Brasil é um dos lugares mais perigosos para exercer e exigir Direitos Humanos. Entrevista especial com Antonio Neto

A constatação do ativista é baseada nos dados do relatório “Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas"

Integrantes do MST e CPT participam de ato simbólico em Belém do Pará, na praça Mártires de Abril, onde está erguido um monumento da Coluna da Infâmia, em homenagem aos mártires do massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996 | Foto: MST

Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos | 20 Dezembro 2021

 

Vivemos em um país que é historicamente “racista, machista e LGBTQIA+fóbico, onde prevalece a violência estrutural”. Essa é a avaliação de Antonio Neto, historiador e pesquisador que trabalhou na elaboração do relatório Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. “Esses dados mostram que o Brasil sempre foi e continua sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para exercer e exigir nossos direitos”, pontua.

 

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Neto revela um cenário aterrorizante. Entretanto, não há surpresas em o Brasil ocupar “o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos, segundo dados da pesquisa da Global Witness”. E o mais terrível é que, além de ser um cenário de violência direta, há um desmonte de políticas públicas que visam promover os Direito Humanos ou mesmo defender aqueles que fazem essa promoção. Isso, segundo o pesquisador, é tácito no discurso do atual governo. “A principal dificuldade é enfrentar o discurso violento e violador que sai da boca do presidente e atinge diariamente as ações que atacam os direitos humanos no cotidiano do nosso país”, pontua.



Neto também observa que “historicamente, no Brasil, a violência contra defensoras e defensores de direitos humanos se concentra no campo. São conflitos por terra, território, água, contra mineração, barragens, hidroelétricas”. Nas cidades, também há muita violência e ataques a Direitos Humanos. O problema é que há maior dificuldade para encontrar nexos entre os casos de violência e a atividade que as vítimas exercem. “É mais difícil dizer que a morte de uma liderança comunitária foi causada por conta da luta que ela faz onde mora ou pelos direitos que ela defende. Quase sempre é tratado como conflito de tráfico de drogas”, detalha. Isso tudo ainda sem falar que “sem terras, indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a diversidade que atua no campo são as principais vítimas dessa violência”.



Apesar das dificuldades e dos riscos dessa luta, o pesquisador defende: “desafio é seguir organizando a resistência popular para garantir a nossa vida e a nossa luta por nossos direitos”. Isso passa, no Brasil de nossos tempos, por enfrentar problemas que já pareciam superados. É o caso da fome e de outros direitos básicos. “Precisamos construir uma pauta de direitos humanos que coloque a superação da fome, da miséria, do desemprego que assola o nosso país. Essa é a principal pauta para a eleição o ano que vem, mas precisamos seguir lutando e apresentando-a para que sejam enfrentadas as causas estruturais que originam os conflitos e violências que afetam a defensoras e defensores de direitos humanos”, resume.

 

Antonio Neto (Foto: Justiça Global)

 

Antonio Neto é historiador e pesquisador da organização Justiça Global no Brasil. Militante da luta pela terra desde 2002 no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil – MST, ajudou a organizar o coletivo de juventude do MST e a Via Campesina Brasil, contribuindo para a implementação deste tema nas organizações camponesas brasileiras. Hoje, na Justiça Global, atua na organização do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no Brasil e no monitoramento das ações de assassinatos, criminalização, ataques e outras violações às lutas dos defensores dos direitos humanos.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Em que consiste o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH?

Antonio Neto – O Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos –PPDDH no Brasil foi instituído em 26 de outubro de 2004. A criação do Programa era uma reivindicação de organizações de direitos humanos e apontava para a construção de uma política pública efetiva de proteção e enfrentamento das situações geradoras de ameaças e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos.

Apesar de ter sido lançado em outubro de 2004, o Programa de Proteção só atuou de fato com o assassinato da missionária Dorothy Stang, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, no Pará. A grande repercussão do assassinato da irmã Dorothy levou o Governo Federal a relançar o Programa e o governo daquele estado a implantá-lo, por meio de uma Coordenação Estadual.

 

 

O PPDDH foi pensado que para aqueles e aquelas que, em virtude da sua ação política, se encontram em situação de ameaça e violação contra o seu direito de defender direito. O objetivo é que o poder público empreenda todos os esforços necessários para assegurar o direito à vida e à integridade física sem a supressão de qualquer direito da pessoa, grupo ou organização social que defenda os direitos humanos.

 

 

IHU – Por que, segundo o relatório “Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas", este é o pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos?

Antonio Neto – No momento em que o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos, segundo dados da pesquisa da Global Witness, o desmatamento na Amazônia brasileira é o maior em quinze anos e vivemos a pandemia de Covid-19, que demanda políticas públicas urgentes e específicas, tramitam no Congresso Nacional, com apoio do governo federal, propostas legislativas restritivas de processos de demarcação de terras indígenas e permissivas. Tudo isso para que o setor privado explore e se aproprie de territórios indígenas e de terras destinadas à reforma agrária. Também são empreendidas inúmeras outras ações e políticas violadoras de direitos de quilombolas, LGBTQIA+, mulheres, crianças e adolescentes, dentre tantos outros sujeitos.

