial, é utilizada para proteger a igualdade e é utilizada toda vez que ocorre um crime de racismo. Vejo essa lei com bons olhos; é uma arma contra o racismo e a intolerância, mas pode haver limites na sua aplicação porque, quando estamos falando de discurso de ódio, falamos de um assunto muito controverso, talvez um dos mais controversos do Direito, pois existem dois direitos aqui: o direito à liberdade de expressão, que é fundamental e constitucional, e o direito a não ser discriminado, o direito à igualdade, que também é fundamental.

É possível encontrar juízes que são ferrenhos protetores da liberdade de expressão e não da discriminação. Esse perfil é encontrado nos EUA porque a primeira emenda da Constituição garante o direito de expressão, então não existe proibição ao discurso de ódio nos EUA; não é regulamentado como no Brasil. O Rio Grande do Sul tem uma jurisprudência no caso Ellwanger. Ellwanger era um negacionista, nazista e antissemita, que publicava livros sobre esses temas. Ele foi absolvido na primeira instância, mas o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu que a liberdade de expressão tem, sim, limites e o limite é o racismo.

O Brasil não tem uma lei de discurso de ódio nem de crime de ódio. Falamos em crime de ódio, mas não existe essa tipificação na nossa legislação. O que se faz é uma interpretação da Constituição e dos tratados internacionais. A decisão do caso Ellwanger é importante porque traz uma jurisprudência que a maioria dos juízes segue, mas existem aqueles que não vão segui-la. Na prática, todo incidente precisa ser analisado e bem analisado, especialmente na sua gravidade, para que não haja arbitrariedade. Não podemos chamar tudo de discurso de ódio, nem podemos censurar tudo. Temos que pesar bem e nos utilizarmos de forma correta, com profundidade e estudo, da aplicação da lei. A potencialidade da lei é que ela é uma ferramenta para combater o discurso de ódio, especialmente quando é em favor da vítima.

IHU – A lei é insuficiente para barrar o discurso de ódio? Que outras instâncias da vida poderiam contribuir para enfrentar essa questão?

Milena Gordon Baker – A lei nunca pode ser a panaceia de todos os males, mas ela possui uma função simbólica. Nesse ponto, estou de acordo com [Émile] Durkheim, que dizia que há regras para a convivência porque precisamos de normas, de valores, de convenções para ter uma sociedade um pouco mais harmônica. No mundo criminal, os advogados criminalistas falam da função simbólica da lei de forma negativa, no sentido de que temos muitas leis para criminalizar e isso não funciona à medida que há uma inflação de lei. Mas a lei traz a regra de convivência harmônica e tem que existir, embora não seja suficiente. Precisamos de uma educação séria, que trabalhe a questão da tolerância, da empatia, da civilidade.

Uma pesquisa feita pela Echoes & Reflections apontou que a inclusão curricular do Holocausto não apenas trouxe o benefício de aquisição de história, mas os alunos ganharam mais empatia, civilidade e ocorreu menos bullying. Uma pesquisa semelhante na Inglaterra mostrou os mesmos benefícios. A educação teria que mostrar como foi possível o Holocausto acontecer. Não se trata só de transmitir o Holocausto, mas transmiti-lo de uma maneira dinâmica, com testemunhas, com crianças e adolescentes lendo histórias e romances porque aí a pessoa se coloca no lugar da outra e isso traz um resultado muito positivo.

É preciso enfatizar também o lado negativo e perverso do nazismo, e Hitler tem que ser apresentado de forma séria e bem pensada e não de modo que as crianças queiram se fantasiar dele, como já aconteceu. Precisamos educar as crianças inocentes que não têm ideia de quem foi Hitler. O fascínio com Hitler deve ser desestruturado.

Uma questão interessante foi trazida no livro Fragilidade branca: porque é tão difícil para os brancos falar sobre racismo (Edita_X, 2020). Robin DiAngelo afirma que devemos falar mais abertamente sobre o racismo e analisar mais nossos preconceitos porque, na verdade, eles muitas vezes são inconscientes. O racismo precisa ser confrontado e temos de aceitar que, frequentemente, somos racistas, mesmo em pensamentos, e precisamos ter essa consciência para poder lutar contra esse tipo de posicionamento. Ligado a esse posicionamento, temos uma nova tendência nos EUA que é a participação de empresas no combate à intolerância. As empresas criaram departamentos de diversidade e inclusão para trabalhar exatamente essas questões. Quanto mais pessoas envolvidas nesse debate, mais pontos agregamos à luta. Esta é uma luta muito difícil de ser vencida, mas, cada vez que podemos contar com a contribuição de alguém, conseguimos somar forças para esse trabalho.

