Feminismos do Sul: uma política relacional em vista do bem comum. Entrevista especial com Lina Alvarez Villarreal

“As feministas do Sul estão propondo uma autêntica política do cotidiano porque o caminho da transformação social não é fazer uma revolução que buscaria substituir uma totalidade por outra totalidade em um só golpe, mas é um caminho que se parece mais com o estruturalismo porque considera que a transformação da matriz colonial e patriarcal deve vir de um movimento mais modesto, mas talvez mais realista e efetivo, que consiste em trabalhar nas brechas e nas fraturas da realidade social existente”, afirma a filósofa colombiana.

Foto: Reprodução | Radark

Por: Tradução e edição: Patricia Fachin | 02 Dezembro 2022

“O que as avós afro-colombianas têm nos ensinado é que o território é alegria e dor, que o território é vida e a vida não tem preço, que o território é dignidade e que a dignidade não tem preço”. Citando estas palavras de Francia Márquez, ativista colombiana e primeira vice-presidente negra do país, Lina Alvarez Villarreal, da Universidad de los Andes, resume a perspectiva política dos feminismos do Sul. Segundo ela, com os estudos elaborados pelas mulheres dos movimentos do bem-viver e pesquisadoras feministas, “está surgindo uma episteme diferente da moderna, que nos mostram uma forma e prática de vida que se centra no elemento relacional que é o ‘território, corpo e terra’, sempre coletivo, com as relações históricas entre os humanos e a terra”.

Na conferência intitulada “Transgressões epistêmicas: a práxis decolonial como antídoto ao terricídio”, ministrada no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, como parte do “Ciclo de Estudos Saberes Decoloniais: inquietações e saídas às crises de hoje”, Lina explica que “o objetivo das feministas e dos feminismos do Sul não é, em absoluto, construir sociedades em que as mulheres ocupem o atual lugar dos homens – e essa é a maior diferença em comparação com alguns feminismos do Norte – porque isso suporia manter uma lógica patriarcal baseada em hierarquias de gênero. O que buscam os feminismos latino-americanos é construir uma sociedade comum baseada em uma concepção diferente da vida. O feminismo e os feminismos do Sul são pensados como uma função social. Esse é um dos meus pontos centrais”.

De acordo com ela, os feminismos do Sul não propõem “simplesmente que as mulheres ocupem os lugares dos homens ou lugares privilegiados de poder, mas que o feminismo seja pensado como uma função social, construído a partir da história das mulheres, onde o importante é aprender com as formas de se relacionar com os demais, que é caracterizada por certos princípios: o enraizamento, o cuidado, a relacionalidade, a pluralidade e a interdependência”.

A seguir, publicamos a conferência no formato de entrevista.

Lina Alvarez Villarreal

Foto: Uniandes

Lina Alvarez Villarreal é doutora em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, mestre em Filosofia, com especialização em Filosofia Alemã e Francesa, pela mesma universidade. É professora assistente no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de los Andes, Colômbia.

Confira a entrevista.

IHU – O que propõem os feminismos do Sul? Como eles fazem frente ao colonialismo?

Lina Alvarez Villarreal – Hoje, alguns dos pensamentos que estão levando, de maneira mais crítica e radical, ao pensamento decolonial são os pensamentos ecológicos e a crítica que as mulheres do movimento pelo bem-viver têm chamado de terricídio. Esta é uma perspectiva ecológica e decolonial porque trata de maneira crítica a destruição da natureza com relação à destruição dos seres humanos e dos modos de vida não ocidentais, propondo uma solução que constitui várias alternativas.

As líderes indígenas dizem que não buscam a propriedade da terra; propõem outra forma de habitá-la. Isso resume o alcance crítico e transformador dos feminismos latino-americanos. Essas reflexões não pretendem encontrar um lugar dentro das atuais estruturas sociais dominantes, sejam elas econômicas, políticas, ou culturais, mas buscam transformar profundamente essas estruturas, abrindo caminho para outras formas de organizar as relações sociais. Para alcançar essa transformação, as feministas do Sul começam por enraizar sua perspectiva nas memórias das lutas coletivas inscritas nos corpos das mulheres e nas grafias de seus territórios. Então, fazem um duplo movimento: de um lado, denunciam um caráter intrinsecamente assassino e destrutivo do projeto histórico de acumulação, sobre o qual se construiu a ordem social dominante e, de outro lado, propõem alternativas cuja singularidade radica na reprodução da vida humana. Trata-se de um lugar privilegiado no qual podem construir diferentes tecnologias de sociabilidade, capazes de nos ensinar outras formas de relacionamento com o outro, mulheres, povos racializados e a natureza, outras formas de organizar a economia, a política e as relações sociais em geral.

