20 Mai 2022
"Em um mundo tão flutuante, o mais importante é, em todo caso, estar bem posicionado até o final para o sprint da última volta, coberto e ao controle dos convenientes gregários. Nesse sentido, as oligarquias obtêm duplos resultados com a total compressão dos recursos: não só lhes traz benefícios atuais, mas simultaneamente lhes permite melhorar ao máximo suas posições para o futuro", escreve Pablo Font Oporto, professor de Filosofia Política na Universidade Loyola Andalucía, em fragmento do livro La batalla por el colapso. Crisis ecosocial y elites contra el pueblo (Editora Comares, 2022), publicado por Ctxt, 17-05-2022. A tradução é do Cepat.
Após advertir (no duplo sentido de constatar e avisar) que caminhamos para o abismo, e denunciar que o capitalismo global vem apaziguando nossa preocupação a este respeito, acabamos de ver que a crise de legitimidade que este está sofrendo gerou um confronto entre as oligarquias (as locais contra as globais). Mas não podemos perder de vista que esse confronto também age, mesmo de forma conscientemente interessada, como uma tela de distração diante do grande problema real: o colapso socioambiental.
Antes de analisar tudo o que esta guerra de elites acarreta (elites “extrativistas ou extrativas”, como alertam Acemoğlu e Robinson, 2012), é importante alertar que este conflito, por si só, já supõe, em primeiro lugar, a possibilidade de um drama. De fato, uma época de turbulências como a que estamos vivendo pode terminar em uma tragédia que reproduz o ciclo da primeira metade do século XX. Por outro lado, é obviamente uma perda de tempo e energias (humanas e biofísicas).
Deixando de lado a gravidade desses aspectos, parece que o conflito entre as elites esconde a existência de uma agenda compartilhada por elas diante do que está por vir, e o que essa agenda significa realmente é uma guerra contra o resto: a exclusão da grande massa da população mundial. A pandemia já nos deu pistas sobre para onde as coisas podem ir se ficarem realmente sérias.
De fato, por trás dos fogos de artifício, o que o confronto entre nativistas iliberais e globalistas esconde é, basicamente, que, embora não reconheçam abertamente a possibilidade de colapso ambiental, eles sabem muito bem o que realmente está por vir e estão se preparando para isso. Através de suas declarações públicas eles mantêm uma narrativa que, ou nega diretamente a existência de um problema ambiental, ou sustenta indiretamente que não é um problema sem solução porque a tecnologia nos permite ter a situação sob controle. Mas uma coisa são suas manifestações públicas e outra, suas previsões.
Bruno Latour entende que existe essa agenda oculta compartilhada entre o negacionismo e o capitalismo “verde”, e que, por trás do suposto negacionismo das elites, pode-se detectar uma estratégia mais ou menos similar. Isso nos levaria, mais uma vez, a detectar que o confronto entre globalistas e nativistas não apenas tem muito de impostado, como construção sociomidiática, mas também de falso, na medida em que os planos que ambos têm para a gestão de um possível colapso socioambiental e o futuro da humanidade não diferem em nada no essencial: exclusão da grande maioria e fuga para um refúgio protetor para aqueles destinados a serem salvos. Nesse sentido, Latour percebe que as atuais políticas reacionárias seriam reveladoras de um claro movimento de fuga das elites.
A estratégia de fuga nada mais é do que uma fuga para a frente com a qual as elites pretendem levar até o fim este modelo produtivo de exploração de recursos e produção de energia – Pablo Font Oporto
Agora, da nossa parte, reconhecemos que nesta conjuntura há mais uma vez um dilema para as oligarquias locais: fugir ou excluir? A primeira opção seria fácil para as aristocracias globalistas, que não sentem apego especial a não ser pelo seu bem-estar e suas relações sociais igualmente transnacionais. Fugir e abandonar o território, a nação, não é um prato de bom gosto para os nacional-populismos: a priori, é melhor ficar na terra do meu povo, dos meus antepassados. Mas, isso sim, excluindo aqueles que não fazem parte da nação e inclusive aqueles que, sendo nacionais, não fazem parte da sua verdadeira essência. Agora, essa é apenas mais uma forma de fugir: negar a realidade que não lhes convém e tentar impor sua visão.
Em todo caso, como já indicamos, a estratégia pura de fuga nada mais é do que uma fuga para a frente com a qual as elites – particularmente as globalistas – pretendem levar até o fim este modelo produtivo de exploração de recursos e produção de energia: BAU (business as usual) até que o corpo aguente. Mas não se trata apenas de espremer o limão até o fim. Mais dois propósitos podem ser percebidos. Primeiro, para obter a melhor posição na corrida que está se avizinhando em um futuro muito próximo. Em segundo lugar, estender uma cortina de distração que permita ocultar tudo isso: o que está por vir, o fato de saberem, a verdade de que estão se preparando para isso e, em suma, tomar as melhores posições para outras futuras guerras, tanto entre as elites como contra o resto.
Em um mundo tão flutuante, o mais importante é, em todo caso, estar bem posicionado até o final para o sprint da última volta, coberto e ao controle dos convenientes gregários. Nesse sentido, as oligarquias obtêm duplos resultados com a total compressão dos recursos: não só lhes traz benefícios atuais, mas simultaneamente lhes permite melhorar ao máximo suas posições para o futuro, e até ter a possibilidade de implementar um plano B. A vantagem posicional comparativa funciona como aquela frase do Evangelho: “A quem tem, será dado ainda mais...” (o conhecido efeito Mateus). E permite uma preparação que inclui a fuga e a segurança das elites, abandonando o resto.
Muito disso está por trás da crescente desigualdade. A desigualdade atual não é apenas o reflexo de um mundo onde a ideologia neoliberal conseguiu renaturalizar as diferenças com a narrativa da meritocracia culpabilizante e destruiu as resistências internas (o empresário de si) depois de eliminar as externas (sindicatos, partidos de esquerda, o mundo intelectual livre). Não é apenas um efeito da necessidade desnecessária de máscaras amigáveis em um mundo globalmente competitivo. Tampouco é a simples consequência da implementação de políticas desreguladoras, juntamente com as possibilidades que a tecnologia ofereceu às grandes transnacionais.
Nem mesmo o mero produto do desmantelamento da esquerda, desnorteada e obcecada pelas identidades múltiplas, que deixou o espaço político para o confronto entre as ideologias das elites globais e locais. Nem mesmo o simples resultado de uma visão econômica de curto prazo que só pensa no máximo de benefícios imediatos, sem sequer pensar na destruição da própria economia real ou de suas empresas ao obtê-los (Hernández Jiménez, 2016).
É também um produto estrategicamente elaborado por quem-sabe-e-está-se-preparando para acessar o poder em todas as suas dimensões nos novos cenários – de múltiplas crises sobrepostas, principalmente socioambientais – que se avizinham. E se – como se costuma dizer – a informação é poder, num cenário de colapso, o poder pode permitir, puramente, ser. Sobreviver. Algo que está longe de ser garantido (e não apenas por causa da pandemia, não esqueçam seu ocidental-centrismo) para a grande maioria da humanidade neste exato momento. Imaginem depois.
A partir daqui é possível entender. Entender o significado da cortina de fumaça. O significado da negação do colapso – que, em última análise, compartilham uns e outros. A guerra entre Trump e Biden (como personalização simbólica do confronto elitista). E, finalmente, a estratégia do não-medo (do colapso).
A banalização e o enfraquecimento do medo do colapso faz parte da estratégia das elites – Pablo Font Oporto
Alto. Acabamos de dizer, com efeito, que a voz de uns e outros proclama: não tenham medo de um colapso socioambiental. Esses mesmos, e outros, que se esgoelam para incutir medo na sociedade e lançá-lo contra os seus inimigos, despejando-o aos montes dos seus púlpitos, coincidem em alimentar, precisamente, uma ideia comum: já temos medos demais, não incutam medo na população com mais ideias catastróficas. É aqui que podemos descobrir, novamente, a armadilha por trás de toda a narrativa das elites: a banalização e o enfraquecimento do medo do colapso faz parte da sua estratégia.
Eles não querem que essa possibilidade real seja conhecida, nem que a tenhamos. Em primeiro lugar, porque se soubéssemos não atenderíamos aos medos estúpidos com que uns e outros atacam a nossa inteligência. Segundo, porque nos desconectaríamos de um sistema – cultural – de consumo que os alimenta. Terceiro, porque certamente nos voltaríamos contra eles na qualidade de gestores políticos. E, quarto, porque começaríamos a nos preparar para o que já é muito difícil de evitar. E este último seria o mais perigoso: em igualdade de condições, a narrativa meritocrática não é tão atraente para seus promotores. Legitimar as diferenças é o que torna possível apresentar como lógica a existência de diferentes posições de partida diante das situações de colapso que se aproximariam.
Perguntem às pessoas do que elas têm medo. Pensem no que elas responderiam alguns meses atrás. Com a pandemia da Covid, uma minoria de pessoas pode ter começado a se perguntar, mas ainda são ambientes minoritários, que são acusados de serem nerds. O que preocupa as pessoas é o que as grandes potências introduzem no imaginário coletivo a partir das suas plataformas. As causas do não-medo, da debilidade do medo do colapso ambiental são, portanto, claras: a ocultação desta questão no debate público (vale a pena ver, a este respeito, o último episódio da série O colapso). As causas dessa ocultação encontram-se nos interesses das elites, que controlam o discurso público.
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As elites diante da crise ecossocial: lutas internas e escapismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU