O heterogêneo campo da extrema-direita brasileira. Recusa à Constituição de 1988 e de lógicas democráticas pós-1945 une campos distintos. Entrevista especial com Jorge Chaloub

Professor lança luz em setores que não aceitaram os “acordos” e “transições” pós-ditadura e nem os princípios da Constituição de 1988 que, apesar de distintos, se aglutinaram nas radicalidades à direita

Manifestação em frente ao Quartel General do Exército em Brasília | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos | 21 Dezembro 2022

Compreender a extrema-direita requer reflexões de cunho global e local. É nessa perspectiva que vai a análise do professor Jorge Chaloub. Segundo ele, “após a II Guerra Mundial, a extrema-direita remete de forma frequente ao imaginário fascista, derrotado no confronto e, em parte por isso, limitado às margens do debate público e da política institucional”. Nesse sentido, quem ocupa esse papel de flerte com o fascismo no cenário brasileiro é o integralismo. Mas não se pode apressar a análise. Chaloub gosta de pensar as respostas que culminam na eclosão da extrema-direita muito próximas com a ascensão do neoliberalismo. “Autores como Wendy Brown constroem interessante relação entre os resultados de décadas de políticas neoliberais e a ascensão do fascismo, em interpretação fortemente inspirada nas reflexões de Karl Polanyi”, observa, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

No entanto, apesar de certas semelhanças com o cenário global, o Brasil tem suas particularidades. “A extrema-direita é um campo heterogêneo, composto por distintos atores e linguagens políticas. A recusa radical à ordem democrática de 1988 e a incompatibilidade com qualquer lógica de democracia do pós-1945 são o que aproxima estes atores e dão a suas linguagens políticas certa semelhança de família”, explica. Isto é, embora seja um campo heterogêneo, a extrema-direita nacional tem como denominador comum a recusar dos avanços democráticos de nossa história.

A partir disso, é interessante pensar as figuras que ainda resistem e se insurgem contra o resultado das eleições deste ano. O caso mais evidente são as manifestações diante dos quartéis. “Tudo indica que na frente dos quartéis estão os grupos que mais explicitamente se identificam com os setores do Exército e das forças policiais que apoiam Bolsonaro, os quais se distinguem por uma explícita adesão a um ideário militarista, de corte fascista. Eles possuem evidentes afinidades, sobretudo pela defesa de métodos violentos, com outros grupos que fecharam estradas, como parte dos caminhoneiros e certas lideranças do agronegócio, e com atores políticos que eventualmente se organizam nas redes a partir de inspirações neofacistas, neonazistas ou neointegralistas”, reflete o professor.

Assim, novamente vemos grupos distintos se aglutinando como resistência à possibilidade de avanços democráticos. Isso mostra que os desafios do novo governo vão muito além de simplesmente desfazer esses motins. “O grande desafio para o governo Lula é conseguir mudar o padrão atual da disputa política, o que passa por não mais reproduzir a atual dinâmica de normalização da ultradireita. A perpetuação da atual disputa coloca um sério risco à ordem democrática”, indica. Para Chaloub, “a tarefa é dura pois não apenas a ultradireita tem uma base social significativa, como parte dessa base está disposta a usar de todos os meios para romper com a democracia”. No entanto, debelar esse violento rancor democrático não é apenas uma tarefa do PT, ou mesmo da esquerda. “Se a direita tradicional, o Judiciário e a imprensa seguirem o mesmo roteiro que construiu a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018, a tendência é caminharmos rumo a um abismo ainda mais fundo”, adverte o professor.

Jorge Chaloub (Foto: Arquivo pessoal)

Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Doutor em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, atualmente é Jovem Cientista do Nosso Estado, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, diretor da Regional Sudeste da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP.

A entrevista foi originalmente publicada por Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 21-12-2022.

Confira a entrevista.

IHU – Como avalia as manifestações que ocorreram no país após as eleições presidenciais? O que elas significam e revelam sobre a extrema-direita?

Jorge Chaloub – As manifestações tornam ainda mais explícitos alguns fenômenos importantes da política brasileira dos últimos anos. O primeiro e mais importante é a naturalização de discursos e práticas golpistas. As manifestações são uma expressão particularmente clara desse fenômeno, pois lá estão, de forma por vezes caricata, elementos evidentemente fascistas, como o militarismo, a ode à violência, a defesa do extermínio de inimigos e potenciais adversários políticos, ou seja, a clara manifestação de ideias e práticas autoritárias.

É necessário, contudo, perceber que esse golpismo explícito ganha espaço a partir de movimentos com mais nuances, menos evidentes, que também questionam de forma profunda não apenas a democracia de 1988 com qualquer forma de democracia existente no pós-1945. Quando se criminaliza a política, ou mesmo se retira do poder público e da vida em comum qualquer sentido, naturaliza-se uma percepção de que talvez o melhor seja superar a democracia, implantar outro tipo de ordem social.

Tratando diretamente dos manifestantes, é necessário apontar como é grave a existência de um grupo social organizado que tem no fim da democracia brasileira sua principal pauta. A preocupação não se mede em termos de uma eventual quantidade de votos, mas passa pelo próprio futuro das eleições, pois a longevidade de uma ordem democrática também se ampara na sua capacidade de impedir manifestações explicitamente golpistas, que atacam a democracia não apenas por meio do questionamento das eleições, mas também da defesa do extermínio de grupos sociais, que são vistos como inimigos a serem exterminados, dentre outras ideias e condutas.

Mesmo que sejam minoritários, os militantes golpistas podem eventualmente se aproveitar de crises políticas próximas ou distantes, janelas de oportunidades que os permitam ampliar sua presença, apoio e voz. O povo nas ruas não funciona do mesmo modo que o povo nas urnas, mas pode, a depender do desenrolar dos acontecimentos, ganhar uma força que vai além da parcela da população que representa.

Mais militaristas do que bolsonaristas

Tudo indica que na frente dos quartéis estão os grupos que mais explicitamente se identificam com os setores do Exército e das forças policiais que apoiam Bolsonaro, os quais se distinguem por uma explícita adesão a um ideário militarista, de corte fascista. Eles possuem evidentes afinidades, sobretudo pela defesa de métodos violentos, com outros grupos que fecharam estradas, como parte dos caminhoneiros e certas lideranças do agronegócio, e com atores políticos que eventualmente se organizam nas redes a partir de inspirações neofacistas, neonazistas ou neointegralistas. Não necessariamente estamos, contudo, falando das mesmas pessoas e essas diferenças são importantes para entender as relações e escolhas desses grupos. Há várias formas e caminhos de atuar contra a ordem democrática.

IHU – O que explica a ascensão da extrema-direita no mundo e, particularmente, no Brasil? Quais são as causas associadas a esse fenômeno?

Jorge Chaloub – É interessante pontuar que a extrema-direita não é uma novidade, mas um campo de presença longeva no Brasil e no mundo. Após a II Guerra Mundial, a extrema-direita remete de forma frequente ao imaginário fascista, derrotado no confronto, e, em parte por isso, limitado às margens do debate público e da política institucional. Dentre os que flertaram abertamente com o fascismo e, no caso brasileiro, com o integralismo, quase todos renunciaram ao ideário no pós-1945, dada que a narrativa predominante identificava o campo ao lado derrotado e, por isso, o via como incompatível com a nova ordem construída sobre os escombros da Guerra.

Personagens como Miguel Reale, por exemplo, um dos principais ideólogos e líderes do integralismo, renegaram publicamente suas crenças passadas, mesmo quando ocupavam o papel de ideólogos de um regime autoritário, como a ditadura civil militar. Coletivos neointegralistas, neofacistas e neonazistas permaneceram organizados, mas eram pouco influentes política e socialmente.

Mais do que um retorno ao fascismo

O que podemos chamar de ascensão da extrema-direita é a volta desses grupos ao centro da cena política. Em países como Brasil, Itália, França, Hungria, Estados Unidos, Filipinas, entre outros, a extrema-direita é o campo político hegemônico ou um dos principais campos políticos da disputa eleitoral e da esfera pública. O que antes era relegado às margens, passou a ocupar o centro, tornou-se cada vez mais normalizado. Não se trata, todavia, apenas do retorno às práticas ou discursos fascistas. Se, por um lado, a extrema-direita tem sensíveis continuidades com o fascismo histórico, ela, por outro lado, cultiva hoje outras linguagens políticas e não se restringe a ele.

Tal fenômeno tem causas diversas. Por um lado, uma interessante questão de pesquisa é pensar as relações entre a ascensão da extrema-direita e a crise do modelo democrático construído no pós-1945 e marcado por uma significativa inflexão no pós-1989. Se inegavelmente a extrema-direita se aproveitou da crise democrática e a aprofundou, não há uma identidade total entre o evento e o surgimento deste ator. Autores como Wendy Brown constroem uma interessante relação entre os resultados de décadas de políticas neoliberais e a ascensão do fascismo, em interpretação fortemente inspirada nas reflexões de Karl Polanyi, mas é importante destacar como o fortalecimento da ultradireita não é o único desdobramento possível desse cenário.

Wendy Brown, professora de Ciência Política na Universidade da Califórnia, a partir de Polanyi, vê relação entre políticas neoliberais e a ascensão do fascismo | Foto: Wikipédia

Por outro lado, sem de modo algum normalizar o fenômeno, é importante também compreender que parte da popularidade dos líderes da extrema-direita decorre da sua capacidade de sugerir uma aproximação entre representantes e representados, por meio de uma suposta abertura da esfera pública a novas vozes, e da capacidade de oferecer uma perspectiva de mudança, construída com tintas utópicas, em meio a um cenário de horizontes rebaixados. Desenvolvi esta última ideia em texto escrito há alguns meses ao lado do Fernando Perlatto, mas ainda não publicado.

Conjuntura brasileira

A formulação dessas grandes hipóteses interpretativas, que pensam a dimensão global do fenômeno, não pode, todavia, perder de vista as especificidades da conjuntura brasileira. A ascensão da ultradireita no Brasil está diretamente relacionada ao esgarçamento da República de 1988 e, distintamente de outros cenários políticos, não ocorre no momento de esgotamento do Estado de bem-estar social, mas em meio ao esforço de construção de uma versão fraca dele. Neste sentido, é importante registrar que o surgimento da ultradireita é inseparável de um movimento de radicalização da direita tradicional construída após a redemocratização.

Tanto os setores que nunca aceitaram plenamente a maior parte da Constituição de 1988 quanto outros, mais adaptados à nova ordem político-social, assumiram crescentemente discursos identificados à extrema-direita global, que encontraram amplo eco em algumas corporações do Estado brasileiro, como as judiciais, policiais e militares.

IHU – Recentemente, o senhor comentou que “a recorrência a teorias conspiratórias é uma marca da extrema-direita global”. Quais as principais teses conspiratórias desses grupos em âmbito global e nacional?

Jorge Chaloub – A conspiração funciona, ao menos, de três modos. Primeiramente, ela opera como uma forma de crítica radical da ordem social existente, que ao retratar o mundo social e político como profundamente corruptos torna necessária sua transformação imediata. Em um segundo momento, a lógica conspiratória tem o papel de construção de uma identidade pública, que opõe os que creem aos outros, tomados como ingênuos ou cooptados. Por fim, a conspiração tem um papel de mobilização, em parte fundada na crença de uma crise extrema, que exige ações urgentes pelos que “conhecem a verdade”.

Lógicas conspiratórias são uma longeva marca de parte da direita e da extrema-direita. Já na década de 1960, os clássicos estudos de Richard Hofstadter apontavam para o fenômeno no cenário norte-americano. Com as redes sociais, o fenômeno ganha nova proporção e dimensão global. O QAnon, nos Estados Unidos, é um ótimo exemplo da dimensão da lógica conspiratória e das suas feições contemporâneas.

Sobre o Brasil, importa destacar que a ultradireita tem, nas teorias da conspiração, um relevante discurso. Olavo de Carvalho, talvez o principal intelectual do campo, recorria com frequência ao conspiracionismo e amparava boa parte das suas reflexões em uma intrincada teoria do tipo, que envolvia parte das elites financeiras globais e as esquerdas brasileiras em um bem-sucedido projeto de dominação mundial, inspirado por ideias gramscianas.

As teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas, de grande popularidade atual, na verdade condensam parte dos mais frequentes discursos da ultradireita: atribuem à esquerda um domínio total do mundo social, definem a sociedade e o Estado a partir de fins exclusivamente corruptos e retratam a ruptura completa da ordem sociopolítica como o único caminho possível.

IHU – Como as ações políticas da esquerda e da direita contribuíram para o surgimento e crescimento da extrema-direita no país?

Jorge Chaloub – O protagonismo da extrema-direita é, em parte, explicado pelo modo como a direita hegemônica do pós-1988 reagiu às vitórias eleitorais da esquerda na eleição presidencial e ao avanço de muitas das pautas progressistas.

Importantes estudos têm se dedicado a compreender os novos atores e práticas da direita e ultradireita, mas sua trajetória no pós-1988 ainda merece mais atenção. Uma primeira questão a ser destacada é que a adesão desses atores, muitos dos quais com fortes vínculos com o regime autoritário anterior, à nova ordem democrática não foi tranquila, mas repleta de críticas e tensões. A frase do então presidente José Sarney de que a Constituição tornaria o “país ingovernável” não é uma afirmação isolada. Muitos políticos e intelectuais, com laços mais ou menos fortes com os partidos herdeiros da Arena, farão críticas públicas aos aspectos mais progressistas, próximos do campo social-democrata, do novo sistema político em livros, artigos e por meio de uma atuação intensa na Assembleia Nacional Constituinte.

A adesão ao novo cenário se impõe, tanto pelas forças organizadas da oposição à ditadura civil militar quanto pelo novo contexto global do pós-1989, mas permanece a crítica a vários dos aspectos da carta constitucional e o esforço de reformá-las.

Derrotadas eleitoralmente no pleito presidencial de 1989, as lideranças de maior destaque desta direita terão um papel central na construção de uma coalizão com antigos nomes da esquerda do MDB, que em 1989 formam o PSDB. Boa parte dos tucanos teve uma trajetória na esquerda, porém, desde os primeiros passos do novo partido, seus membros aderiram fortemente a muitos dos postulados do neoliberalismo então em voga na América Latina. A coalizão entre a centro-direita psdbista e a direita do PFL, principal partido dessa direita tradicional, foi bem-sucedida eleitoralmente e na tarefa de mudar parte da organização econômica proposta pela Constituição durante a década de 1990.

O PT gera resistência na direita tradicional

Distintamente do que apontam narrativas que representam a redemocratização como um grande pacto conservador, ou um sistema que homogeneizava suas partes, a subida do PT ao poder gera grande resistência dessa direita tradicional. Se, por um lado, a coalizão lulista contou com o apoio de parte de uma direita organizada. sobretudo em pequenos partidos e em muitos momentos com a parceria do então PMDB, por outro lado, uma parte substantiva da coalizão de centro-direita e direita dos dois governos Fernando Henrique Cardoso se manteve em constante tensão ante os governos petistas e o Partido dos Trabalhadores, frequentemente retratados como inconciliáveis com a democracia.

A famosa declaração de Jorge Bornhausen, que falava em “se ver livre desta raça, por, pelo menos, 30 anos”, expõe como muitos dos principais líderes da direita – caso do político de Santa Catarina – sempre tiveram uma enorme rejeição ao protagonismo petista. O tema é bem explorado na tese de Leonardo Martins Barbosa, “Conflito partidário e ordem política: PMDB, PSDB e PT na Nova República”.

Perda de relevância da direita

Tal tensão não apenas se manteve ao longo dos anos como também recrudesceu com as seguidas vitórias petistas em eleições presidenciais. A direita tradicional passou por um crescente processo de radicalização, até o momento em que compôs uma coalizão de governo não com a centro-direita neoliberal, mas com a ultradireita, como ocorreu no governo Bolsonaro. Uma das consequências desse movimento foi a perda crescente de relevância do campo da direita mais moderada.