Feminismos do Sul

O objetivo das feministas e dos feminismos do Sul não é, em absoluto, construir sociedades em que as mulheres ocupem o atual lugar dos homens – e essa é a maior diferença em comparação com alguns feminismos do Norte – porque isso suporia manter uma lógica patriarcal baseada em hierarquias de gênero. O que buscam os feminismos latino-americanos é construir uma sociedade comum baseada em uma concepção diferente da vida. O feminismo e os feminismos do Sul são pensados como uma função social. Esse é um dos meus pontos centrais. Não é simplesmente que as mulheres ocupem os lugares dos homens ou lugares privilegiados de poder, mas que o feminismo seja pensado como uma função social, construído a partir da história das mulheres, onde o importante é aprender com as formas de se relacionar com os demais, que é caracterizada por certos princípios: o enraizamento, o cuidado, a relacionalidade, a pluralidade e a interdependência.

IHU – Em que consiste a epistemologia desses feminismos e qual sua singularidade?

Lina Alvarez Villarreal – As feministas do Sul enraízam suas perspectivas na memória coletiva das lutas das mulheres que foram historicamente racializadas. Esse é um gesto epistemológico que implica enraizar a análise ou a crítica do sistema dominante a partir do que é, recordando a exterioridade a partir da exterioridade.

A primeira exterioridade é a perspectiva das comunidades que foram historicamente racializadas, as perspectivas do que [Frantz] Fanon chama de “os contextos dos condenados da terra”. Trata-se da adoção de uma perspectiva decolonial. Mas há uma segunda exterioridade: a luta das mulheres que foram inferiorizadas dentro dessas mesmas comunidades racializadas por causa da sua condição de mulher, mas que desenvolveram, ao longo de suas histórias, conhecimentos e formas de estabelecer relações sociais cujo objetivo era a regeneração da vida. Essa é a opção da perspectiva feminista decolonial. As feministas do Sul dirigem sua atenção à história colonial porque temos que olhar para trás e enraizar nossa história na história colonial e anticolonial porque essa é uma história de lutas e porque o único que temos diante de nós é o passado. Para essas pensadoras, o passado constitui o futuro em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque nos lembra as formas de opressão e violência a que os povos foram submetidos. Em segundo lugar, no sentido de que é no passado que se encontram os ciclos dos projetos históricos autônomos que a colonialidade tem tentado destruir e que é necessário recuperar para seguir existindo.

Pensamento decolonial

1492 é o momento crucial para os pensadores e pensadoras que fazem parte da virada decolonial, incluindo as feministas do Sul, pois, como mostraram os pensadores do projeto decolonialidade/modernidade, 1492 dá lugar a novas entidades geossociais antes inexistentes, como a identidade de América, a identidade europeia, a noção de indígena, de branco, de branca, de negro e da mulher negra. Também dá lugar ao eurocentrismo como modelo de conhecimento cuja principal característica é estabelecer a produção de um conhecimento europeu que se estabelece como padrão e através do qual se usam os conhecimentos e práticas não europeus ou não modernos. Nesse período, também ocorre a exploração da maior parte da humanidade, que é relegada à noção de infra-humanidade, de subnacionalidade ou, do que alguns autores chamam, de exploração da força de trabalho sem remuneração.

Assim, as feministas do Sul tomam como ponto de partida, em suas análises, o que poderíamos chamar de trauma colonial, que enfatiza o elemento traumático, ao mesmo tempo presente e que trabalha o nosso inconsciente e o nosso inconsciente coletivo.

IHU – Pode explicar melhor esta ideia? Como o trauma colonial se manifesta ainda hoje?

Lina Alvarez Villarreal – As feministas do Sul tomam esse ponto de partida, que não é uma identidade fixa ou imutável, porque a experiência da conquista tem configurado não só as estruturas sociais, mas também as subjetividades contemporâneas e a forma como essas subjetividades se relacionam entre si.