IHU – Há diferença entre discurso de ódio e discurso de negação de direitos? A que atribui este último?

Milena Gordon Baker – De maneira geral, a negação envolve um fenômeno experimentado pela sociedade. Quando o ser humano é confrontado com fatos catastróficos e de difícil assimilação, a tendência é, do ponto de vista psicológico, reprimir ou ignorar fatos como guerras, epidemias, calamidades. Negar algo é uma forma possível de defesa. Mais precisamente, é um mecanismo de defesa que auxilia os indivíduos a se protegerem de suas emoções, ameaças externas ou dor. Negar é evitar o reconhecimento afetivo.

Shoah

O melhor filme sobre o Holocausto se chama “Shoah”. O diretor, Claude Lanzmann, conta uma entrevista com uma sobrevivente que morava em Berlim. Ela disse que, no dia em que Berlim foi expurgada dos últimos judeus, ninguém queria ficar nas ruas. As ruas estavam completamente vazias para as pessoas não verem a situação. Elas faziam as compras às pressas. Ou seja, fechavam a janela porque não queriam ver. O ato da negação é o ato de virar o olho para o outro lado. Não se quer enxergar o sofrimento do outro. Isso serve para os perpetradores que infligem o sofrimento, mas também para as pessoas que estão olhando, que são espectadoras. O mais alarmante é que a indiferença das pessoas que estão olhando afirma e encoraja os atos dos perpetradores. Essa é uma questão para refletirmos. Muitas vezes, lemos no jornal que está acontecendo algum genocídio em algum lugar do mundo e não queremos saber do que se passa. O mesmo acontece quando viramos o rosto diante de um morador de rua. É uma negação, de certa forma. As pessoas não entendem muito essa questão, mas os espectadores também contribuíram para o Holocausto porque eles contribuíram para isso de alguma forma; eles o negaram e evitaram de se conscientizar sobre o problema.

IHU – Percebemos essa negação em nós mesmos diante de várias circunstâncias sociais, como é o caso dos refugiados ou das pessoas em situação de rua.

Milena Gordon Baker – Exatamente. Ficamos paralisados. Parece que não estamos conseguindo ter consciência, nem fazer coisa alguma.

IHU – Qual o fenômeno que se evidencia hoje: negação e/ou desconhecimento do Holocausto?

Milena Gordon Baker – Na atualidade, existem vários fenômenos em relação ao Holocausto. O primeiro é o desconhecimento. O Holocausto está desaparecendo da memória. Uma pesquisa realizada pela CNN, em 2018, apontou que 66% dos americanos, entre 18 e 39 anos, não sabem identificar o que foi Auschwitz, um dos maiores e famosos campos de concentração. Na Europa, outra pesquisa da CNN apontou que 1/3 dos 7.000 entrevistados em sete países europeus não sabe quase nada ou nada sobre o Holocausto. Para pasmar ainda mais, uma pesquisa de janeiro de 2023 mostra que na Holanda, um dos países em que ocorreu o Holocausto e morreram 75% dos judeus, 54% dos millenials e 59% da geração Z não sabem nada do extermínio dos seis milhões de judeus. Vemos isso nos EUA e na Europa. Não tenho dados confiáveis sobre a situação no Brasil.

A negação consiste em falar que o holocausto não existiu, mas o fenômeno que mais está preocupando os historiadores e acadêmicos é a chamada distorção do Holocausto. A maior especialista em negacionismo e Holocausto no mundo, Deborah Lipstadt, diz que existem dois tipos de negação: a hard core (negação pura) a e a soft core (negação com distorção). O mais importante é entender que as duas têm uma agenda política bem definida, que consiste, primeiro, no reestabelecimento do Nacional Socialismo e, segundo, na promoção do antissemitismo. O que elas tentam fazer, de uma maneira chula, é dizer que o Nacional Socialismo não foi tão ruim assim. Ou seja, minimizam a situação, trabalham com números, falsificam fatos e dizem que, ao fim, o holocausto não foi tão ruim. Essas pessoas agem desta forma porque sabem que, se aparecerem com suástica e bandeiras, todo mundo vai entender que são nazistas. São lobos em pele de cordeiro.