É nessa conjuntura que vivemos um período de baixíssima execução orçamentária no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH, assim como de desmontes, como a intensa restrição à participação social em sua estrutura, e exigências operativas pelo governo federal às organizações executoras dos programas estaduais de proteção, que não encontram amparo legal, e ameaçam suas existências.

Percebemos, portanto, um movimento simultaneamente perigoso: por um lado, o governo Bolsonaro não tem garantido condições necessárias para proteção a defensoras e defensores de direitos humanos, ao desmontar o PPDDH de diversas formas. Por outro, tem sido, ele próprio, por meio da agenda política de aliança com o poder econômico, ameaça às vidas desses sujeitos em luta.

 

 

IHU – O que tem sido diferente no governo Bolsonaro em relação a outros governos? Que desmontes estão sendo feitos no PPDDH?

Antonio Neto – O governo Bolsonaro vem implementando uma política que ataca os direitos humanos em geral, e em específico ataca as pessoas que lutam por seus direitos e na defesa de defendê-los. O PPDDH já vem sendo desmontado há muito tempo. Sucessivos governos vieram tendo dificuldades em implementar as recomendações que organizações da sociedade civil historicamente defendem, como, por exemplo, a construção de uma lei que institua o programa como política de estado e não somente do governo de turno.

Três pontos podemos colocar aqui como importantes: 1) primeiro, a diminuição dos casos incluídos no programa em âmbito federal. O acompanhamento dos dados relativos ao programa, tais como casos acompanhados, recursos destinados e equipe contratadas, é um monitoramento importante de ser realizado, especialmente para a criação de séries históricas, que permitem a análise do PPDDH no tempo, com identificação dos seus movimentos de ampliação e detração. É a partir dessa análise que podemos verificar a configuração de uma tendência, no âmbito federal, de diminuição de casos incluídos no programa.

Dados disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MMFDH em março de 2021, relativos à quantidade de casos incluídos no PPDDH no intervalo de 2009 a 2021, revelam um total de 209 casos. Analisando esses dados, percebemos anos com picos de inclusões, como os anos de 2011, com 27 casos, e de 2013, com 38, mas olhando os dados em um movimento mais amplo, demonstra uma linha de tendência à diminuição: em 2018, 8 casos; em 2019, 3 casos; 2020, 15 casos, e 2021, 2 casos.

De modo inverso, vemos quando observamos os dados relativos aos casos que não foram incluídos no programa. Segundo os dados do MMFDH, em 2020, onze casos foram arquivados e dezessete não foram incluídos no programa federal.

 

Insegurança política

O segundo problema tem a ver com a insegurança política na gestão: demora, ineficácia e inadequação das medidas protetivas. O atual governo não tem uma política clara de como tomar as medidas de proteção para as defensoras e defensores de direitos humanos que fazem parte do seu programa. Essa proteção tem sido caracterizada pela demora na concessão e pela ineficácia ou até mesmo inexistência de medidas adequadas.

 

Falta de participação social

Um terceiro ponto diz respeito à falta de participação social em diferentes espaços do governo. Embora a participação social tenha sido insuficiente também em gestões anteriores, o governo Bolsonaro acentua um processo de desmonte de conselhos e comitês essenciais no acompanhamento de diferentes políticas públicas que efetivam direitos humanos.

Um dos maiores exemplos disso é a ausência total de espaço para participação da sociedade civil no grupo de trabalho convocado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para a construção do novo Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH. Os dois PNDH que já foram executados anteriormente foram construídos a partir de amplos debates com movimentos sociais e com a sociedade civil organizada.

No âmbito do PPDDH, um recente decreto federal publicado em setembro deste ano também alterou o Conselho Deliberativo do Programa, e passou a ter participação não-paritária da sociedade civil. Das nove vagas para a composição do conselho, seis são ocupadas por representes de ministérios ou autarquias do governo federal.

 

 

IHU – A que atribui o fato de o Brasil ocupar o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos? O que isso revela sobre o país?

Antonio Neto – Esses dados mostram que o Brasil sempre foi e continua sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para exercer e exigir nossos direitos. Revela um país racista, machista e LGBTQIA+fóbico, onde prevalece a violência estrutural.

Revela, ainda, que o país tem uma dívida histórica com os povos indígenas, quilombolas e tradicionais que não têm o seu direito à terra e territórios garantidos e por isso se organizam para lutar pelos seus direitos, e por essa luta sofrem violências violações de direitos, ameaças e, em muitos casos, até a morte.

No atual momento que vivemos e com o governo que temos, que, através da sua fala violenta e na busca de um inimigo comum elegeu os povos indígenas, quilombolas e sem terras como seu principal alvo – e que figuram quase sempre nos discursos de incitação à violência proferido pelo presidente -, esses discursos não só ficam nas palavras, pois encontram eco em grande parcela da sociedade, que, autorizada pela fala do presidente, realiza atos de violência contra esses povos.

 

 

IHU – Qual é o perfil dos defensores e defensoras de direitos humanos que são assassinados ou violentados no Brasil? Que pautas eles defendem?

Antonio Neto – Historicamente, no Brasil, a violência contra defensoras e defensores de direitos humanos se concentra no campo. São conflitos por terra, território, água, contra mineraçãobarragenshidroelétricas.

Nas cidades, onde a violência em geral é maior, nós temos muitas dificuldades de encontrar o nexo de causalidade entre o assassinato de pessoas com a atividade que ele exerce, ou seja, é mais difícil dizer que a morte de uma liderança comunitária foi causada por conta da luta que ela faz onde mora ou pelos direitos que ela defende. Quase sempre é tratado como conflito de tráfico de drogas.

Sem terras, indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a diversidade que atua no campo são as principais vítimas dessa violência. São lideranças desses grupos que se expõem nos conflitos e que por sua atuação sofrem as principais violências, e, em sua grande maioria, estão nas regiões norte e nordeste do país, onde os conflitos por terra e território sempre foram bastante violentos.

 

 

IHU – O relatório aponta para a baixíssima execução orçamentária do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH no atual governo. Qual é a verba destinada para o Programa hoje e qual era o orçamento anterior?

Antonio Neto – O orçamento é um dos pontos sensíveis à continuidade do programa, pois sua insuficiência, rigidez, burocratização e demora no repasse fragilizam e comprometem a efetivação nos estados e integração da política nacionalmente. A implementação de políticas públicas depende, necessariamente, da destinação de recursos e, no âmbito do Estado brasileiro, isso é verificado não só pela previsão de orçamento, mas, principalmente, pela sua execução, com empenho e pagamento do recurso previsto para cada ano.

Analisando os dados de 2019, 2020 e 2021, disponibilizados pelo Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento – SIOP do governo federal, e que constam na nossa pesquisa, verificamos a persistência de um grave problema na execução dos orçamentos, que não são integralmente pagos no ano, prejudicando a continuidade da política e a consequente proteção que deveria viabilizar.

Em 2020, por exemplo, o orçamento destinado ao PPDDH foi de R$ 9.140.968,00, mas apenas 10,27% desse valor (R$ 938.726,00) foi pago no ano, já em 2019, menos de 17% do orçamento destinado para o PPDDH foi pago no ano. Ainda que consideremos, para o cálculo do pagamento efetivo, a inclusão dos valores pagos como “restos a pagar” em 2020 e em 2019 – ou seja, valores de orçamentos de anos anteriores pagos no exercício seguinte – temos uma baixíssima execução em relação ao orçamento previsto.

Na nossa pesquisa fazemos a seguinte pergunta: Como é possível garantir a continuidade das atividades, promovendo as medidas de proteção necessárias, se não é efetivo o pagamento na integralidade do orçamento destinado?

Esse é um dos principais gargalos que precisamos resolver para termos uma política pública efetiva.

 

 

IHU – Quais são as maiores dificuldades de dar continuidade à pauta de defesa dos direitos humanos no governo Bolsonaro?

Antonio Neto – A principal dificuldade é enfrentar o discurso violento e violador que sai da boca do presidente e atinge diariamente as ações que atacam os direitos humanos no cotidiano do nosso país. A violência difusa que a população LGBTQIA+ vem sofrendo e que coloca o país como um dos mais perigosos para pessoas trans, a violência racista que atinge a população negra - uma pessoa negra é morta pela polícia a cada quatro horas -, a violência de gênero, a violência contra os povos indígenas e quilombolas e muitas outras que precisam ser denunciadas e enfrentadas com políticas públicas que ataquem a questão estrutural que as origina.

Ainda há o problema do modelo de desenvolvimento que privilegia o grande capital em detrimento da grande maioria da população e que, na pandemia, priorizou a economia em detrimento do enfrentamento dos efeitos sanitários causados pela covid-19, que assolou nosso país e potencializou a crise que estamos vivendo.

Apesar dessa difícil situação, desafio é seguir organizando a resistência popular para garantir a nossa vida e a nossa luta por nossos direitos.

 

 
IHU – Qual é a expectativa em relação a essa pauta no próximo ano, tendo em vista as eleições presidenciais? Como seria possível colocar essa pauta na agenda eleitoral?

Antonio Neto – Precisamos construir uma pauta de direitos humanos que coloque a superação da fome, da miséria, do desemprego que assola o nosso país. Essa é a principal pauta para eleição o ano que vem, mas precisamos seguir lutando e apresentando-a para que sejam enfrentadas as causas estruturais que originam os conflitos e violências que afetam a defensoras e defensores de direitos humanos.

A realização de demarcação de terra indígenas e quilombolas, a reforma agrária para agricultores sem terra e a reforma urbana para enfrentar o déficit de moradia são exemplos disso. Com esse tipo de ação, a política pública de direitos humanos em geral e de defensores de direitos humanos em específico ganhará mais centralidade, mas precisaremos seguir lutando para a efetiva implementação do PPDDH e que ele seja de fato uma alternativa para que defensoras e defensores possam lutar por seus direitos de forma mais protegida e com segurança.

 

 

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