Não se trata de um efeito surpreendente, já que o crescimento da ultradireita frequentemente produz tal resultado no cenário ideológico – como a análise comparada com outros contextos explicita –, tornando a esquerda a fiadora da ordem democrática, o que a leva para o centro, e deixando a direita e a centro-direita sem lugar e identidade pública. O que parte da direita tradicional brasileira não percebeu é que, na lógica da democracia liberal, a legitimidade da esquerda é necessária para justificar a dinâmica democrática da disputa e da própria direita. Quando a esquerda é retratada como um ator político ilegítimo, que deve ser tirado da disputa, frequentemente ganha protagonismo uma ultradireita, como ocorreu no Brasil.

IHU – Em que a extrema-direita brasileira atual se assemelha e se diferencia de outros movimentos de direita que já existiram no país?

Jorge Chaloub – O primeiro ponto a ser destacado é que a extrema-direita não é uma novidade no Brasil, mas não apenas sempre se manteve ativa como já foi um grande movimento político de massas, como no Integralismo até 1945. Mesmo após a perda de relevância do integralismo, em parte devido às consequências ideológicas da Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita permaneceu organizada, mas se restringiu a pequenos grupos, sem maior relevância no centro da disputa nacional. O livro O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, dos historiadores Leandro Gonçalves e Odilon Caldeira, descreve bem este processo. A novidade dos últimos anos é, em parte, a volta do protagonismo da extrema-direita na cena política brasileira.

Obra de Leandro Gonçalves e Odilon Caldeira, editada pela FGV e lançada em 2020, descreve o processo de organização da extrema-direita se mantém apesar da perda de relevância do integralismo | Foto: Divulgação

Já quanto à direita, o desafio, como o de muitos trabalhos que tematizam o conceito de “nova direita”, é refletir sobre suas rupturas e continuidades. Discordo da ideia de que a direita seria uma novidade na política brasileira, narrativa que não apenas é, em muitos sentidos, imprecisa como também corre o risco de reproduzir e naturalizar os discursos dos próprios atores analisados. O argumento, por vezes, se apoia em representações de que a cena política era dominada pela esquerda; em outras reivindica perspectivas que retratam as elites políticas brasileiras como mais pragmáticas que ideológicas; duas teses, a meu ver, que descrevem, de forma equivocada, o cenário político brasileiro das últimas décadas.

Direita envergonhada

Mesmo o conceito de “direita envergonhada”, presente nos ótimos trabalhos de Antônio Flavio Pierucci sobre o tema, tem, a meu ver, alguns problemas. Se é o caso de definirmos a direita a partir do uso ostensivo de uma identidade política, talvez seja o caso de pensá-la como envergonhada a partir de 1945, não da década de 1980.

Já há algumas décadas, a anterior proximidade entre o conceito de direita e as variantes do fascismo no debate público brasileiro fez com que vários políticos e intelectuais, que claramente reproduziam ideias a políticas identificadas com o campo, recusassem o rótulo e a identidade pública do conceito. Carlos Lacerda, Roberto Campos, Antônio Paim, Afonso Arinos de Melo Franco e mesmo Miguel Reale não se diziam de direita, mas conservadores, liberais, anticomunistas, entre outros conceitos muitas vezes identificados do campo da direita. Todos, porém, reproduzem visões de mundo que internacionalmente pertencem ao campo da direita e antecipam vários dos argumentos da direita e da extrema-direita contemporânea no Brasil. Se a autoidentificação ideológica dos atores é um dos elementos para compreendê-los, ela não os esgota ou define isoladamente. Argumentos e políticas de direita não apenas sempre estiveram presentes no debate público brasileiro como também foram frequentemente hegemônicas.

Novidades na direita

Se a direita não é novidade, certamente há novidades na direita. Parte delas está nas formas de expressão e organização. Trabalhos como os de Camila Rocha, Rodrigo Nunes, Marcos Nobre e Letícia Cesarino destacam o papel da internet e das redes nas novas formas de sociabilidade política, expressão e organização.

Não se trata, porém, de uma simples “forma”, que não afeta o “conteúdo” das ideias. Se há evidentes continuidades, novas ênfases e composições das ideias trazem rupturas. Há, por exemplo, um maior destaque para versões extremas do liberalismo econômico, como o libertarianismo, o anarcocapitalismo e o minarquismo. Outra mudança está nas performances do círculo mais próximo de Bolsonaro. As semelhanças de família entre o discurso do presidente e o campo do fascismo são evidentes. No entanto, há, por outro lado, distinções importantes, como o próprio lugar da hierarquia e do partido, entre o bolsonarismo e o integralismo.

Por fim, há que se destacar como existe certa deflação de pretensões de coerência, algo bem distinto da tradição da direita brasileira. Nesses políticos e intelectuais, ocorrem uma valorização da performance e uma flutuação entre argumentos diversos que, por vezes, parecem ganhar coesão apenas a partir da imagem dos seus inimigos.

IHU – Existem diferenças no interior dos movimentos de extrema-direita brasileiros? Em que consistem?

Jorge Chaloub – A extrema-direita é um campo heterogêneo, composto por distintos atores e linguagens políticas. A recusa radical à ordem democrática de 1988 e a incompatibilidade com qualquer lógica de democracia do pós-1945 são o que aproxima estes atores e dão a suas linguagens políticas certa semelhança de família, já que estamos menos diante de uma mesma visão de mundo do que repertórios de ação e reflexão política que compartilham de um diagnóstico similar sobre o presente, de um mesmo senso de urgência em relação à conjuntura e de uma radicalidade comum em seus meios e fins políticos.

Vejo a ultradireita como composta por três linguagens políticas centrais: a reacionária, a ultraliberal e a propriamente fascista. De forma bem sumária, o reacionarismo se define pela contraposição entre um passado utópico, definido a partir de uma perspectiva religiosa antissecular, e um presente de crise profunda, que seria superado apenas pela reconstrução, tão fiel quanto possível, daquele passado idealizado. Esta linguagem foi frequentemente conjugada por discípulos de Olavo de Carvalho, entusiastas do integrismo católico, setores da extrema-direita neopentecostal, entre outros. O reacionarismo se distingue do conservadorismo, repertório central da direita brasileira, pela intensidade da sua recusa ao presente e pelos métodos de transformação radical da realidade, que flertam diretamente com rupturas políticas violentas.

Uma segunda linguagem é o ultraliberalismo, composto por entusiastas de uma versão particularmente do liberalismo econômico, que recusa não apenas qualquer ideia de Estado, mas também valores comuns e bens públicos. Fortemente inspirada no libertarianismo e no anarcocapitalismo norte-americanos, o ultraliberalismo almeja construir uma sociedade formada exclusivamente por indivíduos e famílias, cuja autonomia não deve ser afetada por qualquer intenção de reduzir a desigualdade, construir bens comuns, ou demais ações que limitem a liberdade individual, vista como quase absoluta. A radicalidade da crítica ao Estado e uma certa recusa a mediação das instituições distinguem esta linguagem política do neoliberalismo que pautou, por exemplo, as reformas econômicas do governo Fernando Henrique. Trata-se de uma linguagem particularmente popular em certos setores do empresariado, com significativa representação no debate público e alguma penetração em profissionais liberais da classe média tradicional.

Por fim, a terceira linguagem política da ultradireita é a fascista, definida pela defesa pública da violência como desbravadora de um novo mundo, pela crítica à decadência das instituições democráticas, pelo anti-intelectualismo, pelo entusiasmo ante um conceito de masculinidade violenta e patriarcal, pelo estímulo a milícias armadas despidas de uma organização hierárquica, e outras possíveis características. Tanto pelo uso, por parte da militância de esquerda, quanto pela crítica ao uso do conceito de fascismo para interpretar a ditadura civil militar, houve inicialmente muita resistência no uso do termo para caracterizar o governo Bolsonaro. Ao longo dos últimos quatro anos, contudo, a presença de motes e performances fascistas por parte de integrantes do governo, dos partidários e da família de Jair Bolsonaro tornaram cada vez mais injustificável não recorrer ao amplo material de reflexões em torno da tradição fascista. As mudanças históricas sensíveis são comuns a todas as ideologias políticas.

O fascismo e o bolsonarismo

Creio que o fascismo é particularmente relevante para caracterizar um outro conceito frequentemente utilizado para tratar das direitas contemporâneas: o bolsonarismo. Do mesmo modo que não se pode confundir a crise democrática com a emergência da ultradireita, mesmo que os processos estejam relacionados, não se deve reduzir a ultradireita a Bolsonaro. O bolsonarismo é parte central da ultradireita, mas não a esgota. Neste sentido, o conceito de fascismo é fundamental para dar conta que, entre as linguagens políticas da ultradireita, é o fascismo que melhor define os discursos e performances pessoais de Jair Bolsonaro.

Isto não implica, todavia, que ele não faça uso de argumentos ultraliberais, conservadores ou reacionários. Um dos elementos importantes de trabalhar com as linguagens políticas é poder distinguir linguagens e atores, o que permite melhor entender como os atores se apropriam parcialmente das linguagens e as conjugam para construir a identidade do campo da ultradireita.

IHU – Recentemente, ao comentar as manifestações bolsonaristas, o senhor declarou que a sociedade “naturalizou a violência”. Pode explicar como isso aconteceu e quais suas implicações políticas e sociais?

Jorge Chaloub – Há uma relação intrínseca entre parte da ultradireita e a violência, que pode ser mais imediata, como no caso do fascismo, ou mais mediada. Naturalizar a extrema-direita é, em parte, também fazê-lo em relação à violência na política. É necessário sempre apontar, porém, o óbvio: a sociedade brasileira já convivia com altas doses de violência bem antes do protagonismo da ultradireita. Os dados de mortes violentas, por si só, já são indícios eloquentes. É também sempre necessário destacar como o perfil territorial, racial e etário dessas mortes e vítimas de violência, jovens negros periféricos, é bem determinado.

Isso não implica, entretanto, em tomar a ultradireita como expressão de qualquer verdade sobre a sociedade brasileira. Se, por um lado, a violência cotidiana pode reduzir a sensibilidade em relação aos discursos e práticas do campo, por outro, a centralidade da violência na política, sobretudo pela defesa explícita do extermínio do outro, traz novas e graves consequências, que podem mesmo intensificar esta violência que já alcançava índices absurdos mesmo antes da atual crise democrática.

IHU – Qual é o papel das instituições, como o Judiciário, na ascensão de movimentos de extrema-direita? Como avalia as acusações dos movimentos de extrema-direita ao próprio Judiciário?

Jorge Chaloub – O Judiciário e o Ministério Público tiveram um papel relevante na ascensão de movimentos de extrema-direita. O uso do futuro do pretérito sempre soa perigoso, mas é possível, no mínimo, afirmar que sem a ação da Lava Jato, com sua enorme contribuição para a criminalização da política no Brasil, a trajetória da ultradireita não seria a mesma.

Tal relação não é peculiaridade brasileira. São muitas as pesquisas sobre as relações entre a Mãos Limpas, inspiração da Lava Jato segundo o próprio Sérgio Moro, e o crescimento da extrema-direita na Itália.

O protagonismo político do Judiciário e do Ministério Público contribuiu, primeiramente, por seu papel fundamental no aprofundamento da crise democrática brasileira, ao fortalecer a ideia de que a ordem política seria essencialmente corrupta e que isso só poderia ser resolvido por meio de instrumentos de força e punição. Deve-se ressaltar que, se, por um lado, a ultradireita não se limita a um simples efeito da crise democrática, por outro, sua emergência está diretamente relacionada a este cenário.

Punitivismo

A contribuição de juízes, promotores e procuradores não se esgotou por aí. Seus discursos públicos fortalecerem diretamente um imaginário punitivista, que certamente jogou água no moinho da ultradireita e construiu uma narrativa pública moralizante, que colocava as causas da crise econômica e política em fundamentos morais e, em movimento muitas vezes explícito, vinculava a imoralidade ao campo da esquerda. A construção de tal imaginário foi fundamental para que parte da população visse com bons olhos a campanha de Bolsonaro, que conjugava um discurso genérico de combate à corrupção a um imaginário policialesco e amparava seu discurso em uma concepção moral do mundo, no qual a degeneração do Estado e da sociedade tinham por contraponto um conceito idealizado de família.

