Ignorando o Novo Regime Climático, RS quer enfrentar estiagem histórica apenas abrindo açudes e poços. Entrevista especial com Paulo Brack

Para o ambientalista, o chamado agronegócio, que concentra influência e poder de decisão no Estado, quer apenas soluções imediatistas que assegurem a sua rentabilidade

Foto: Defesa Civil RS

Por: João Vitor Santos | 04 Março 2022

A temporada de verão 2021/2022 fez o Rio Grande do Sul viver dias de agreste. Em Uruguaiana, no Oeste, para se ter ideia, a temperatura chegou a 42,9ºC no final de fevereiro, segundo a estação automática do Instituto Nacional de Meteorologia. São as maiores temperaturas na região desde os anos de 1910 e 1912. Além disso, vive-se a maior seca dos últimos 70 anos. Com um cenário assim, os danos no campo são inevitáveis. Entidades como a Fecoagro-RS calculam perdas para a agricultura gaúcha na ordem de R$ 36,14 bilhões.

 

No entanto, para o ambientalista Paulo Brack, apesar da gravidade da situação, o problema não tem sido encarado em sua complexidade. “O setor ruralista, entendendo-se aqui os setores muito capitalizados da elite do campo e do agronegócio, reúne muitos negacionistas das causas humanas geradoras de mudanças climáticas e tem muito peso nas políticas governamentais de financiamentos ao setor”, aponta. Esse setor tem o poder de decisão dentro de órgãos como o Ministério da Agricultura. O problema é que esse grupo é “a favor de soluções imediatistas que envolvem aumento de abertura de poços de captação de água ou mesmo incrementar a construção de açudes e barragens, de forma célere, com poucos cuidados ambientais, ao interesse imediatista de setores que não enfrentam as causas e sim tentam resolver pela metade, diminuindo as consequências”.

 

Enquanto isso, pequenas propriedades, assentamentos e a agricultura familiar ficam à margem dessa “solução”. Embora tentem práticas mais integrativas para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, amargam dívidas que inviabilizam a manutenção das propriedades enquanto veem os grandes apontarem açudes como solução para todos os problemas. “A agropecuária, para grandes setores da economia, tem um espaço de decisão maior no Estado do que os pequenos agricultores, mais afetados por estes fenômenos, ou mesmo a saúde da maioria da população. Não é por nada que a Secretaria de Desenvolvimento Rural foi extinta e o Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica foi engavetado no atual governo Leite”, resume.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Brack ainda analisa os aspectos como o negacionismo ambiental, liberação do uso de agrotóxicos e o desejo de parte dos gaúchos em investir na mineração de carvão. Ações que não só negam o momento que vivemos como ainda se movem em sentido contrário. Para ele, na realidade, é preciso “promover a necessidade de se estabelecer estações de maior controle e monitoramento destes fenômenos, com modelagens de diferentes cenários e prognósticos para o preparo de políticas públicas que atendam a maioria e apontem para uma economia que não esgote tanto a natureza, para concentrar bens para poucos, e que nos livre do colapso sistêmico cada vez mais possível e iminente”.

 

Paulo Brack (Foto: Reprodução | Youtube)

Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS.

 

A entrevista foi originalmente publicada por Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 04-03-2023. Ela é republicada no contexto do colapso climático expresso na tragédia ambiental e humana que atualmente assola o povo gaúcho.

 

Confira a entrevista.



IHU – Entre o final de 2021 e início de 2022, o Rio Grande do Sul enfrentou pelo menos três ondas de calor extremo. Como podemos compreender esse fenômeno no contexto das mudanças climáticas?

 

Paulo Brack – Bom, não sou climatologista, mas acompanho os efeitos destes fenômenos sobre a biota, baseado em análises de cientistas do clima e da biodiversidade. Neste caso, destaco o ecólogo Thomas Lovejoy, infelizmente falecido no final de 2021. Ele fez muitas relações entre mudanças climáticas e o agravamento dos processos de comprometimento de ecossistemas naturais e a extinção das espécies de flora e fauna.

 


Thomas Lovejoy | Foto: Revista Fapesp

 

 

Me lembro também que, em 2007, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, ligado à ONU, havia publicado um relatório que causou uma repercussão inédita, mas insuficiente, gerando apreensão, pelo menos em setores da academia e também de ambientalistas, alertando para o fato de que eventos climáticos extremos estavam ocorrendo com mais intensidade e frequência. Além do mais, o relatório trazia, de forma mais afirmativa, o fato de que o aquecimento global e as mudanças climáticas tinham como causa as atividades humanas.

