23 Fevereiro 2023
Para situar o rescrito de 20 de fevereiro de 2023, com o qual se especificam as competências episcopais e papais em matéria de liturgia eucarística, é preciso um olhar amplo, que considere a questão não simplesmente como um caso de “exercício do poder”, mas como custódia da comunhão eclesial e de uma autêntica compreensão do sacramento da eucaristia.
Para esclarecer até que ponto esse documento muito recente também se enquadra na necessária superação do “paralelismo ritual” introduzido pelo Summorum pontificum em 2007, o teólogo italiano Andrea Grillo publicou em seu blog, Come Se Non, 22-02-2023, alguns trechos das atualizações que teve de fazer ao texto “Eucaristia. Azione rituale, forme storiche, essenza sistematica” [Eucaristia. Ação ritual, formas históricas, essência sistemática, Bréscia: Queriniana, 2023] (particularmente no capítulo 10, dedicado justamente ao trabalho de recepção da Reforma litúrgica), para colocá-lo em sintonia com a evolução da disciplina proposta pelo Papa Francisco nos últimos dois anos, até ao texto publicado no último dia 21.
Trata-se de uma obra de pacificação, que demonstra que as intenções de pacificação anteriores produziram, na realidade, uma perigosa oposição interna ao catolicismo, baseada em uma alternativa entre “formas do rito” que revelavam a rejeição do Concílio Vaticano II.
O magistério litúrgico do Papa Francisco se manifestou gradualmente, ao longo da última década, com progressiva clareza. As primeiras intervenções disseram respeito a questões importantes como as traduções litúrgicas (motu proprio Magnum principium, de 2017) ou a extensão do leitorado e do acolitado também às mulheres (motu proprio Spiritus Domini, de 2021).
Mas os dois textos fundamentais, também no nível de uma sistemática litúrgica e eucarística, são o motu proprio Traditionis custodes (julho de 2021), acompanhado de uma carta aos bispos, e a carta apostólica Desiderio desideravi (junho de 2022), sobre a qual é bom se debruçar.
A publicação do motu proprio Traditionis custodes e da contextual Carta aos Bispos do Papa Francisco, com a qual, depois de 14 anos, supera-se o motu proprio Summorum pontificum, traz de volta a condição do uso do rito tridentino à sua posição original: ou seja, a de ser aquela forma do rito romano que o Concílio Vaticano II deliberou reformar.
Essa condição manteve-se inalterada até 1984 e depois até 1988, quando se deu aos bispos a faculdade de concederem um “indulto” que permitisse, em condições particulares, fazer uso da forma anterior do rito, apenas em casos específicos.
Isso implica que as condições de acesso ao rito tridentino voltaram hoje, depois do Traditionis custodes, essencialmente àquilo que foi concedido por João Paulo II em 1988. Pode ser útil construir uma breve “sinopse” para ver o que havia mudado com o Summorum pontificum e o que está acontecendo hoje com o Traditionis custodes.
Desse modo, aparece claramente que uma “teoria arriscada e contraditória” – a ideia de que a própria lex credendi podia se expressar pacificamente em duas “formas rituais paralelas” – havia causado uma incerteza de direito e um vácuo de poder episcopal, que trouxe confusão, divisão e conflito na única Igreja. Eis a comparação:
a) O Summorum pontificum, no artigo 1, dizia que as “duas formas do rito romano” – ou seja, o novus ordo e o vetus ordo – estavam ambas em vigor e eram lícitas. Em vez disso, Traditionis custodes 1 diz que só há uma lex orandi, e é aquela expressado pelo novus ordo. A posição clássica e tradicional é a defendida pelo Traditionis custodes, enquanto o Summorum pontificum havia introduzido durante 14 anos uma leitura inédita e contraditória da tradição. A afirmação do Summorum pontificum de que as duas formas “não levarão de forma alguma a uma divisão na ‘lex credendi’ da Igreja” [art. 1] não tem fundamento real, soa apodítica e, sobretudo, parece ser desmentida pela experiência. O que Bento XVI afirmou como justificado a priori, Francisco verificou e substituiu como infundado a posteriori.
b) Summorum pontificum 2 estabelece a liberdade de todo padre de poder celebrar “sem povo” indiferentemente com o novus ordo ou o vetus ordo, sem ter de responder nem ao bispo nem à Sé Apostólica. Para o Traditionis custodes, essa possibilidade não pode ser de forma alguma sequer considerada, uma vez que apenas a forma do novus ordo está vigente e é lícita, como ditam a razão e a tradição. Por isso, Traditionis custodes 4-5 prevê para todos os presbíteros que pretendessem celebrar segundo o vetus ordo a necessária autorização do bispo. Summorum pontificum 4 acrescentava a possibilidade, para membros individuais do povo de Deus, de “serem admitidos” às missas “sem povo” celebradas segundo o vetus ordo, em clara contradição com o princípio geral da participação ativa, estabelecido pelo Vaticano II e restabelecido pelo Traditionis custodes.
c) Summorum pontificum 5 regulava a presença de “grupos estáveis” nas paróquias, convidando o pároco e o bispo a acolhê-los e a evitar toda discórdia. Traditionis custodes 3,2 exclui que se possa celebrar com o vetus ordo nas igrejas paroquiais: essa é a consequência razoável do fato de que apenas o novus ordo está em vigor e é universalmente lícito, e não o vetus ordo.
d) Traditionis custodes 3 atribui ao bispo diocesano o cuidado das possibilidades de celebração no vetus ordo, valendo-se de um padre encarregado que se ocupe da celebração e do cuidado pastoral, estabelecendo dias e locais específicos, verificando a necessidade das paróquias pessoais já instituídas para esse fim e não autorizando novos grupos.
e) De acordo com Summorum pontificum 5, 3, podia-se pedir ao pároco a celebração da missa no vetus ordo também por ocasião de casamentos, funerais ou peregrinações. Tendo sido excluída a competência do pároco no Traditionis custodes, a possibilidade desses pedidos também cai.
f) Summorum pontificum 9 previa ainda que o pároco, se assim considerasse oportuno, podia utilizar o vetus ordo também para os batismos, os casamentos, as confissões ou as unções dos enfermos; que o bispo podia usar o vetus ordo para a confirmação e que os clérigos podiam usar o breviário do vetus ordo para a oração das horas. Nada disso é mais possível sem uma autorização específica e pessoal.
Obviamente, as questões que possam surgir sobre a aplicação do Traditionis custodes não terão mais a interpretação “especial” que a Comissão Ecclesia Dei (abolida em 2019) havia assegurado segundo o Summorum pontificum. A competência da Congregação para o Culto Divino unifica a única “lex orandi” sob a mesma autoridade e evita, assim, cair em disciplinas caricaturais e fictícias [1].
A tradição caminha com o único rito comum, “única expressão da lex orandi do Rito Romano” (TC 1), que merece ser plenamente valorizado. A razoabilidade prevaleceu sobre a abstração irrealista e sobre a incauta convivência contraditória entre fases diferentes e irreversíveis do rito romano.
Como vimos, o Summorum pontificum, com uma normativa contraditória, trouxera o conflito devido à sua confusão. O Traditionis custodes retorna ao horizonte que pode promover a paz, por mérito de sua clareza linear [2].
O Summorum pontificum havia tornado o Concílio Vaticano II marginal e acessório, enquanto o Traditionis custodes o restabelece com evidência em sua irreversibilidade [3].
Obviamente, a normativa do Traditionis custodes impacta agora sobre as ilusões que durante 14 anos foram nutridas e alimentadas até mesmo pelo centro e que agora se inclinam a inverter os papéis, fazendo do Traditionis custodes um documento de “ruptura da tradição”, sem saber reconhecer, com ânimo sereno, que a ruptura grave ocorreu justamente com a “anarquia de cima” promovida pelo Summorum pontificum.
Ao texto do Traditionis custodes, foi acrescentada, cerca de um ano depois, a carta apostólica Desiderio desideravi, que em 29 de junho de 2022 o Papa Francisco dedicou à “formação litúrgica do povo de Deus”.
Esse texto nos oferece um primeiro nível de intenção, que transparece a desde as primeiras linhas e a partir de uma retomada poderosa nos últimos números do texto (composto por 65 breves parágrafos).
É evidente que a Desiderio desideravi declara que deriva, como uma ampliação, da “carta aos bispos” que tinha acompanhado o motu proprio Traditionis custodes no ano anterior. Devido à Reforma Litúrgica, era superado o regime de “paralelismo” entre duas formas do mesmo rito romano. Com a Desiderio desideravi, Francisco esclarece mais explicitamente sua intenção (DD 61):
“Somos continuamente chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais expostos nos primeiros números da Sacrosanctum Concilium, compreendendo a íntima ligação entre a primeira das Constituições conciliares e todas as demais. Por este motivo, não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a guia do Espírito e segundo a sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma. Os santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, aprovando os livros litúrgicos reformados ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II garantiram a fidelidade da reforma ao Concílio. Por este motivo escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja possa elevar, na variedade das línguas ‘uma só e idêntica oração’ capaz de exprimir a sua unidade. Pretendo que esta unidade, como já escrevi, seja restabelecida em toda a Igreja de Rito Romano.”
Essa frase indica como o texto se insere explicitamente na retomada do desígnio conciliar e supera claramente a longa fase de hesitação que havia marcado a Igreja Católica na parte final do pontificado de João Paulo II e mais claramente durante o pontificado de Bento XVI. O que deve ser trazido de volta ao centro das atenções? O texto diz isso com uma expressão “clássica”: a “formação litúrgica”.