A articulação do enfoque decolonial com a perspectiva de gênero permite aos feminismos do Sul revelar as formas de opressão que se produzem nos feminismos do Norte, especialmente propondo uma crítica materialista da categoria “mulher”. Para os feminismos do Sul, assim como para os feminismos afro-estadunidenses, o uso da categoria mulher é uma ferramenta linguística de poder que contribui para obscurecer as múltiplas formas de dominação a que estão submetidas as mulheres não brancas.

A questão importante é que a linha de cor determina os tipos de violência a que são submetidos os corpos. A história moderna colonial mostra que não é o mesmo ser uma mulher branca, uma mulher branca mestiça, uma mulher indígena ou uma mulher negra, pois a raça opera justamente como marcador de poder que serve para diferenciar as formas de exploração do trabalho humano e do trabalho da natureza, distinguindo a forma de remuneração entre elas e, em alguns casos, sem oferecer nenhum tipo de remuneração e reciprocidade. Isso é próprio da decolonialidade. A dimensão colonial se expressa, então, na medida em que a violência toma matizes completamente diferentes dependendo do lado em que se está nessa linha de cor, ou seja, no lado escuro ou no lado claro. O que mostram as críticas dos feminismos do Sul e estadunidenses é que os privilégios das mulheres brancas e mestiças brancas foram construídos a partir de pressões. Então, é preciso manter uma pressão crítica frente a essa situação.

O termo “mulher” também é uma ferramenta, nos dizem os feminismos do Sul, para colocar a luta das mulheres brancas como um modelo de libertação feminina. A crença é que as mulheres racializadas devem seguir o mesmo caminho de libertação das mulheres do Norte para salvarem-se. Isso se observa quase sempre no feminismo institucional – e não só nos do Norte, obviamente, mas nos feminismos que, por exemplo, estão muito presentes nas agências de  cooperação internacional. O problema, aqui, é que persiste uma concepção das mulheres racializadas, das mulheres do Sul, como agentes passivas do conhecimento, incapazes de compreender seus próprios problemas ou de formular alternativas.

Mas a crítica – e isso é o que me parece mais interessante – das feministas do Sul aos feminismos do Norte consiste em evidenciar a reprodução de uma forma de colonialidade que subalterniza as mulheres do Sul. Ou seja, o interessante da crítica das feministas do Sul é que ela mostra que essa forma de operar, como a forma de pensar a libertação feminina em certos feminismos do Norte, é ineficaz para a luta de libertação. As feministas do Sul explicam que o patriarcado opera de maneiras diferentes em diferentes geo-histórias justamente por causa da lógica da colonialidade.

Isso implica que há diferentes formas e mecanismos de dominação em diferentes lugares. É por isso que não teria sentido lutar contra o patriarcado ou contra o colonialismo, utilizando as mesmas ferramentas e as mesmas estratégias em todas as partes. As feministas do Sul nos mostram, com sua perspectiva crítica, por um lado, que o fato de ser mulher não nos faz imunes a ocupar o lugar de dominação patriarcal e, por isso, é importante cultivar uma atitude crítica e reflexiva.

É necessária uma autolimitação da perspectiva feminista, enraizar-se em um lugar com uma história de vida e de luta. Só a partir desse enraizamento é possível estabelecer uma relação autêntica com outras perspectivas que são igualmente limitadas. Essa intersecção, essa relação de perspectivas situadas, permitirá compreender, com uma maior inteligência, o conjunto dos mecanismos de poder e a maneira como eles operam de modo diferenciado, mas interconectados.

Situacionalidade

O argumento mais potente em certos feminismos do Sul gira em torno da situacionalidade e das violências que são exercidas sobre nossos territórios, para colocá-las em conexão com outras perspectivas e outras lutas e para entender qual é a relação entre essas diferentes formas de dominação. Deste modo, poderíamos compreender tanto as singularidades de cada forma de dominação e de libertação, assim como as linhas de continuidade entre essas formas de dominação. É por isso que as feministas do Sul propõem que se pense e se pratique o feminismo de forma decolonial. Isto é, com o objetivo de incluir múltiplos mundos ao invés de excluí-los.

Também é através da interrogação das geo-histórias com enfoque em gênero que as feministas do Sul conseguem trabalhar as formas de dominação patriarcal existentes em seus próprios povos. Especificamente, as feministas do Sul criticam a ideia, apoiada pelos próprios sujeitos racializados, de que o domínio do masculino sobre o feminino constitui uma senha de identidade essencial da comunidade que teria que se preservar para lutar contra o poder colonial. O que fazem as mulheres feministas do Sul é ancorar a história das lutas das mulheres dentro de suas comunidades para mostrar o caráter histórico do patriarcado e a possibilidade de acabar com ele. As feministas do Sul são, então, capazes de criticar a tradição a partir da sua própria tradição e, por isso, creio que a perspectiva feminina se converte no antídoto contra o fetichismo do passado, que é um dos perigos dos pensamentos decoloniais no sentido de pensar que no passado tudo era melhor e é preciso voltar a ele. Isso pode constituir, como dizia Fanon, uma consciência melancólica que impede a transformação do presente. Isso, as feministas do Sul, com sua epistemologia enraizada nas lutas das mulheres racializadas, impedem que aconteça.

IHU – O que significa a noção de terricídio?

Lina Alvarez Villarreal – Há um elemento importante com a crise ecológica, com o que se poderia chamar de terricídio, a violência cometida nos territórios corporais, nos territórios das mulheres racializadas. Os colonizadores ocultaram o conhecimento autóctone como mecanismos de poder que são necessários para submeter os povos que buscam dominar. Mas as feministas do Sul ampliaram a compreensão desses mecanismos de dominação ao mostrarem o papel decisivo que a violência contra as mulheres racializadas tem desempenhado no processo de conquista e decolonização até hoje.

Violência

A tese central é que a exploração das mulheres e dos corpos femininos, como os corpos da natureza, os corpos das crianças, ou os corpos de pessoas com gênero não heteronormativo, não é uma simples dominação entre outras. Na realidade, a violência que se exerce sobre os corpos femininos é central para entender a lógica da colonialidade porque é dos corpos femininos que a humanidade tem aprendido e segue aprendendo a inferiorização do outro, sua dominação e, na era capitalista, sua mercantilização.

Patriarcado

Segundo as feministas do Sul, a violência exercida contra os corpos femininos e feminizados tem pelo menos duas funções. Em primeiro lugar, serve para produzir uma subjetividade psicopática, insensível à dor dos demais, e capaz de realizar atos de crueldade contra todos os seres vivos. Em segundo lugar, a violência contra os corpos femininos e feminizados constitui uma arma de guerra para desapropriar povos inteiros de seus territórios. O patriarcado opera através de um mandato de masculinidade que requer que os homens demonstrem continuamente ao que pertencem, a uma espécie de corporação, o masculino, expressando seu poder sobre os corpos das mulheres. Esse mandato de masculinidade opera em todas as sociedades patriarcais. O patriarcado, inclusive, existia antes do colonialismo. Com a intensificação do projeto de acumulação e de atividades que inauguram no colonialismo, a violência contra as mulheres começa a ser utilizada como arma de guerra em contextos como o latino-americano, onde isso é muito claro e onde a guerra de conquista nunca terminou.

O patriarcado sofreu uma transformação radical com a conquista e com a intensificação do capital no neoliberalismo. Intensificou-se essa forma de violência contra as mulheres. A violação, o assassinato e o desmembramento dos corpos das mulheres são práticas utilizadas pelos grupos armados para expressar seu controle e poder soberano sobre outros grupos inimigos. É aqui que o corpo das mulheres começa a se converter em corpo-território, território no sentido de lugar onde se marca o poder dos grupos armados. Essa violência de gênero, no entanto, não se dirige exclusivamente a outros grupos armados. Digamos que o exercício de violência praticado sobre os corpos das mulheres é uma maneira de espetacularizar o poder sobre esses corpos e enviar uma mensagem a outros grupos armados, que podem ser estatais, paraestatais, ou não estatais, mas não se dirige particularmente às mulheres; é uma forma de espetacularizar o poder. A violência contra o corpo das mulheres e dos corpos feminizados, em geral, também é utilizada como meio para desmantelar o tecido comunitário dos povos negros, campesinos e autóctones com o fim de se apropriar das terras habitadas por eles e fazê-los trabalhar em favor da economia extrativista.

Para entender isso, temos que lembrar que, historicamente, as mulheres negras, indígenas e campesinas da América Latina sempre desempenharam a função social vital de tecer, preservar e transmitir as práticas e conhecimentos necessários para a sobrevivência dos povos. Pensemos, por exemplo, no papel que desempenham na conservação das sementes, na transmissão da língua, na aprendizagem das formas de tecido social através das quais os povos contam suas histórias. Atacar seus corpos é, portanto, uma forma de interferir no modo de vida dos povos e de fazê-los entrar na lógica do capital.

Aterrorizados e aterrorizadas pela crueldade, pela violência contra os corpos das mulheres, as comunidades se veem obrigadas a transformar suas práticas cotidianas e seus mundos ameaçados ou destruídos. A violência contra os corpos feminizados se converte em mecanismos, por excelência, da acumulação. Essa violência forma parte das pedagogias da crueldade. Essas pedagogias da crueldade produzem uma subjetividade que se sente exterior à vida para dominar a partir da exterioridade, para colonizar, desapropriar e saquear. Portanto, a violência contra as mulheres não é uma prática cujo efeito se limita ou afeta somente as mulheres, mas é um meio para produzir uma subjetividade insensível ao sofrimento dos demais: povos racializados, mulheres, crianças, a terra.

As primeiras vítimas do mandato de masculinidade são os homens no sentido de que quem, cronologicamente, tem que primeiro praticar uma violência sobre si mesmo são os homens, para deixarem de sentir o sofrimento dos outros e insensibilizarem-se frente ao sofrimento. A exploração dos sujeitos só é possível se produzem, no sujeito que exerce a violência, o sentimento de estar separado do tecido da vida, isto é, se nesse sujeito é produzida a ideia de que os outros são meros objetos. A subjetividade patriarcal na era da colonialidade tem uma estrutura psicopática cuja pulsão predominante é instrumental e não relacional. Essa forma de se relacionar com o tecido da vida é o que determina se o sujeito é patriarcal ou não; não é tanto se seu gênero é identificado como mulher ou como homem ou como pessoa não binária – a diversidade é algo importante nos feminismos, mas, não me entendam mal, o que é propriamente patriarcal é uma lógica de estar na vida, uma função social, é uma ação, uma atitude concreta em relação ao outro e a si mesmo caracterizada pela insensibilidade, pela coisificação, por uma racionalidade e uma sensibilidade instrumental.

Trauma colonial e regeneração

O trauma colonial não deve ser entendido como exclusivamente aos corpos humanos, mas ao tecido da vida em sua totalidade. As feministas discutem as violências contra os corpos das mulheres, mas a violência não se limita a isso; pelo contrário, ele se amplia a como essas racionalidades e práticas estão estendidas e têm relação com os territórios, com o tecido da vida em geral, com os sujeitos que fazem parte da natureza e que se sentem desconectados. É isso que explica a importância da noção de terricídio formulado pelas mulheres indígenas do movimento do bem-viver.

No termo terricídio, a noção de terra deve ser entendido de forma relacional. Por um lado, faz referência a como a crueldade praticada contra as mulheres racializadas desenraiza o tecido da comunidade e obstaculiza a reprodução de conhecimentos que contribuem para a regeneração da terra. Este ponto é importante: quando se destroem os conhecimentos dos modos de vida das comunidades que foram historicamente racializadas, não só se destrói esse elemento cultural, mas se destrói todo o conhecimento cosmológico, de preservação, conservação e relação com o resto da natureza, e que tem contribuído historicamente para a sua regeneração. Por isso é um problema ecológico e não é simplesmente um problema cultural e humano; é mais do que isso.

Também precisamos entender que as economias extrativistas que envenenam os rios, contaminam o ar, fazem adoecer os solos e destroem os campos, envenenam e destroem os corpos. Isto é, destroem os conhecimentos e os modos de vida que foram produzidos historicamente por povos racializados que estão em conexão com a terra. Isso afeta o restante dos ecossistemas, mas também destrói os corpos humanos através de todos esses processos de envenenamento, contaminação dos rios, destruição dos campos e de fontes alimentares. Se este é o caso, é porque o corpo humano não está simplesmente em uma relação de dependência com a terra; o corpo humano é terra. Isso é algo muito presente nos pensamentos das feministas do Sul, mas também o encontramos em autores muito influentes do pensamento decolonial. Somos terra e isso é o que esquecemos.

Vida como unidade

A noção de corpo-território empregado pelas feministas do Sul expressa e está embasada em uma concepção da vida como unidade. Os termos “corpo-território”, mas também “território, corpo, terra”, fazem referência tanto à natureza relacional e interdependente do corpo humano com o lugar que habita, como, de maneira particular, tem feito com que o corpo das mulheres racializadas funcione, historicamente, como lugar de expressão do poder patriarcal. Esses termos “território, corpo e terra” são interessantes porque assinalam o elemento relacional, ontológico, de interdependência do corpo humano com o resto da terra no sentido de que ele mesmo é terra e ele mesmo necessita dela para sua sobrevivência e conversação. Para estar bem e viver bem, o homem necessita da terra e necessita estabelecer relações de reciprocidade com o restante da terra.

Creio que nesses termos encontramos a expressão de uma ontologia relacional no sentido de que os povos têm aprendido a sentir a natureza como um tecido ao qual pertencem e que compõe sua identidade. Podemos chamá-la de ontologia relacional, projeto histórico relacional, mas o que me interessa é que o termo mostra que o caminho da libertação só pode ser alcançado liberando simultaneamente a terra e as mulheres e dando autonomia a seus corpos, dando autonomia aos povos sobre seus territórios.

IHU – Qual é a proposta dos feminismos do Sul nesse sentido?

Lina Alvarez Villarreal – Gosto muito dessa proposta da política em chave feminina. As feministas do Sul sustentam que a chave para sair do ciclo vicioso da violência patriarcal, colonial, capitalista e terricídia é voltar à história das mulheres. É necessário partir da esfera da reprodução que, historicamente, tem sido feita com as mulheres, ou seja, do ponto de vista das feministas do Sul isso significa que a divisão sexual e racial do trabalho não deve ser operada como veículo de dominação, mas como política criativa das mulheres, a partir das estratégias coletivas das suas vivências. As mulheres do Sul têm conquistado tecnologias de sociabilidade específicas, estilos de negociações, de representação, de gestão não patriarcais que constituem verdadeiras alternativas à lógica da política centrada no Estado e na lei econômica centrada no valor do dinheiro.

A chave, pois, está na análise das práticas cotidianas situadas e existentes na história das mulheres, selecionando os elementos autenticamente transformadores que há nessas histórias e formulando, dessa forma, horizontes alternativos de desejos de homens e mulheres que diariamente transformam e se esforçam por transformar a realidade social, situada e concreta. O papel, então, da teoria social é indispensável porque permite identificar as características e os mecanismos de produção e reprodução dos modos de vida ou dos projetos históricos embasado na acumulação de relações sociais que já existem, tanto no passado como no presente, mas que têm sido ocultados pelos mecanismos de poder colonial. O importante e a chave da teoria é que se localizem essas estratégias e tecnologias de sociabilidade e os designe com um vocabulário que expresse seu valor.

Política do cotidiano

Creio que as feministas do Sul estão propondo uma autêntica política do cotidiano porque o caminho da transformação social não é fazer uma revolução que buscaria substituir uma totalidade por outra totalidade em um só golpe – e essa é a diferença de algumas perspectivas marxistas que desejam tomar o poder e desde lá fazer a revolução e mudar todas as estruturas –, mas é um caminho que se parece mais com o estruturalismo porque considera que a transformação da matriz colonial e patriarcal deve vir de um movimento mais modesto, mas talvez mais realista e efetivo, que consiste em trabalhar nas brechas e fraturas da realidade social.

Prestar atenção a essas práticas cotidianas permite descolonizar nossa imaginação e nossa esperança porque são nessas práticas que estão se materializando os sonhos de mudança. Ao introduzi-los no âmbito do existente através da linguagem, da teoria, o que fazemos é voltar a dirigir a atenção àquilo que havia sido ocultado e parecia inexistente. E, ao fazê-lo, realmente produzimos uma mudança na sociedade porque a mudança diz respeito a crer e, ao crer, torná-lo possível.

É importante, nesse ponto, ressaltar que é necessário voltar à história das mulheres e às tecnologias que foram se desenvolvendo, politicamente, criativamente e coletivamente pelas mulheres. Quer dizer, não se trata de voltar à história das mulheres que, por serem mulheres, têm uma essência que seja por si cuidadora e transformadora. Não. Mas é porque dentro da história delas e dos lugares de dominação, há lugares de resistência. Esses lugares de dominação não são somente lugares de dominação, mas são também lugares de resistência. É disso que se trata: de dar um valor a essas práticas e às estratégias de resistência e re(existência).

Justamente a partir das análises das instituições sociais e das lutas comunitárias indígenas, especialmente na Bolívia, no México e na Guatemala, é possível propor uma perspectiva em chave feminina singular. A política, nesse sentido, tem a capacidade propriamente humana de dar forma às relações sociais, que são relações de comunidade. A capacidade de ser comunidade não é uma característica propriamente humana – há todas as comunidades bióticas e essa é uma das características de todos os seres vivos. Mas o que é propriamente humano é a capacidade de decidir coletivamente, ou seja, decidir que forma dar à comunidade. O próprio da política é garantir o direito de decidir ou o exercício da capacidade de intervir diretamente nas tomadas de decisões sobre aquilo que nos interessa porque nos afeta.

Então, uma política feminina poderia garantir o direito de intervir diretamente na tomada de decisão. O que agrega este pensamento é que uma política em chave feminina põe no centro quais são as decisões e objetos por trás de uma política em chave feminina, isto é, tomar decisões acerca das condições necessárias para a regeneração da vida. Essa política é feminina porque se centra no cuidado da regeneração das condições materiais e simbólicas de existência de uma comunidade e se centra também na apropriação coletiva da riqueza que tem sido produzida coletivamente. Isto é, fazer com que quem tem produzido determinados bens tenha também o direito de usufruir dos recursos oriundos da produção porque está participando do processo. Para isso, devem se criar certas normas de acesso e, por este motivo, é importante criar uma política da proximidade, em que é possível intervir diretamente.

Produção do comum como terceira via

Frente à visão moderna que divide entre o público e o privado, a política em chave feminina propõe a produção do comum como uma terceira via. O comum se constitui como o conjunto das relações sociais que dão lugar a produtos ou riquezas materiais e simbólicas que podem ser consumidos por quem participa do processo de produção. A ênfase aqui é no processo de construção de vínculos que vão sendo tecidos através do processo mesmo da produção desses bens materiais ou simbólicos. Pensemos, por exemplo, na construção de uma horta comunitária. O importante, é claro, são os produtos e os frutos que as pessoas vão consumir por terem trabalhado na horta comunitária, mas não somente; é todo o processo que foi tecido para poder se chegar a esses bens, como compartilhar saberes, compartilhar o mesmo espaço onde se vão criando laços de proximidade, laços sociais.

A política em perspectiva feminina é uma política de valor de uso porque utiliza o valor como uma forma de reconstrução do tecido relacional da vida e das relações sociais entre o humano e o não humano. Aqui é a produção de valor de uso que predomina sobre a produção de valor do dinheiro. Não se limita a produção de bens materiais de consumo para a satisfação das necessidades puramente fisiológicas, mas é, antes, uma forma de ter relações com os membros da comunidade, humanos e não humanos, presentes também nos ancestrais, satisfazendo as necessidades materiais e simbólicas. Essas práticas, em uma política feminina, se baseiam na reciprocidade e no cuidado de e com a terra. É uma reciprocidade e um cuidado com essa terra que nos alimenta e que, por sua vez, deve ser alimentada pelos seres humanos.

Portanto, essas práticas implicam que o centro da tomada de decisão é a política e a produção de bens que têm uma relação com o econômico. Seu objetivo, seu centro é a regeneração da vida. Nessas perspectivas de uma política feminina, sempre estamos nos perguntando: “Para quê? Para que estamos fazendo isso? Para que estamos produzindo? Para aumentar o capital ou para aumentar o bem-viver? Para nos cuidar?” A questão sobre o “para quê” é muito importante.

Ao trazerem estas concepções de política feminina, os pensamentos feministas do Sul estão propondo um critério trans-humano de justiça material a partir do qual é possível organizar as instituições humanas e as relações sociais. Esse critério é a regeneração dos ciclos naturais. Tudo isso nos oferece um critério de justiça que não encontramos em outras noções de justiça mais ocidentais, inclusive nas mais críticas. Aqui, o critério é regeneração dos ciclos naturais, que inclui tanto o ser humano como tudo que possibilita que tenhamos o resto da natureza.

A ênfase na dimensão regenerativa da materialidade viva da terra está vinculada à questão da tomada de decisão e dos mecanismos de participação. Um dos principais esforços dos pensamentos feministas do Sul é refletir sobre as formas de regeneração da riqueza, entendida como valor de uso – é outra concepção de riqueza e não a concepção de acumulação do capital, mas riqueza como valor de uso que serve para satisfazer verdadeiras necessidades coletivas e a reprodução dos laços sociais. Um dos principais esforços dessas teorias é refletir sobre as formas de regeneração como valor de uso, pensando como a regeneração da riqueza pode contribuir para a reconstituição do tecido social e para a capacitação da agência política dos povos, entendida como a capacidade de tomar decisões diretamente, de subverter os modos de dominação e de produzir normas de forma autônoma.

É nesse sentido que as autoras do Sul afirmam que a política em chave feminina requer práticas de saberes e de espaços onde confluem as manifestações de acesso à riqueza e ao direito de decidir. Em outras palavras, poderíamos dizer que o projeto dos feminismos do Sul é criar modos policêntricos de examinar o social, tanto na produção de bens vitais quanto na tomada de decisões. Trata-se de um projeto de empoderamento político e de re-humanização que requer a atuação política e a composição histórica dos membros da comunidade através da intervenção da tomada de decisão, bem como o reconhecimento da terra como agente histórico que deve participar da organização social. É a ideia de que a justiça precisa considerar a regeneração dos ciclos naturais e que a encontramos na terra mesma; a terra é nossos corpos mesmos. Temos que voltar a entender os nossos corpos como terra.

Esses pensamentos constituem verdadeiras oikonomias, que vem do termo oikos, a casa grande. A maneira de chegar a isso é através de uma reflexão crítica de nossa história e de nossos corpos, que está inscrita em nós e em nossos corpos-territórios, nas grafias dos territórios. Para concluir, os feminismos do Sul, que prefiro chamar de feminismos do Sul enraizados, e não feminismos do Sul global, nos convidam a mudar de perspectiva e a construir formas sociais da relação com o outro. A situacionalidade é tanto o ponto de partida como o fim que se deve perseguir na política, segundo essa perspectiva. Ao se enraizar na perspectiva e memória dos corpos-territórios, os feminismos do sul revelam o vínculo material, direto e estreito entre a primarização das economias do Sul, a destruição do meio ambiente, a violência contra os corpos racializados e feminizados, e a reprodução de uma economia pós-industrializada do Norte.

Os feminismos do Sul, desta forma, nos permitem entender que o patriarcado colonial deve ser entendido como um sistema de relações sociais, passadas a dominação de homens e mulheres e a exclusão do outro. Essas análises permitem também compreender que o trauma colonial, que é uma dívida colonial, é uma dívida que tem sido inscrita no tecido da vida e não só nos corpos humanos e que, como consequência, requerem estratégias de transformações relacionais. As feministas do Sul também nos ensinam que as formas de sanar o tecido da vida não requer partir do desejo. Não precisamos inventar tudo; os caminhos já existem nas histórias das comunidades que foram condenadas pelo colonialismo e que, no entanto, conseguiram reinventar suas formas de vida. Trata-se de uma visão de compreender, a partir do passado, as causas dos problemas atuais, de maneira crítica, selecionando as ferramentas que existem em cada tradição e que são capazes de contribuir para mudar as estruturas que geram injustiça na atualidade. Podemos dizer que nos feminismos do Sul está surgindo uma episteme diferente da moderna, e que eles nos mostram uma forma e prática de vida que se centra no elemento relacional que é o “território, corpo e terra”, sempre coletivo, com as relações históricas entre os humanos e a terra. Trata-se de uma episteme que se centra e produz uma racionalidade topológica, no sentido de lugar – não é uma racionalidade desconectada nem do corpo nem do lugar. Por isso, podemos considerar que a política em chave feminina é um paradigma em relação à política moderna, um paradigma que, ao abrir a porta, a terra habitada não deixa de nos lembrar o que as avós afro-colombianas nos têm ensinado. Cito a ativista e vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, que menciona sua avó: “O que as avós afro-colombianas têm nos ensinado é que o território é alegria e dor, que o território é vida e a vida não tem preço, que o território é dignidade e que a dignidade não tem preço”.

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