Publiquei, em 2009, um capítulo de um livro chamado “Lavouras da Destruição”, coordenado pelo amigo e colega Prof. Althen Teixeria Filho (Universidade Federal de Pelotas – UFPEL), denominado “Os comandantes da Nau Terra enlouqueceram? E nós, para onde vamos?”. Eu trazia o paradoxo do relatório do IPCC e a negligência de governos e as “oportunidades” econômicas, apontadas por vários deles, ligadas às mudanças climáticas.

 

 

 

Depois, lembro - e chamei a atenção há cerca de uma década - de que, em um mesmo ano, o mês de abril havia sido o mais seco em 80 anos e o mês de novembro tinha chovido em maior quantidade nos últimos 100 anos. Também acompanhei, à época, pronunciamentos de Philip Fearnside (INPA), um dos cientistas mais citados no tema das mudanças climáticas, por várias vezes destacando que pelo menos 1/3 das chuvas que vinham aqui para o Sul do Brasil provinham da evapotranspiração da Amazônia, sendo que o desmatamento lá poderia ter como consequências a diminuição de chuvas aqui.

Infelizmente, os prognósticos estavam certos ou muito próximos da verdade. As secas estão se tornando mais frequentes e mais intensas, enquanto as chuvas se concentram de forma às vezes mais torrencial, como ocorreu no município de Petrópolis (RJ) recentemente. Cabe também destacar que os recordes de temperatura que atingem o RS também são sentidos no restante do mundo. Neste aspecto, nos últimos sete anos tivemos as temperaturas mais altas já registradas até agora. Ou seja, daqui em diante temos que nos preparar para estas situações... Estaremos preparados?

 

 

IHU – Como, ainda desde o recorte do RS, podemos compreender os efeitos das mudanças climáticas sobre a saúde humana?

 

Paulo Brack – As temperaturas muito elevadas em ondas de calor vêm ocorrendo com mais frequência e causando centenas ou até milhares de mortes, como ocorreu na França em 2003, onde morreram por este motivo 15 mil pessoas, principalmente idosas ou mais debilitadas em sua saúde. No Brasil, chama a atenção que a umidade relativa do ar (UR) torna-se bem baixa em meses mais secos, como no caso da Região do Brasil Central, Centro Oeste e Sudeste. Quando a UR chega a percentuais abaixo de 30% ou 20%, estamos em situações de prejuízos ao sistema respiratório humano, aumentando doenças de diferentes tipos, desde enfermidades das vias aéreas superiores até doenças do coração.

Nas vias aéreas superiores, as mucosas costumam ressecar e inflamar em períodos secos, e sendo estas uma barreira à entrada de agentes patógenos nocivos ao nosso corpo, o clima seco fragiliza nosso organismo e propicia a entrada de doenças. A Covid-19 pode estar no rol dessas doenças. O ideal de UR do ar é de cerca de 60%, mas esta condição está cada vez mais prejudicada em meses de estação seca no Brasil, agravadas pela ausência de vegetação, engolida por extensas áreas de monoculturas do agronegócio convencional.

 

 

Em Bagé, em meados de janeiro de 2022, a UR do ar chegou a 15%, ou Estado de Alerta, ou seja, quase uma umidade encontrada em desertos. Infelizmente, nosso sistema de vigilância em saúde não está preparado para contabilizar isso em humanos.

 

 Localização do município de Bagé no Rio Grande do Sul | Imagem: Wikipédia

 

IHU – Meteorologistas têm se esforçado para explicar a estiagem histórica nesse verão gaúcho, enquanto engenheiros e agrônomos discutem formas de superar a seca. Como o senhor tem acompanhado esses debates? O que tem ficado de fora dessa discussão?

 

Paulo Brack – O setor ruralista, entendendo-se aqui os setores muito capitalizados da elite do campo e do agronegócio, reúne muitos negacionistas das causas humanas geradoras de mudanças climáticas e tem muito peso nas políticas governamentais de financiamentos ao setor. O setor tem o Ministério de Agricultura e Pecuária – MAPA a favor de soluções imediatistas que envolvem aumento de abertura de poços de captação de água ou mesmo incrementar a construção de açudes e barragens, de forma célere, com poucos cuidados ambientais, ao interesse imediatista de setores que não enfrentam as causas e sim tentam resolver pela metade, diminuindo as consequências.