Distorção do Holocausto

A distorção do Holocausto não nega o fato do acontecimento em si, mas reescreve uma narrativa não verdadeira porque omite a verdade histórica dos fatos. Existe uma razão para tal. Por exemplo, durante a invasão da Alemanha à União Soviética, nos países ocupados, que eram parte da União Soviética (Letônia, Lituânia e Ucrânia), houve colaboração e assistência no massacre aos judeus. Os colaboradores, que são as pessoas locais, atuaram na administração local, foram parte da polícia. Ou seja, não se fala muito desse Holocausto que ocorreu na Europa do Leste e que hoje está sendo pesquisado, que se chama “holocausto das metralhadoras”, onde morreram 1,5 milhão de pessoas. Quando se pensa em Holocausto, as pessoas pensam em Auschwitz, mas isso ocorreu antes de Auschwitz, antes de implementarem a morte pelas câmaras de gás nos campos de concentração, porque viram que não estavam dando conta de matar tantas pessoas. Os alemães sabiam muito bem que os habitantes dos países do leste europeu eram ultranacionalistas e antissemitas. Mas, por ser um tema pouco desenvolvido, existe essa distorção.

Hoje, nesses países busca-se omitir a participação deles no Holocausto porque não pega bem. Nesse aspecto, eles são diferentes da Alemanha, que assumiu a culpa e fez reparação. Os países do leste europeu não querem reconhecer sua culpabilidade e não querem julgar os criminosos, nem abrir seus documentos. Pior, condecoram militantes de seus países que foram colaboradores e assassinos.

Uma coisa interessante que estamos observando é a publicação de livros lançados por jornalistas. Um deles é o da Silvia Foti, intitulado A neta do nazista (Regnery History, 2021). Seu avô dela era da Letônia e ela foi convidada para participar da inauguração de um monumento comemorativo ao general [Jonas] Noreika, que era visto como um herói. Depois, ela começou a ouvir rumores de que o avô tinha assassinado 30 mil judeus em uma aldeia. No livro, ela conta essa história.

A Polônia não teve uma atuação governamental no Holocausto. Ela se exilou, mas, no país estão sendo lançados vários livros sobre aquele período. Um deles intitula-se Vizinhos (Pedra da Lua, 2010), de Jan Gross, e relata a história de uma aldeia, na Polônia, onde os poloneses mataram seus próprios vizinhos judeus. Eles assassinaram cerca de 1.900 judeus; não foram os alemães que assassinaram essas pessoas. Temos a ideia de que tudo é culpa dos alemães, mas não é assim. A Alemanha é culpada, mas não só ela. A Alemanha sabia muito bem com quem poderia contar. O autor desse livro, professor de história, foi expulso da Polônia. Ele estava falando no Congresso e os agentes de direita o tiraram de lá. A Polônia tem aprovado leis segundo as quais não se pode referir a Auschwitz como território polonês. Mas veja, Auschwitz é território polonês. Hoje, há muito problema em relação não só à negação do Holocausto, mas em reescrever a história de uma maneira que não é verdadeira.

A banalização do Holocausto

Por fim, outro fenômeno que vale a pena destacar, e que aconteceu na pandemia, é a banalização e a comparação ofensiva e abusiva do Holocausto. Um exemplo foi o uso da estrela de Davi em relação à vacinação. Aquilo foi um desserviço para a sociedade civil e uma ofensa aos sobreviventes do Holocausto, porque a estrela servia para identificar o judeu para a morte e a vacina é exatamente o oposto. Portanto, a comparação é um absurdo.

Alguns políticos se utilizaram do Holocausto para atacar seus adversários, comparando-os a Hitler, apenas com o intuito de uma retórica egoísta para satisfazer suas próprias intenções políticas. Quer dizer, não é para educar a população ou explicar. Existem comparações do Holocausto que podem ser feitas e são pertinentes quando se quer ensinar um genocídio na história, como na Bósnia ou em Ruanda. Mas não dessa maneira.

Para finalizar, existe um abuso da utilização do termo “holocausto”. Tudo ficou igual ao Holocausto. Até um bullying na escola é um holocausto. Algo pode ser terrível e desagradável, mas não precisa haver menção ou analogia ao Holocausto porque, quando se banaliza, dessensibiliza-se a sociedade dos horrores ocorridos na Segunda Guerra Mundial. Com isso, em uma frase, se destrói o trabalho árduo dos educadores do Holocausto, de construção de sentimentos de civilidade e consciência de tolerância zero em relação ao racismo.

IHU – Em 2015, o filósofo espanhol Xabier Etxeberría Mauleon, em conferência no IHU, defendeu uma teoria da justiça que integra justiça e perdão como caminho para a reparação das vítimas e a responsabilização efetiva dos agressores. Ele argumentou que o ponto mais importante na aproximação entre esses dois polos é a transformação das pessoas envolvidas (agressor e vítima) e dos papéis de cada uma nos processos, gerando arrependimento e perdão. À época, ele mencionou o caso do grupo ETA. Como compreende essa proposta à luz do Holocausto?

Milena Gordon Baker – A pergunta é complexa e gera muitas perguntas: qual é o prejuízo para a pessoa afetada? Será que a pessoa que causou o dano ou crime realmente se arrepende? Será que existe um benefício neste perdão? Para dar essa resposta, me baseio no livro de Simon Wiesenthal, um sobrevivente do Holocausto, intitulado The Sunflower (Schocken Books, 1998). É uma autobiografia. Wiesenthal nasceu na Áustria, era judeu, foi para o campo de concentração e, ao sobreviver, transformou-se em um caçador de nazistas.

O livro conta a história de um soldado nazista que, no leito de morte, pede para falar com um judeu que trabalha no campo de concentração. Ele quer se confessar e receber o perdão daquele judeu; é seu último desejo antes de morrer, depois de ter cometido uma série de atrocidades. O livro é interessante porque traz a reflexão de várias pessoas: pastores, padres, sociólogos, pesquisadores das mais variadas áreas. A postura que me chamou mais atenção e com a qual compactuo é a seguinte: o Estado não pode perdoar crimes de genocídio. Não compactuo do perdão do Estado porque o perdão é algo muito individual. Se pensarmos no caso do Holocausto, nas seis milhões de pessoas que foram aniquiladas, somente cada uma delas poderia perdoar, porque esse é um direito personalíssimo. Apenas a pessoa que sofreu prejuízo, vítima de um crime, pode perdoar.

No caso de um holocausto, isso é impensável porque esse direito não pertence nem a uma agência judaica nem à segunda ou terceira gerações, mas à pessoa que perdeu a vida. É ela quem tem que perdoar. Não que não existam casos desse tipo. Até existiram pessoas que fizeram isso. Lembro de uma sobrevivente do Holocausto que perdoava e fazia palestras nas escolas. Jacques Derrida também acreditava no perdão. Ele dizia que isso estimula a memória. Eu não acredito nisso. O Estado pode investir dinheiro construindo memoriais, dando educação. Hoje, os crimes do Holocausto não foram perdoados, mas há sobreviventes falando disso nas escolas. Na Alemanha, trabalha-se com essa forma de convivência, e a dimensão da memória a partir dos sobreviventes é trazida.

Também é preciso ver se o perdão é genuíno porque, às vezes, a pessoa quer ser absolvida. O perdão é uma coisa muito séria. Tenho medo de o perdão parecer uma sinalização de que esses crimes não foram tão terríveis assim. Tenho medo do que isso pode significar para a gerações futuras. Em particular, por causa do momento que estamos vivendo, isso é muito perigoso porque pode dar a ideia errada para nossa civilização.

Há áreas do Direito que abordam o perdão, como em casos de crimes ambientais, por exemplo. Mas no caso de genocídios e do Holocausto, de crimes contra a humanidade, não consigo me sentir confortável com o perdão concedido pelo Estado porque este é um direito personalíssimo daquelas vítimas. Ninguém pode perdoar senão elas mesmas porque esse direito lhes pertence e não a nós.

 

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