Há, sem dúvida, fortes afinidades eletivas entre o imaginário da Lava Jato, com destaque para alguns dos seus protagonistas, como Moro e Deltan Dallagnol, e o bolsonarismo. A adesão de Moro ao governo não se restringe ao cálculo de vantagens num curto prazo, mas também se ampara na ideia de um inimigo comum, o PT, e em várias semelhanças em suas visões de mundo.

Da união à desavença

As lideranças da Lava Jato e seus apoiadores no STF calcularam mal as possíveis consequências dos seus atos para seu próprio lugar de poder. Eu e Pedro Lima tratamos desta ideia mesmo antes da vitória de Bolsonaro, em texto de 2018: o Judiciário e Ministério Público nunca consideraram o quanto parte do seu poder depende de certa ideia de normalidade democrática. Ao contribuírem para a crise na democracia e para o surgimento de atores que constroem seu discurso público em oposição a ela, acabam por fortalecer o que, mais à frente, pode legá-los ao ostracismo. Mesmo que ainda se mantenha no mundo público, Sérgio Moro é, hoje, um personagem menor da política nacional. Luís Roberto Barroso, grande entusiasta e defensor público da Lava Jato, se tornou alvo preferencial do bolsonarismo.

Não estamos diante de uma desavença de ocasião. Uma das características da ultradireita é sua oposição aberta a qualquer dinâmica institucional. As instituições são vistas como falsificações, mediações indevidas entre o líder e a vontade do povo, como nos casos da linguagem política fascista ou reacionária, ou como usurpações da liberdade individual, na lógica da linguagem ultraliberal. O Judiciário e o Ministério Público perdem, com isso, talvez sua principal fonte de legitimidade.

IHU – Quais os desafios para superar essa lógica de violência?

Jorge Chaloub – Os desafios devem ser pensados em tempos distintos. Primeiramente, é necessário punir os responsáveis por discursos de ódio, tentativas de golpes de Estado e outros crimes contra o Estado de direito. A contemporização contribui para a normalização dessas práticas e, com isso, para a persistência de violência contra minorias, agressões contra opositores políticos, entre outros eventos que se tornaram corriqueiros.

No tempo mais longo, o desafio é reorganizar a disputa política brasileira. Quando a ultradireita se torna um dos campos hegemônicos e é normalizada, quando o golpe passa a ser um recurso legítimo, como no Brasil dos últimos anos, dificilmente conseguiremos sair de uma espiral de crises e de reiteração dessa lógica de violência.

IHU – Quais os principais desafios do novo governo?

Jorge Chaloub – O novo governo chega ao poder amparado em uma grande vitória eleitoral. Lula demonstrou notável força política ao derrotar, pela primeira vez, um candidato à reeleição, o que é ainda mais notável dado o uso ostensivo, sem qualquer limite, da máquina pública. Apesar do feito, a eleição demonstrou a consolidação do campo da ultradireita no cenário político brasileiro. As vitórias para o parlamento e governos dos estados demonstraram grande capacidade de mobilização, sobretudo de atores vinculados ao bolsonarismo.

O grande desafio para o governo Lula é conseguir mudar o padrão atual da disputa política, o que passa por não mais reproduzir a atual dinâmica de normalização da ultradireita. Como apontei na resposta anterior, a perpetuação da atual disputa coloca um sério risco à ordem democrática. A tarefa é dura pois não apenas a ultradireita tem uma base social significativa, como parte dessa base está disposta a usar de todos os meios para romper com a democracia. Entre outros esforços, o caminho para superar o cenário está em conseguir separar o setor mais radicalizado, bem representado à frente dos quartéis, da maioria de eleitores que escolheram Bolsonaro por razões diversas.

Este esforço não pode, entretanto, ser feito apenas pelo PT. Se a direita tradicional, o Judiciário e a imprensa seguirem o mesmo roteiro que construiu a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018, a tendência é caminharmos rumo a um abismo ainda mais fundo.

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