Outro aspecto é que a agropecuária, para grandes setores da economia, tem um espaço de decisão maior no Estado do que os pequenos agricultores, mais afetados por estes fenômenos, ou mesmo a saúde da maioria da população. Não é por nada que a Secretaria de Desenvolvimento Rural foi extinta e o Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica foi engavetado no atual governo Leite.

Talvez a vigilância agropecuária esteja mais preparada para aferir os danos à economia do que outros órgãos que deveriam incrementar mecanismos de resiliência para os mais vulneráveis, do ponto de vista socioambiental, afetados pela emergência climática. Mas, aqui no RS, o governo se empenhou mais, alinhado à Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul – Farsul, a aprovar o PL 260/2020 que retrocede em 40 anos quando libera a comercialização de agrotóxicos sem registro em seus países de origem.

 

 

IHU – Outro fenômeno quem tem causado espanto nesse verão no Rio Grande do Sul é a redução de trechos da Lagoa do Peixe, entre Mostardas e Tavares, no Litoral Médio gaúcho, a uma fina lâmina de água. Como mensurar os danos desse fenômeno no local que é considerado berço para muitas espécies?

 

Paulo Brack – Realmente, o fenômeno que ocorreu na Lagoa do Peixe e no Parque Nacional de mesmo nome corresponde a um acontecimento inédito e de proporções que deverão ser avaliadas com mais profundidade, tanto por especialistas em ecologia, ictiologia e cientistas sociais, dada a grande concentração de pescadores artesanais bastante invisibilizados. Lamentavelmente, os danos socioambientais às populações mais vulneráveis, com destaque neste caso aos pequenos pescadores ali residentes, não são alvo de muitos estudos.

 

 Mapa de localização do Parque e Lagoa do Peixe | Imagem: reprodução Nema

 

No que se refere às aves migratórias, também é um ponto a ser averiguado, já que o Brasil possui na região um dos sítios que representam acordos internacionais (Convenção de Ramsar) de aves migratórias de áreas úmidas mais importantes do mundo.

 

 

IHU – Ainda a partir do caso da Lagoa do Peixe, de que forma podemos compreender o chamado antropoceno, especialmente nas atividades humanas de agricultura e pecuária?

 

Paulo Brack – A questão do Antropoceno tem pesquisadores bem preparados para falar de forma mais apropriada sobre isso. Aqui destaco o físico e professor Dr. Alexandre Araújo Costa, da Universidade Estadual do Ceará, e o professor Luiz Marques, da Unicamp, que lançou há alguns uns anos o magnífico livro: Capitalismo e Colapso Ambiental (Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019).

De qualquer maneira, tanto eles como outros estudiosos dos temas das mudanças climáticas e crise ecológica, dos quais tenho mais identidade, consideramos que o termo Antropoceno deve seguir sendo mais bem refletido. Este conceito, em minha visão, deixa margem para que se interprete que o ser humano seja degradador por natureza, o que não é possível concordar. Existe um componente cultural altamente competitivo que vai se imprimindo e reproduzindo no comportamento humano mais recente, ou mesmo depois que a maior parte das sociedades humanas deixou a vida nômade.

 

 

Obviamente, o sedentarismo associado ao desenvolvimento da agricultura, tirando seus avanços fundamentais para enfrentar a fome, criou também o excedente, a acumulação, o território e as classes sociais. Este é um assunto longo, mas as superpopulações e o modo de acumulação sem limites e concentrado a algumas classes sociais é um processo altamente competitivo que se reproduz e se acentua a cada geração. Estas formas de vida, que se desenvolveram em modelos econômicos hegemônicos e complexos, acabaram gerando maior destruição da natureza, provocando guerras e destruição socioambiental para a maioria, e comprometendo o futuro da vida.

Estas duas fases mais acentuadas do Antropoceno (desenvolvimento da agricultura e revolução industrial, com fortalecimento do modelo capitalista, concentrador) devem ser mais bem analisadas, contemplando-se sociedades que não se incorporaram neste rol dominante de comportamento não tão colaborativo, mas mais competitivo, como no caso dos povos indígenas e comunidades tradicionais que têm muito a nos ensinar sobre respeito à natureza e desapego ao consumo ou à acumulação, por exemplo. Isso não quer dizer que nossa espécie, em essência, contemplando as diversas formas de vida que devem ser vistas também de forma diferenciada, não tenha causado importante degradação da natureza antes do desenvolvimento da agricultura, demarcada há aproximadamente 10 mil anos. Um assunto a ser aprofundado, respeitando-se as diferenças de comportamentos históricos ligados às culturas diversas de cada região do planeta.

 

IHU – Cerca de 60% dos municípios gaúchos estão em situação de emergência em decorrência da estiagem. No entanto, o próprio governo do estado aponta dificuldades de assegurar recursos junto ao Governo Federal para minimizar os danos. O que isso revela?

 

Paulo Brack – O Governo Federal, seguindo a linha ultraneoliberal, não atende a quem mais precisa; no caso, os agricultores familiares, que vêm perdendo quase todos os apoios que tinham em diferentes programas até 2016. O ministro da Economia, que mantém investimentos em paraísos fiscais, corta gastos de quase todas as áreas, principalmente sociais. Mas, no final das contas, setores do agronegócio obtêm rolagem de dívidas e angariam financiamentos diferenciados.

Grande parte dos recursos vai para manter o círculo vicioso de uma agricultura dependente de insumos, causadora de gases de efeito estufa e que não serve. O Brasil desmata, exporta grãos, com água embutida, principalmente em mares de plantios de soja - alimento de animais confinados - que hoje alcança uma área de mais de 38 milhões de hectares, tendo crescido sua área de produção em seis vezes em 45 anos. Enquanto isso, no mesmo período, desde 1976, as áreas de produção de feijão, arroz, mandioca e trigo – alimento de humanos – todas diminuíram, enquanto a população de brasileiros dobrou, como mostra o gráfico abaixo, onde constam quatro culturas.

 

 (Gráfico cecido pelo entrevistado)

 

IHU – Em Porto Alegre e muitas cidades da região metropolitana, a população reclama do gosto da água – que é retirada para tratamento de rios que cortam as cidades e que tem seu nível reduzido com a estiagem – e cobra das autoridades, inclusive via ações na Justiça, a melhora na qualidade. Mas, pouco se discute o fenômeno da estiagem e as interferências humanas sobre os ecossistemas desses rios. O que esse cenário revela?

 

Paulo Brack – Inicialmente, é importante destacar que está ocorrendo um processo acelerado de destruição de nascentes, banhados, matas ciliares e outros tipos de ambientes que mantinham vegetação nativa no RS no Brasil. A vegetação nativa é fundamental para a infiltração da água da chuva e recarga dos aquíferos, mas vem sendo substituída por lavouras de grãos, fumo, silvicultura e outras culturas que implicam em maior impermeabilização do solo e menor matéria orgânica com baixíssima adsorção (adesão) de água nas partículas do solo.

Estamos diante da hegemonia de uma agricultura inviável, já criticada por Eugene Odum, um dos maiores expoentes mundiais na Ecologia, que afirmava, há mais de duas décadas, no Prólogo de uma obra clássica de Agroecologia, de Stephen Gliessman, que transcrevo aqui: “A cada ano que passa, se torna mais evidente que o uso excessivo atual de agroquímicos e de água para irrigação não é só um dos maiores contribuintes da contaminação, não somente concentrada, mas em longo prazo também insustentável. Portanto, desenvolver um sistema de produção de alimentos de forma mais ecológica é urgente”.

 

 

Qualidade da água

 

Quanto à qualidade da água, além dos agrotóxicos já detectados, inclusive na água de abastecimento de cidades do Estado, temos o fenômeno da floração de cianobactérias, que dão gosto ruim e liberam substâncias hepatotóxicas e neurotóxicas. No Museu de Ciências Naturais da extinta Fundação Zoobotânica – FZB, existia uma equipe de pesquisadoras que estudava estas algas e este fenômeno crescente, pelo aumento de nutrientes nas águas, decorrentes da adubação excessiva do agronegócio (nitrogênio, fósforo, potássio) que escorre aos mananciais hídricos e promove poluição biológica (eutrofização). Infelizmente, vivemos outro apagão de conhecimento na área ambiental, a partir da extinção da FZB, onde a maioria dessas pesquisadoras foi obrigada a se aposentar ou demitida pelo penúltimo e pelo atual governo do estado.

Com a privatização da CORSAN, do DMAE e de outros órgãos estatais, que não visam lucratividade neste bem essencial, a água, mas interesse público, ficaremos ainda mais reféns dessa situação ruim, sem saber quanto à qualidade de nossa água de abastecimento. A “tempestade perfeita” para a perda dos direitos ao meio ambiente equilibrado, assegurados pelo Artigo 225 da Constituição Federal.

 

 

IHU – Em artigo publicado recentemente, o senhor e outros autores argumentam que “o desenvolvimento capitalista, desde o século XIX, joga os lucros para o alto da pirâmide social, e as emissões de gases de efeito estufa, muito acima dos limites, aceleram a mudança global do clima”. Como podemos aprofundar essa reflexão?

 

Paulo Brack – O sistema capitalista tem obsessão pelo rentismo, o crescimento econômico, a concentração de capital e não consegue viver com limites. Transcrevo aqui as palavras da ambientalista, prêmio Nobel alternativo, Vandana Shiva: “o crescimento econômico virou anti-vida”.

Também existem muitos intelectuais, pesquisadores e economistas que vêm criticando o rumo de colapso ambiental sistêmico que a maioria dos indicadores, de estudos climáticos e ambientais, confirma. Poderia citar alguns deles, como Jared Diamond, Carlos Taibo, Manfred Max Neef, Jorge Riechmann e Yayo Herrero. Os dois primeiros abordam o tema de colapso ambiental, os demais criticam, com muitos subsídios, a inviabilidade do modelo de economia hegemônica atual, que não consegue conviver com limites.

 

IHU – Quais os desafios para se superar o negacionismo climático e efetivamente enfrentar o problema das mudanças climáticas?

 

Paulo Brack – Em certa medida, os principais pseudocientistas negacionistas, com argumentos cada vez mais furados, quase desapareceram, por sorte. Mas alguns grandes meios de desinformação (TV, Rádio e Jornal) ainda dão destaque a alguns deles, para gerar dúvida mal-intencionada. Os governos, como o do Brasil, seguem no negacionismo da gravidade da pandemia de Covid-19, do desmatamento da Amazônia, do aumento da fome no país...



IHU – Em muitos lugares, é intensa a discussão sobre a necessidade da transição para outros modelos de sociedade. Como avalia esse debate no país e especialmente no Rio Grande do Sul?

 

Paulo Brack – Em 2012, justamente para o evento Rio+20, elaboramos um documento para reflexão e debate, denominado Transição Ecológica Necessária, por parte do InGá (Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais) e da Apedema (Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente- RS).

Porém, falhamos em não ter dado mais destaque e ampliar o debate para ganhar mais espaço em temas ainda difíceis para a maioria da população e enfrentar os atuais cenários de guerra de conquista e espoliação por parte de poderosos e concentrados setores econômicos contra a natureza e contra os povos mais oprimidos.

 

 

IHU – Pensando mais uma vez no contexto do Rio Grande do Sul, como conceber caminhos para uma transição ecológica?

 

Paulo Brack – Uma transição ecológica genuína depende muito, em primeiro lugar, de um espaço de diagnóstico técnico-científico deste enorme problema que aflige a humanidade. Em segundo lugar, é fundamental que os agentes políticos não negacionistas das mudanças climáticas tenham maioria. Melhor dizendo, o espaço de decisão tem que contar com setores da população conscientes da dimensão do problema e que estejam empoderados, com desejo e estratégia de mudança.

Do ponto de vista político, poderíamos pegar, como exemplo, setores hegemônicos da população do Chile que desejam profundas mudanças políticas e sociais, e por que não dizer socioambientais, na Constituinte desencadeada naquele país.

 

 

IHU – Recentemente, enquanto o mundo pensava alternativas ao carvão mineral, o Rio Grande do Sul insistia em investimentos de projetos nessa área. Um dos maiores, a Mina Guaíba, parece ter sido abandonado. Mas, de fato, o Rio Grande do Sul abandonou a ideia de ressuscitar o carvão como potência energética?

 

Paulo Brack – O uso do carvão mineral só se mantém devido a fartos subsídios públicos, bancados por nós, em políticas às avessas promovidas por governos e políticos. Temos que lembrar que há poucos anos, a partir do lobby do carvão e seus políticos associados, foi aprovada a absurda Lei Estadual n° 15.047/2017, que cria a Política Estadual do Carvão Mineral e institui dois Polos Carboquímicos no Rio Grande do Sul.

 

 

Esta lei desconsiderou totalmente outras leis anteriores, a Lei Federal nº 12.187/2009 (Política Nacional de Mudanças Climáticas) e a Lei Estadual nº 13.594/2010 (Política Estadual de Mudanças Climáticas). A Política Nacional define, em seu Artigo 11º (Parágrafo Único), que os planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas visam a “consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono na geração e distribuição de energia elétrica”.

A energia a partir do carvão mineral já conta com um grupo de mais de 70 países que se comprometeram a abolir esta fonte suja até 2020. Sabemos que a tendência mundial, em parte ainda negacionista da real crise climática na prática, pode não se traduzir em atitudes reais de redução de gases de efeito estufa, mas o atual governo neoliberal dificilmente vai se contrapor à economia imediatista reinante que não abre mão das fontes já ultrapassadas, muito poluentes e caras, de geração de energia, como no caso do carvão.

A transição energética necessária depende de fontes renováveis (eólica, solar, bioenergia de fontes diversas), descentralização e menor consumo ou consumo racionalizado, temas que não transitam na agenda neoliberal dominante no RS, no país e na maior parte do mundo.

 

 

IHU – Que cenário o senhor projeta para o estado num curto e médios prazos? Como conceber o desenvolvimento do Rio Grande do Sul sem desconsiderar as questões das mudanças climáticas?

 

Paulo Brack – A questão climática é central. Todos os indicadores científicos, incluindo os relatórios mais recentes e os ainda não publicados este ano pelo IPCC, apontam para o agravamento da maior parte dos cenários de emergência climática. O Rio Grande do Sul está sofrendo maior frequência e intensidade de fenômenos como ondas de calor, estiagens prolongadas, chuvas torrenciais concentradas, aumento de chuvas de granizo, vendavais extremos, entre outros fenômenos. Tudo isso deveria promover a necessidade de se estabelecer estações de maior controle e monitoramento destes fenômenos, com modelagens de diferentes cenários e prognósticos para o preparo de políticas públicas que atendam a maioria e apontem para uma economia que não esgote tanto a natureza, para concentrar bens para poucos, e que nos livre do colapso sistêmico cada vez mais possível e iminente.

Se não forem mantidos e recuperados, dentro do possível, os diferentes tipos de vegetação que desempenham processos ecológicos essenciais, garantidos pelo Artigo 225 da Constituição Federal, podemos prever o agravamento da situação no RS. Os biomas Pampa e Mata Atlântica, que ocorrem no Estado, têm uma série enorme de alternativas de uso econômico e socioambiental que partem do conhecimento tradicional, pesquisas acadêmicas e técnicas desenvolvidas por instituições de pesquisa e extensão que compatibilizam a proteção da vegetação nativa, a água, a socioagrobiodiversidade como patrimônios estratégicos para a vida digna, a geração de renda e o bem viver do povo gaúcho.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Paulo Brack – O ano de 2022 é muito significativo em relação a várias datas a serem comemoradas e lembradas de forma ativa. Vamos começar pela passagem dos 60 anos do livro Primavera Silenciosa (Editora Gaia, 2010), da bióloga e escritora estadunidense que denunciava os agrotóxicos, Rachel Carson, talvez o principal clássico do surgimento do movimento ambientalista mundial.

 

 

Na sequência, os 50 anos da I Conferência da ONU sobre Meio Ambiente Humano, que ocorreu em Estocolmo e vai ser comemorada oficialmente como Estocolmo + 50. Também os 30 anos da Rio 92, tema que os movimentos socioambientalistas e a academia têm mais legitimidade para tratar do que as autoridades que os tratam de maneira formal, sem maiores consequências de mudança de rumo necessária para a salvação da vida no planeta em colapso iminente.

E, neste ano, teremos eleições no Brasil, se não houver nenhum acidente de percurso... Daí, então, é importante construirmos pautas que possam inserir, de maneira forte, estes temas climáticos e ecológicos negligenciados, ou mesmo refutados, por autoridades governamentais e políticos. Infelizmente, a pauta de retrocessos segue no Congresso: agrotóxicos flexibilizados, marco temporal das térrea indígenas que vai contra os direitos dos povos originários, a grilagem oficial de terras, o licenciamento ambiental destruído, a “deforma” administrativa e tantas outras maldades, concentradas pela base parlamentar de um governo que segue uma pauta reacionária, de degradação ambiental e de delapidação do patrimônio público.

Tanto a academia como o movimento ecologista, aos quais me integro, irão promover debates e retomar pautas importantes de disputa de caminhos genuínos, de interesse público, além deste modelo hegemônico de economia que vem nos sequestrando, gerando muita desigualdade e comprometendo a estabilidade climática e o equilíbrio ecológico do planeta.

 

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