13 Agosto 2018
Apesar de o Ministério da Saúde registrar anualmente entre 12 e 14 mil intoxicações por agrotóxicos, e a notificação de casos de intoxicação exógena ser obrigatória no país, “há um grande sub-registro de casos”, informa a pesquisadora da Fiocruz Aline do Monte Gurgel à IHU On-Line. Segundo ela, “estimativas apontam que, para cada caso notificado, 50 outros deixam de ser informados nos sistemas de informação em saúde. Praticamente todos os casos notificados são de intoxicações agudas, porque é mais fácil estabelecer uma relação causal nessas situações, onde os sinais de intoxicação surgem pouco tempo depois da exposição. Os casos crônicos, onde os sinais de intoxicação demoram mais tempo para aparecer, dificilmente são diagnosticados e notificados, dificultando precisar o número de ocorrências no país”.
De acordo com Aline, não existe “exposição segura aos agrotóxicos”, porque “o perigo é uma das características intrínsecas” ao produto. A noção de “uso seguro” dessas substâncias, alerta, “é um conceito disseminado majoritariamente pelo agronegócio, que precisa vender a ideia de que as pessoas podem se expor aos agrotóxicos sem que haja intoxicação”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a pesquisadora também comenta o PL do Veneno. Se a medida for aprovada, afirma, ela irá impor uma série de retrocessos, entre eles, o desmonte do sistema de regulação tríplice e vigente no país, que consiste em liberar os agrotóxicos para comercialização somente depois da análise dos Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente, deixando a avaliação a critério do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa. “Acontece que os órgãos de Saúde e do Meio Ambiente realizam suas avaliações de toxicidade com base em critérios técnicos que são observados por especialistas da área, buscando zelar pela defesa da saúde e proteção da vida. Como o Mapa não possui competência técnica para realizar tais análises, o processo de avaliação dos agrotóxicos pode se tornar um mero procedimento burocrático realizado sem o rigor técnico e científico necessários, uma vez que ele não possui expertise para realizar tais análises. Essa concentração de poderes no Mapa deixa esse Ministério ainda mais vulnerável aos interesses do mercado”, adverte.
Aline do Monte Gurgel é graduada em Biomedicina pela Universidade Federal de Pernambuco – Ufpe e mestra e doutora em Saúde Pública pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é pesquisadora na área de Saúde Pública na Fiocruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Segundo dados do Ministério da Saúde, são registradas anualmente entre 12 e 14 mil intoxicações por agrotóxicos no país a cada ano. Esse dado é uma surpresa ou não, tendo em vista o uso de agrotóxicos no país?
Aline do Monte Gurgel - Embora a notificação dos casos de intoxicação exógena, como os decorrentes da exposição aos agrotóxicos, seja obrigatória no Brasil, temos observado que há um grande sub-registro de casos. Estimativas apontam que, para cada caso notificado, 50 outros deixam de ser informados nos sistemas de informação em saúde. Praticamente todos os casos notificados são de intoxicações agudas, porque é mais fácil estabelecer uma relação causal nessas situações, onde os sinais de intoxicação surgem pouco tempo depois da exposição. Os casos crônicos, onde os sinais de intoxicação demoram mais tempo para aparecer, dificilmente são diagnosticados e notificados, dificultando precisar o número de ocorrências no país.
Mesmo diante do sub-registro, o número de casos notificados é bastante expressivo e ajuda a entender a dimensão do problema representado pelas intoxicações decorrentes do uso de agrotóxicos no Brasil, que tem grandes impactos para a saúde, o ambiente e a sociedade.
IHU On-Line - Quais são as complicações ou problemas de saúde gerados por conta das intoxicações por agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel - A exposição aos agrotóxicos está associada ao surgimento de diversos problemas para a saúde, desde casos de intoxicação aguda, cujos sinais mais brandos de intoxicação podem incluir náuseas, vômitos e dores de cabeça, a doenças graves como o câncer e Parkinson, além de danos potencialmente irreversíveis e fatais, como mutações genéticas, casos de malformação do feto ainda na barriga da mãe e abortos.
IHU On-Line - É possível estimar quais são as principais causas dessas intoxicações e qual é o perfil dos intoxicados?
Aline do Monte Gurgel - As intoxicações ocorrem porque as pessoas se expõem ao veneno, por diferentes vias e em diferentes situações. Pode haver exposição dietética, que se dá pelo consumo de alimentos contaminados com resíduos de agrotóxicos, sejam eles in natura (como frutas e verduras), ultraprocessados (como massas e salgadinhos) ou de origem animal (leite e carne de animais que se expuseram previamente aos agrotóxicos). A exposição também pode ser ambiental, quando a pessoa entra em contato com solo ou água contaminados com resíduos de agrotóxicos, ou por meio da exposição ocupacional, que é quando o contato com o veneno se dá no processo de trabalho, seja ele em uma fábrica que produz agrotóxicos ou no campo, durante a aplicação dos venenos agrícolas, por exemplo.
É importante frisar que a exposição não acontece por um comportamento inadequado da população ou por meio de "atos inseguros" dos trabalhadores que manuseiam agrotóxicos; a toxicidade é uma característica dos agrotóxicos, como o próprio nome diz, e, mesmo que sejam adotadas medidas para reduzir a exposição, o perigo não é eliminado.
É importante destacar que as intoxicações não se distribuem igualmente na população; se concentram nos grupos populacionais mais vulnerabilizados, como trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, bem como pessoas imunocomprometidas, como crianças e idosos.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores debatem sobre o uso seguro ou não desses produtos. Na sua avaliação, existe uso seguro de agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel - O uso seguro de agrotóxicos é um conceito disseminado majoritariamente pelo agronegócio, que precisa vender a ideia de que as pessoas podem se expor aos agrotóxicos sem que haja intoxicação. A verdade é que não existe exposição segura aos agrotóxicos, uma vez que o perigo é uma característica intrínseca aos agrotóxicos, não sendo possível eliminá-lo. A adoção de medidas de proteção coletiva e o uso de Equipamentos de Proteção Individual - EPI pelos trabalhadores pode apenas reduzir o risco de exposição, mas nunca vai alterar o potencial de uma substância de causar intoxicações. Ademais, é preciso considerar que grande parte dos EPI foi concebida para proteger contra agentes isolados, sendo incapazes de proteger contra a exposição a misturas, onde muitas vezes agrotóxicos diferentes interagem entre si, potencializando seus efeitos tóxicos, provocando os chamados efeitos sinérgicos. Os agrotóxicos também podem interagir com os EPI em escala molecular, levando à absorção das moléculas do produto e consequente exposição humana.
Igualmente, existem muitas falhas de concepção e de projeto em relação aos EPI. Por exemplo, muitos dos EPI atualmente comercializados para a proteção contra agrotóxicos foram adaptados da indústria sem revisão das especificações, isto é, foram projetados para evitar a exposição a outros produtos químicos, e simplesmente indicados posteriormente para a indústria dos agrotóxicos, sem que houvesse para isso qualquer adaptação que eventualmente se fizesse necessária. Da mesma forma, muitos EPI não foram concebidos para uso simultâneo, havendo casos onde as luvas não se integram com a vedação das mangas das roupas. Tudo isso favorece a exposição do trabalhador, representando um aumento no risco do desenvolvimento de diversos problemas de saúde.
É importante ressaltar que esses dados não se baseiam em uma opinião ou ponto de vista. Todas essas informações podem ser evidenciadas em estudos científicos realizados por pesquisadores no Brasil e em outros países, reforçando a tese de que não é possível se expor aos agrotóxicos de forma segura, mesmo que ele seja utilizado conforme prescrito.
IHU On-Line - Como tem se discutido a responsabilização por essas intoxicações na área da saúde hoje? A responsabilidade é atribuída ao agricultor que teve contato com o produto ou ao fabricante?
Aline do Monte Gurgel - Temos que ter cuidado para não responsabilizar individualmente os trabalhadores pelos casos de intoxicação. Temos no Brasil, especialmente após os anos de 1960-70, no período pós-Revolução Verde, um modelo de produção que praticamente impõe o uso de agrotóxicos para os produtores, pois a oferta de crédito foi atrelada à compra de insumos químicos. Com isso o pequeno produtor era praticamente obrigado a usar agrotóxicos em suas plantações, levando à exposição e, consequentemente, ao crescimento dos casos de intoxicação. Também sabemos que as condições de trabalho no campo são muitas vezes precárias, favorecendo as exposições dos trabalhadores. Não dá para culpar o pequeno produtor pelo seu adoecimento, ele é muito mais uma vítima desse modelo de produção.
IHU On-Line - Qual sua avaliação do PL do Veneno? Quais as desvantagens ou vantagens dele em relação à legislação atual? O que deve mudar na regulamentação de registro dos agrotóxicos em relação ao modo como ela ocorre hoje?
Aline do Monte Gurgel - O PL 6.299 impõe uma série de retrocessos para a saúde e o ambiente. Sua aprovação vai permitir a exposição humana a agrotóxicos que hoje têm seu registro proibido no Brasil, a exemplo daqueles relacionados a danos graves como câncer, malformação congênita, mutações e distúrbios no sistema hormonal, por exemplo. A atual legislação brasileira proíbe o registro de agrotóxicos que possam provocar esses efeitos, porém o PL irá permitir a liberação desse tipo de produto no mercado nacional sempre que o risco para a população for considerado “aceitável”. Acontece que para algumas substâncias que podem provocar câncer ou para aquelas que provocam desregulação hormonal, por exemplo, não é possível estabelecer doses de exposição consideradas seguras, pois há risco de dano para cada dose diferente de zero. Não existe risco que possa ser considerado “aceitável” nesses casos, e o PL negligencia isso.
Outro importante retrocesso relaciona-se ao desmonte do sistema de regulação tríplice vigente no Brasil, onde o registro de um agrotóxico se dá somente após a análise de três ministérios: Saúde, Agricultura e Meio Ambiente. A nova proposta legislativa retira dos órgãos da Saúde e do Meio Ambiente a competência de avaliar os impactos dos agrotóxicos em suas respectivas áreas, que seriam agora feitas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa. Acontece que os órgãos de Saúde e do Meio Ambiente realizam suas avaliações de toxicidade com base em critérios técnicos que são observados por especialistas da área, buscando zelar pela defesa da saúde e proteção da vida. Como o Mapa não possui competência técnica para realizar tais análises, o processo de avaliação dos agrotóxicos pode se tornar um mero procedimento burocrático realizado sem o rigor técnico e científico necessários, uma vez que ele não possui expertise para realizar tais análises. Essa concentração de poderes no Mapa deixa esse Ministério ainda mais vulnerável aos interesses do mercado.
Outro artigo potencialmente problemático do PL diz respeito à prescrição de receita agronômica antes da ocorrência da praga, de forma preventiva. Esta medida, além de não permitir adequar o uso de agrotóxicos ao problema fitossanitário, ao nível de dano ou o estágio da cultura a ser tratada, favorece ainda mais a exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos ao ampliar as possibilidades de exposição no campo.
IHU On-Line - Se o PL do Veneno for aprovado, a nova legislação poderá aumentar o número de intoxicações por agrotóxicos?
Aline do Monte Gurgel - A expectativa é acelerar os processos de registro de agrotóxicos, permitindo inclusive o registro de agrotóxicos que estejam relacionados ao surgimento de cânceres, malformação congênita, danos ao sistema reprodutivo, mutações e distúrbios no sistema hormonal. Também será possível produzir no Brasil produtos que não tenham registro no país, prescrever o uso de venenos de forma preventiva, antes da ocorrência da praga, bem como registrar agrotóxicos sem que sejam feitos estudos toxicológicos no país. Somando todos esses elementos, é de se esperar um aumento da exposição e, consequentemente, do número de intoxicados.
Embora esse aumento seja esperado, pode ser que, em um primeiro momento, ele não se traduza em dados observáveis nos sistemas de informação em saúde, uma vez que muitos dos potenciais agravos esperados surgem tardiamente, como é o caso dos cânceres, que podem surgir décadas após uma exposição.
IHU On-Line - Como deveriam ser feitos os estudos toxicológicos no país?
Aline do Monte Gurgel - Existe um elemento central que precisa ser considerado em qualquer estudo de exposição a agentes tóxicos: o princípio da precaução. O princípio da precaução é considerado o mecanismo mais importante para a preservação da saúde e do ambiente ao prever que a simples presença de indícios de danos causados por um agente como agrotóxicos já seria suficiente para justificar interromper a exposição das pessoas e dos ecossistemas. Assim, diante da possibilidade de dano irreversível público ou ambiental e na ausência de consenso científico irrefutável, a exposição deve ser evitada até que aquele que pretende causar o dano — no caso as empresas que detêm ou buscam o registro do agrotóxico — possam provar, sem sombra de dúvidas, que a exposição àquele agente pode ser considerada segura. Em síntese, a defesa da vida deve se sobrepor a qualquer interesse econômico.
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PL do Veneno e o fim do sistema de regulação tríplice. Entrevista especial com Aline do Monte Gurgel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU