Shakespeare e Cervantes (IHU/Adital)

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27 Abril 2016

"De um lado, o “cavaleiro da triste figura”, com seu percurso infindável de viagens e lutas, discursos e bravatas, encontros e desencontros, intrigas e fantasias... Uma travessia colossal, onde se mesclam e se confundem mistérios e desencantamentos, ilusões e desilusões", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, assessor das Pastorais Sociais.

Eis o artigo.

Há exatos 400 anos, em 1616, morriam dois dos maiores gênios da literatura de todos os tempos: o romancista, poeta e dramaturgo Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em 1547, na cidade de Acalá de Henares, Espanha; e o também dramaturgo e poeta William Shaskespeare, nascido em 1564, na cidade de Stratford-upon-Avon, Inglaterra. Os quatro séculos de literatura posteriores, de alguma forma, serão influenciados por esses dois grandes mestres.

De um lado, o “cavaleiro da triste figura”, com seu percurso infindável de viagens e lutas, discursos e bravatas, encontros e desencontros, intrigas e fantasias... Uma travessia colossal, onde se mesclam e se confundem mistérios e desencantamentos, ilusões e desilusões. Como não pensar na própria condição do ser humano em sua travessia sobre a face da terra? Somos todos peregrinos errantes, marcados por aventuras que do berço ao túmulo traçam os passos e a trajetória pessoal ou familiar, social ou universal. Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança – inseparáveis companheiros de viagens e façanhas – são dois personagens muito íntimos e familiares a todos nós. A bem dizer, e mais do que se possa imaginar, habitam a imaginação e a alma de cada pessoa. Representam, o primeiro, os sonhos que voam nas asas do vento, o segundo, existência nua e crua, que quebra tais sonhos ao tropeçarem com a realidade. E esta, a um só tempo, possui seu lado aparente de exércitos que não passam de rebanhos de ovelhas, simples viajantes ou moinhos a vento. Mas possui igualmente seu lado bruto e tedioso que se bate com a utopia.

Mas o embate com o cotidiano não é capaz de destruir a fantasia e a faculdade de continuar forjando sonhos. A cada tropeço com as pedras e espinhos do caminho, restam os fragmentos, as ruínas, os escombras e as cinzas. Mas temos a capacidade de juntar os pedaços dispersos pelo chão, refazer a imagem perdida, levantar a cabeça, montar no cavalo Rocinante e prosseguir viagem. Avançar sempre em busca da doce e bela Dulcineia, tanto mais desejada quanto mais se mantém sempre para além do horizonte alcansável. Ou melhor, desejada porque misteriosa e desconhecida. Os fatos brutos do dia-a-dia revelam-se incapazes de destruir a fé, lembra o escritor francês Marcel Proust, outro pilar da literatura mundial.

De outro lado, o grande dramaturgo britânico. Shakespeare muito antes de Sigmund Freud, leva ao palco, e os personaliza, sentimentos e emoções que o criador da psicanálise iria analisar, sistematizar e conceitualizar somente três séculos mais tarde. Talvez haja mais semelhanças entre o dramaturgo inglês e Freud do que este último gostaria de admitir.

O genial Shakespeare é um frequentador assíduo dos bares e ruas, dos salões e festas, o que o torna um observador atento do comportamento humano. Com isso é capaz de traduzir em dramas, sátiras e comédias o tecido intrincado da existência diária, bem como os laços oblíquos e tortuosos que costuram as relações humanas. No cenário iluminado de suas peças teatrais, desfilam – lúcidos, implacáveis e perturbadores – nossos mais secretos medos e angústias, vícios e fantasmas, mágoas e ressentimentos, armadilhas e artimanhas, desejos de vingança e jogos de paixões. Um retrato nu, vívido e indisfarçado da alma humana.

A respeito de sua obra monumental, se poderiam atribuir as palavras que o próprio autor coloca na boca de um de seus personagens centrais (Hamlet): “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a sua vã filosofia”. Na verdade, Shakespeare contrasta o conhecimento de uma racionalidade rígida e lógica, conceitual e restritiva, representado pelo jovem Horácio, com o conhecimento que vem do ventre da terra ou das entranhas do ser humano, onde instintos, sentimentos e emoções falam mais alto do que a mesma razão. Tudo faz recordar a sentença do poeta brasileiro Guimarães Rosa: “Coração de gente é terra selvagem”.