Com essa expressão, quer-se voltar ao caráter “comum” do ato litúrgico, e sobretudo eucarístico, do qual os sujeitos são Cristo e a Igreja. Se adquirirmos a qualidade de “celebrantes” de todos os batizados, como a Desiderio desideravi faz de forma muito clara, então é evidente que a dupla formação (na liturgia e pela liturgia) só pode ocorrer graças aos ritos que surgiram da reforma, que restabeleceram limpidamente esta antiga verdade:
“Recordemo-nos sempre de que é a Igreja, Corpo de Cristo, o sujeito celebrante, não só o sacerdote.” (DD 36).
Esse princípio deriva do valor teológico da liturgia e permite assumir a celebração “comum” como fonte e ápice de toda a ação da Igreja. Por isso, não faz sentido fundar uma ciência litúrgica por “temor dos abusos a serem evitados”, mas sim como desejo dos usos a serem aprendidos. Essa “virada para aprender o uso” é realmente um grande evento de graça.
Depois que, a partir da Redemptionis Sacramentum (2004), tornara-se habitual e até mesmo óbvio ouvir intervenções magisteriais sobre a liturgia cheias apenas de preocupações, de limitações, de hesitações, de temores, de advertências, agora um texto orientado para retomar o caminho da reforma litúrgica – que assume um único âmbito de debate comum e que elimina, estruturalmente, o verme de uma “segunda mesa” para poder fazer a “verdadeira experiência litúrgica” – assume a qualidade de um grande evento. Seu horizonte é o Concílio Vaticano II e sua preciosa herança, que a Desiderio desideravi 31 sintetiza assim:
“Se a Liturgia é o ‘cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde promana toda a sua energia’ (Sacrosanctum Concilium, n. 10), compreendemos bem o que é que está em jogo na questão litúrgica. Seria banal ler as tensões acerca da celebração, infelizmente presentes, como se de uma simples divergência se tratasse entre sensibilidades diversas em relação a uma forma ritual. A problemática é antes de mais eclesiológica. Não vejo como se possa dizer que se reconhece a validade do Concílio – se bem que me surpreenda que um católico possa ter a pretensão de o não fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que exprime a realidade da Liturgia em íntima conexão com a visão de Igreja admiravelmente descrita pela Lumen gentium.”
Aqui a questão eucarística e litúrgica é novamente compreendida no campo teológico e eclesiológico que lhe compete. Um paralelismo ritual, aparentemente irênico, esconde uma grave concorrência entre diferentes visões da igreja e de Deus.
1. Em novembro de 2021, a Congregação para o Culto Divino publicou “Responsa ad dubia” para esclarecer as dúvidas levantadas em torno da interpretação do texto do Traditionis custodes. O conteúdo desse documento pode ser lido em italiano aqui.
2. Essa preocupação é expressada pelo Papa Francisco, na carta aos bispos que acompanha o Traditionis custodes, com estas palavras: “À distância de 13 anos (desde 2007) encarreguei a Congregação para a Doutrina da Fé de lhes enviar um questionário sobre a aplicação do motu proprio Summorum pontificum. As respostas recebidas revelaram uma situação que me dói e me preocupa, confirmando-me a necessidade de intervir. Infelizmente, a intenção pastoral de meus antecessores, que haviam pretendido ‘fazer todos os esforços para que todos aqueles que têm verdadeiramente o desejo da unidade possam permanecer nessa unidade ou reencontrá-la’, foi muitas vezes gravemente desatendido. Uma possibilidade oferecida por São João Paulo II e com magnanimidade ainda maior por Bento XVI a fim de recompor a unidade do corpo eclesial no respeito das várias sensibilidades litúrgicas foi usada para aumentar as distâncias, endurecer as diferenças, construir contraposições que ferem a Igreja e freiam seu caminho, expondo-a ao risco de divisões” (Carta do Santo Padre Francisco aos Bispos de todo o mundo para apresentar o motu proprio Traditionis custodes sobre o uso da Liturgia Romana anterior à Reforma de 1970, de 16-07-2021, que pode ser lida em italiano aqui.
3. Ainda na mesma Carta aos Bispos, lê-se, um pouco mais adiante: “... entristece-me um uso instrumental do Missale Romanum de 1962, cada vez mais caracterizado por uma rejeição crescente não apenas da reforma litúrgica, mas também do Concílio Vaticano II, com a afirmação infundada e insustentável de que ele traiu a Tradição e a ‘verdadeira Igreja’. Se é verdade que o caminho da Igreja deve ser compreendido no dinamismo da Tradição, ‘que tem origem a partir dos Apóstolos e progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo’ (DV 8), o Concílio Vaticano II constitui a etapa mais recente desse dinamismo, na qual o episcopado católico se pôs à escuta para discernir o caminho que o Espírito indicava à Igreja. Duvidar do Concílio significa duvidar das próprias intenções dos Padres, que exerceram seu poder colegial de modo solene cum Petro et sub Petro no Concílio Ecumênico e, em última análise, duvidar do próprio Espírito Santo que guia a Igreja” (Francisco, Carta aos Bispos, op. cit.).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O pano de fundo teológico do rescrito sobre o motu proprio Traditionis custodes. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU