A fome é a nova escravidão. Entrevista especial com Régia Agostinho

"Se Maria Firmina dos Reis ousou sonhar um novo mundo para os escravizados, Carolina Maria de Jesus nos mostrou em 1960 que a abolição veio, mas ela foi e continua incompleta porque não se deram as mesmas oportunidades a negros e brancos após a abolição", afirma a historiadora.

Foto: EBC

Por: João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin | 27 Setembro 2022

 

A fome é uma "realidade que infelizmente ainda faz parte do nosso mundo, afinal, hoje temos 33 milhões de brasileiros que passam fome, a maioria deles, provavelmente, é de negros e pardos. Convencionou-se chamar isso de 'insegurança alimentar', que é o eufemismo cruel para a fome que assola o nosso povo", constata Régia Agostinho, ao comentar a condição social brasileira atual, já retratada na obra da escritora Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960). Segundo ela, as personagens negras do livro de Carolina de Jesus expressam a "consciência que a própria Jesus tinha de sua condição de mulher negra e favelada e que tinha sido colocada naquilo que ela entendia como o quarto de despejo da grande cidade de São Paulo. No diário, ela fala da abolição e como a nova escravidão seria a fome que a população negra e favelada passava no Brasil de 1960".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a historiadora comenta também a obra da maranhense Maria Firmina dos Reis, que retratou a realidade dos negros no século XIX no romance Úrsula, o primeiro escrito por uma mulher no Brasil, em 1859. "Acredito que a luta de Maria Firmina dos Reis em pleno império escravista contra a escravidão seja também um grito de outra independência. Uma independência que abarcasse também os escravizados e os considerasse cidadãos. Claro que pelas tensões do seu tempo, ela não pede isso abertamente, mas, em seu texto, iguala brancos e negros e os vê como irmãos", pontua.

 


Régia Agostinho (Foto: Arquivo pessoal)

 

Régia Agostinho é doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP e mestre na mesma área pela Universidade Federal do Ceará – UFC. É professora da Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Maria Firmina dos Reis foi anunciada como homenageada da 20ª Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP. Quem foi Maria Firmina e o que essa homenagem representa?

 

Régia Agostinho – Maria Firmina dos Reis é a primeira romancista negra do Brasil. A primeira mulher negra a publicar um romance antiescravista, Úrsula, em 1859. Nesse romance, pela primeira vez na história da literatura brasileira, os personagens escravizados falam sobre e contra a escravidão. Há também no romance uma crítica ao patriarcado no século XIX, onde o personagem Tancredo fala da tirania exercida por seu pai em relação à mãe. A homenagem da FLIP é um reconhecimento merecido à Maria Firmina dos Reis. Mesmo que tardiamente, a autora recebe, agora com essa homenagem, uma visibilidade nacional e internacional de seu trabalho por toda a vida em prol das causas das consideradas minorias, negros e mulheres. Como filha de uma escrava alforriada, Maria Firmina dos Reis deve ter sentido na pele o que seria viver numa sociedade patriarcal e escravista.



IHU – Há, ainda, uma certa polêmica no anúncio da homenagem, pois a FLIP é considerada um evento de elite – e acessível para poucos – da literatura nacional. Como a senhora observa essa crítica? Quais os desafios de, no Brasil de hoje, tornar conhecidos personagens tão importantes de nossa história, que são apagados por uma historiografia hegemônica, como o foi o caso de Maria Firmina?

 

Régia Agostinho – A FLIP vem tentando, ao longo dos últimos anos, se diversificar e se popularizar. Ao fazer uma curadoria coletiva e mais diversificada há uma chance maior de se abarcar autores e leitores outros que não fazem parte do cânone. Claro que ainda há muito a se fazer. No entanto, a homenagem a Maria Firmina dos Reis já se mostra como um passo muito importante para essa democratização da FLIP. A autora com certeza se tornará mais conhecida e acredito que novas edições de Úrsula deverão ser produzidas.

 

Maria Firmina dos Reis vem alcançando, desde o início do século XXI, um espaço grande nas pesquisas acadêmicas. Essa recuperação de seu legado começou no Maranhão, ainda no século XX, na década de 1970, com a biografia e pesquisa que Nascimento de Morais Filho fez sobre a autora: Maria Firmina: fragmentos de uma vida, de 1975, reunindo textos firminianos e depoimentos de filhos adotivos e ex-alunos e alunas de Reis. Nesse mesmo ano, ele faz a edição fac-similar de Úrsula, assim como lança também em edição fac-símile o livro de poesias da autora, Cantos a beira-mar. Desde então, Maria Firmina dos Reis foi ganhando mais e mais visibilidade e isso tomou uma dimensão nacional quando a editora Mulheres publicou Úrsula em 2004, com o posfácio do pesquisador Eduardo de Assis Duarte, que inclusive estará em uma das mesas da FLIP que homenageará Reis.

 

 

IHU – Nesse mesmo ano em que Maria Firmina foi anunciada como homenageada da FLIP, completamos 200 anos do processo de Independência e o Centenário da Semana de Arte Moderna. Como analisa a memória que vem sendo feita desses dois momentos históricos do Brasil? Em que medida a trajetória e a literatura de Maria Firmina dialogam com esses dois episódios de nossa história?

 

Régia Agostinho – Acredito que a luta de Maria Firmina dos Reis em pleno império escravista contra a escravidão seja também um grito de outra independência. Uma independência que abarcasse também os escravizados e os considerasse cidadãos. Claro que, pelas tensões do seu tempo, ela não pede isso abertamente, mas, em seu texto, iguala brancos e negros e os vê como irmãos.

 

Sobre a questão da Semana de 1922, penso que os textos firminianos dialogam com a ousadia desse evento. Publicar um texto antiescravista em 1859, mesmo que não se tenha uma ousadia no estilo literário, significa que se tem uma ousadia temática. Foi preciso muita coragem para publicar esse romance no período em que a autora o publicou.

 

IHU – A senhora vive no Maranhão, mesmo estado de Maria Firmina. Como sua memória é trabalhada na cultura local? Ao mesmo tempo, o cânone maranhense já consegue enxergar o que foi e qual o legado de Maria Firmina?

 

Régia Agostinho – Eu sou cearense e vivo no Maranhão há 17 anos, desde que passei em concurso público para a Universidade Federal do Maranhão e, desde então, pesquiso a vida e obra de Maria Firmina dos Reis. Quando cheguei em São Luís, já tinha feito uma dissertação de mestrado na Universidade Federal do Ceará sobre Emília Freitas e Francisca Clotilde, autoras cearenses da virada do século XIX para o início do XX, publicando respectivamente A Rainha do Ignoto, de 1899 e A Divorciada, de 1904. Então, eu já tinha interesse por escritoras do século XIX. Quando cheguei em São Luís, fui procurar uma autora oitocentista e encontrei Maria Firmina dos Reis, que naquele momento também era pouco conhecida, isso em 2005, na cidade. Era mais conhecida por pesquisadores e estudantes de História e de Letras. Mas hoje percebo que Reis se transformou numa referência importante da literatura maranhense e nacional. Seus textos são estudados nas universidades e até nas escolas. No entanto, creio que ainda seja preciso ampliar mais sua voz. Fazer com que ela chegue em todas as escolas do Brasil e que ocupe o lugar na literatura brasileira do século XIX.

 

IHU – “Úrsula” é uma das obras mais conhecidas de Maria Firmina. Publicado em 1859, o livro é considerado o primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil. Que universo e perspectivas femininas a autora revela? Qual sua leitura acerca do abolicionismo?

 

Régia Agostinho – Como historiadora, sempre saliento que Úrsula é um romance antiescravista ou precursor da literatura abolicionista. Concordo com Emília Viotti e Ângela Alonso, que apontam que o movimento abolicionista começa no Brasil em torno de 1860 em diante. Então, Úrsula, eu leio como um romance antiescravista ou precursor. Já o conto A escrava, também de Reis, eu leio como um conto abolicionista, publicado em 1887 na Revista Maranhense, no qual a autora coloca como narradora uma personagem feminina de “sentimentos abertamente abolicionistas”. Então, do ponto de vista do cuidado historiográfico com a temporalidade, eu faço essa separação.

 

 

Sobre a questão da perspectiva feminina, gosto de pensar que Reis coloca questões nos seus textos que passaram despercebidas muitas vezes por autores masculinos: o olhar sobre a tirania masculina, a escolha por colocar personagens femininas fortes e falando em seus textos. A preta Suzana, em Úrsula, é um exemplo disso, até mesmo a mãe de Úrsula, que diz para ela fugir do vilão da narrativa. Adelaide, como órfã e pobre tentando galgar posição social. Uma narradora mulher no conto A escrava, assim como a própria história da escravizada Joana, no conto. Reis escolheu muito a perspectiva feminina para contar suas histórias e isso é bastante sintomático sobre seu olhar de mundo.



IHU – O romance “Úrsula” vem sendo defendido como precursor do abolicionismo, embora essa insígnia seja usualmente atribuída à poesia de Castro Alves e ao romance “As vítimas-algozes”, de Joaquim Manoel de Macedo. O que essa disputa revela sobre o lugar das mulheres na historiografia brasileira?

 

Régia Agostinho – Longe de mim retirar o mérito das obras citadas, mas vamos à questão. O poema de Castro Alves, Navio Negreiro, de 1869, é publicado dez anos após Úrsula e nele o autor fala sobre os tumbeiros que carregavam os africanos escravizados para o Brasil. Maria Firmina dos Reis fez essa narrativa em 1859, dez anos antes de Castro Alves. Reis coloca na fala de preta Suzana, africana escravizada que veio ao Brasil pelos tumbeiros, uma crítica feroz à desumanidade dessa captura na África e desse translado. Já As vítimas-Algozes, também publicado em 1869, de Joaquim Manuel de Macedo, pode ser lido como um romance abolicionista, sim, mas o autor quer a abolição para livrar os senhores dos maus hábitos dos escravizados, que por conta da escravidão se tornam vilões e, por isso, são vítimas-algozes. A libertação que Macedo requer em seu texto visa mais o bem-estar dos senhores brancos, do que necessariamente uma melhor vida para os escravizados.

 

Não sei se existe de fato uma disputa entre esses autores, ou entre os pesquisadores destes. Mas o que existe é uma crítica literária que já canonizou Castro Alves e Joaquim Manuel de Macedo. Essa crítica precisa agora voltar os olhos para outros autores e autoras. A homenagem da FLIP deve ajudar nisso. O fato de as mulheres escritoras do XIX não terem sido lidas com mais seriedade, deveu-se à misoginia e à ideia de que o mundo da literatura era masculino e branco. Contrariando a morfologia, no século XIX, a palavra era masculina.

 

IHU – Que representações sobre escravidão e mulheres Maria Firmina apresenta na segunda metade do século XIX? Como tais representações eram recebidas na época?

 

Régia Agostinho – As mulheres e os escravizados aparecem em Maria Firmina dos Reis como seres pensantes, dotados de humanidade e subjetividades. Os escravos e as mulheres firminianos não são apenas vítimas de senhores verdugos, mas também versam contar a escravidão e a tirania masculina. Se no mundo real em que Reis viveu isso talvez não fosse tão possível, no mundo que Maria Firmina dos Reis inventou, mulheres e escravos tinham voz e vez.

 

 

IHU – Que conexões podemos fazer entre os negros presentes em "Úrsula", de Maria Firmina, e em "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus?

 

Régia Agostinho – Embora, provavelmente, Carolina Maria de Jesus nunca tenha lido Maria Firmina dos Reis, o seu livro Quarto de despejo. Diário de uma favelada (1960) é herdeiro da escrita firminina. Temos mais uma vez aqui uma escritora negra que foi silenciada ao longo dos anos. Claro que a trajetória de Carolina Maria de Jesus é muito mais pesada, visto que estamos falando de uma escritora que escreveu a partir de sua vivência e dos retalhos de livros que encontrava em seu trabalho como catadora. Reis, apesar de dizer que sua formação era quase nula, na verdade, teve alfabetização em casa, passou em concurso público para professora de primeiras letras em Guimarães, vila à época do Maranhão. Reis circulou entre a imprensa local. Teve uma visibilidade local enquanto vivia. Já Jesus se construiu como escritora apesar de sua dura e sofrida vida. Alcançou o sucesso com seu diário, sendo publicada em mais de treze idiomas. Nunca foi, no entanto, considerada pela crítica especializada como uma escritora. Seu texto era visto mais pelo caráter antropológico por ser uma visão de dentro da favela.

 

O que podemos dizer de como os negros aparecem nas obras das duas escritoras diz respeito à consciência que a própria Jesus tinha de sua condição de mulher negra e favelada e que tinha sido colocada naquilo que ela entendia como o quarto de despejo da grande cidade de São Paulo. No diário, ela fala da abolição e como a nova escravidão seria a fome que a população negra e favelada passava no Brasil de 1960. É uma realidade que infelizmente ainda faz parte do nosso mundo, afinal, hoje temos 33 milhões de brasileiros que passam fome, a maioria deles, provavelmente, é de negros e pardos. Convencionou-se chamar isso de “insegurança alimentar”, que é o eufemismo cruel para a fome que assola o nosso povo. Se Maria Firmina dos Reis ousou sonhar um novo mundo para os escravizados, Carolina Maria de Jesus nos mostrou em 1960 que a abolição veio, mas ela foi e continua incompleta porque não se deram as mesmas oportunidades a negros e brancos após a abolição. A própria trajetória de Jesus mostra isso.

 

IHU – A historiografia dessa segunda década dos anos 2000 tem avançado nos estudos acerca das conexões atlânticas da África com o mundo, especialmente a América. Quais os avanços mais significativos que a senhora observa nesses estudos? Quais são os limites dessas pesquisas ainda a serem ultrapassados?

 

Régia Agostinho – Eu faço parte de um programa de pós-graduação em História na UFMA sobre História e conexões atlânticas. Então, estamos bem antenados com esse debate. É impossível pensar o Brasil sem essas conexões, sem a ligação com a Europa e, principalmente, a África, que por tanto tempo foi negligenciada na historiografia acadêmica. Penso que os avanços já estão na existência de programas de pós-graduação nessa linha. A Universidade Federal do Maranhão também é a primeira e, se não me engano, a única do Brasil a ter um curso de graduação sobre Estudos Africanos. Claro que existem desafios a serem vencidos, principalmente quanto ao fomento dessas pesquisas e programas para que os pesquisadores possam fazer viagens e consultas às fontes do outro lado do Atlântico. Embora muito material esteja na internet, a pesquisa in loco ainda é fundamental. Esperamos que dias melhores venham para a pesquisa no Brasil.

 

 

IHU – Desde 2008, é obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Passados mais de dez anos da promulgação da lei que institui essa obrigatoriedade, a senhora considera que os jovens saem da educação básica mais bem formados acerca de nossos antepassados africanos?

 

Régia Agostinho – Mesmo que várias dissertações e teses atestem que esses ensinos ainda deixam muito a desejar, eu vejo que algum avanço foi feito. Não é o ideal ainda, mas o fato de se fazer uma reflexão anual nas escolas sobre o 20 de novembro já é um passo importante. Talvez seja ainda tímido, mas é melhor do que passo nenhum.

 

IHU – Que mensagem Maria Firmina, no século XIX, deixa à literatura afro-brasileira, especialmente àquela que vem sendo desenvolvida em nossos dias?

 

Régia Agostinho – Que vale a pena lutar por dias melhores e justiça social. Que mesmo que não colhamos diretamente os frutos dessa luta, as futuras gerações podem fazê-lo e que, apesar de todas as dificuldades, é necessário lutar por uma nação mais justa, solidária e igualitária.

 

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