“Internalizamos a lógica capitalista de acumulação”. Entrevista com Stephan Lessenich

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17 Março 2022

 

O sociólogo alemão Stephan Lessenich (Stuttgart, 1965), professor de Sociologia da Ludwig Maximilians-Universität de Munique e ex-presidente da Sociedade Alemã de Sociologia, é crítico ao modelo econômico e social perpetuado pelo Ocidente no mundo, e afirma que a única coisa que consegue é manter as desigualdades. Em seu último livro traduzido para o espanhol, La sociedad de la externalización (Herder, 2019), reflete sobre sociologia política, desigualdade social e capitalismo.

 

A entrevista é de Raquel Nogueira, publicada por El Tiempo, 06-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Em ‘La sociedad de la externalización’, afirma que o sistema que construímos promove exclusão e desigualdade, e que o capitalismo moderno não existiria sem essa parte da população mais empobrecida. Como chegamos até aqui?

 

O principal problema é o sistema de acumulação e distribuição da riqueza que temos. Eu o chamo de capitalismo moderno, outros o chamam de economia de mercado, o rótulo não importa. O sistema de acumulação econômica está baseado em uma distribuição desigual da riqueza.

Na maioria das vezes, ficamos concentrados nas desigualdades e na redistribuição em nível nacional – as sociedades ocidentais são desiguais internamente, existem pessoas ricas e pessoas pobres, e as desigualdades aumentaram nas últimas décadas -, mas raramente prestamos atenção nas desigualdades transnacionais, ou seja, naquelas que ultrapassam nossas fronteiras.

O nível de igualdade que alcançamos nas nações capitalistas ocidentais está baseado nas desigualdades globais. Basicamente, o que fazemos é usufruir da mão de obra e os recursos naturais de outros. Portanto, a acumulação econômica no Ocidente se baseia na exploração de pessoas e da natureza em outros lugares. Isto resulta em enormes desigualdades econômicas e sociais em escala mundial. Mas chegamos até aqui sem, de fato, abrir um debate nacional.

Logicamente, nos concentramos na pobreza interna de nossos países, mas ignoramos deliberadamente as condições preexistentes de nosso sistema econômico que fizeram com que os níveis de igualdade sejam os que são. Nossas democracias têm uma espécie de inclusão da participação nacional baseada na exclusão dos pobres em nível mundial.

Não só a lógica capitalista de acumulação cria desigualdades socioeconômicas, mas também a lógica da democracia política: restringimos os direitos democráticos exclusivamente à população nacional, excluindo todos os estrangeiros. Fazemos isso a séculos, e é a base das desigualdades.

 

A covid-19 evidenciou os abismos educacionais e sanitários no mundo. Como a pandemia está aumentando as desigualdades sociais dentro e fora da Europa?

 

Foi dito que a covid-19 é a 'grande niveladora', mas a única coisa que fará é aprofundar as desigualdades sociais em nível transnacional. É o que já está muito evidente na Europa, onde a pandemia afetou com maior virulência aqueles países nos quais, após a crise de 2008, as instituições europeias impuseram severas políticas de austeridade.

As consequências do coronavírus em países com rendas média e baixa, do Sul global, ainda não foram vistas, mas já estamos presenciando algumas sacudidas na América Latina, a região do mundo com os maiores níveis de desigualdade, tanto em renda quanto em acesso a serviços de saúde e outras infraestruturas sociais.

Há uma corrida internacional aberta que busca a vacina 'final', e parece ingênuo pensar que não serão as nações ocidentais as que poderão oferecer às suas populações imunidade ao vírus antes de todos. Isto produz uma grande probabilidade de que vejamos maiores restrições na mobilidade daqueles cidadãos que fiquem para trás nesta corrida. E mais, provavelmente vejamos uma reprodução e reforço das desigualdades globais que já existem.

 

Occupy Wall Street’ e o 15M possuem algo em comum, apontado por Thomas Piketty no lema que diz: ‘Somos os 99%”. E foi isso que levou o francês a dizer que deveríamos superar o capitalismo e buscar uma nova forma de redistribuir a riqueza. É possível guinar para um sistema mais justo?

 

É muito complicado – inclusive utópico -, levando em conta as circunstâncias, mas no fundo é o que tenho em mente toda vez que falo de futuros possíveis. Deveríamos nos desfazer do capitalismo, porque é um sistema que sistematicamente produz enormes desigualdades, e não pode existir sem elas.

O capitalismo está baseado nesse princípio de acumulação da riqueza, no qual parte da população tem direito a ter propriedades e acumulá-las, ao passo que a outra parte fica excluída desses privilégios. Isto produz algumas diferenças sistemáticas em relação a quem tem mais oportunidades na vida: as classes proprietárias têm muito mais do que as não proprietárias.

A ideia de superar o capitalismo não está apenas em mudar o seu funcionamento. Nós, como cidadãos de sociedades capitalistas, internalizamos a lógica capitalista de acumulação – alcançar certo status passando por cima de outras pessoas -, a da competição e sua legitimação. Somos parte ativa da impossibilidade de superar o capitalismo porque o internalizamos. E esse é o verdadeiro obstáculo para encontrar outro sistema.

O sistema produz certos sujeitos que, ainda que critiquem o capitalismo, têm um interesse intrínseco, em seu dia a dia, de que as coisas continuem como estão, porque nossas possibilidades na vida dependem de que o sistema funcione por si. Os limites não são apenas sistêmicos, são também sociais.

 

Jeremy Rifkin fala de um ‘Green New Deal global’, outros especialistas chegaram inclusive a mencionar o termo ‘capitalismo verde’. É possível que a emergência climática ajude a redefinir o sistema?

 

Nunca se sabe o que acontecerá. O futuro está aberto a mudanças, sendo assim, talvez o capitalismo verde possa ser um primeiro passo para a superação do sistema atual. Mas sou muito pessimista a esse respeito. Penso que o capitalismo em si não pode ser verde, pois se baseia na superexploração estrutural da natureza e seus recursos.

A lógica do crescimento diz que em qualquer período futuro você tem que criar mais riqueza, mais valor, e para isso necessita usar as coisas que possui ao redor, ou seja, precisa utilizar a natureza para alimentar esse processo de crescimento e acumulação. Não há uma forma real de desvincular o crescimento e a criação de valor, dentro do capitalismo, e o uso de recursos naturais. Não vejo como o capitalismo verde possa realmente desconectar esses fatores. Mesmo assim, é preferível ao denominado capitalismo negro ou capitalismo fóssil.

Mas, até mesmo com investimento em energias renováveis ou com a redução do uso de energias fósseis, não existe uma forma que possa contornar esse dilema de que o capitalismo exige um fornecimento constante de recursos. De certa forma, quando falamos desse capitalismo verde, o que estamos fazendo é legitimar, diante dos cidadãos, esse discurso de que temos lacunas e sabemos que a lógica capitalista é destrutiva, mas estamos trabalhando de modo assertivo dentro dos limites do sistema existente. Como cidadãos, o lógico é pensar que essa opção é a melhor possível porque nos permite manter nosso estilo de vida. Mas, de fato, não acredito que isso seja possível.

 

Então, como deveria ser esse sistema alternativo?

 

Está muito relacionado à democracia em si: a base sobre a qual deveria se assentar um sistema que supere o capitalismo começa com o entendimento de que o estágio atual das coisas não é sustentável em qualquer nível. Normalmente falamos de sustentabilidade e insustentabilidade, mas não em termos do sistema como um todo, mas de certas facetas.

O primeiro passo para qualquer aproximação ao que poderia ser uma alternativa passaria por um consenso nos países capitalistas industriais do Ocidente sobre a impossibilidade de continuar fazendo o que há décadas fazemos. Portanto, precisaríamos de espaços realmente democráticos nos quais as pessoas compartilhassem o que pensam e como poderiam ser as alternativas para configurar o novo sistema.

Não acredito que eu tenha um papel específico nesse desenvolvimento de um mundo não capitalista ou uma sociedade pós-capitalista, mas acredito que a democracia, realmente levada a sério, deveria ser reorientada para criar um debate social aberto sobre como reinventar a sociedade.

Seria necessário começar do início, ou seja, ler e falar sobre o que acontece, por que estamos sistematicamente nos movendo na direção errada, e quais seriam os critérios para reconfigurar o sistema. As respostas não podem vir dos sociólogos, nem dos cientistas políticos ou cientistas, mas dos cidadãos.

 

A crise sanitária atual é uma oportunidade para fazer este exercício de reimaginar o capitalismo e buscar esse sistema mais justo?

 

De certo modo, esta crise abre uma janela de oportunidade para refletir sobre as consequências do estilo de vida ocidental. Não é nenhum segredo que o risco de pandemias aumenta sistematicamente com o desmatamento e a perda de biodiversidade. É óbvio que a pandemia é um fenômeno global que não para nas fronteiras nacionais, mesmo que os Estados tenham recorrido intuitivamente ao recuo e fechamento delas com a convicção errônea de que isso ajudaria a proteger seus cidadãos do vírus.

E, o mais importante, a crise atual visibilizou o que poderia ser considerado parte da economia do necessário. Ficou mais do que claro que as sociedades, em todo o mundo, precisam de um sistema de saúde que faça jus ao seu nome, uma série de bens públicos com os quais todos possam contar e aos quais possam recorrer em tempos de crise e, ao mesmo tempo, mostrou-nos que podemos renunciar a muitas coisas que não são vitais, caso as circunstâncias nos obriguem a isso. Esse é o debate que deveríamos manter de forma sistemática: o que necessitamos de verdade e, sendo sinceros, o que é supérfluo.

 

Em ‘Los límites de la democracia, participación como problema de distribución’ (2019), fala sobre a dialética da democracia e como a sua história está ligada à ‘participação através da exclusão’. Como podemos superar esse conceito de exclusão para que a democracia realmente seja democrática?

 

A tese do livro é a de que temos que democratizar a democracia. A democracia tal como é – e como foi estabelecida nas últimas décadas – se baseia no princípio de participação de alguns, que exclui muitos outros. Essa exclusão possui diferentes eixos.

Um seria o que vai de cima para baixo: os que possuem propriedades excluem os que não possuem. Mas também existem lógicas de mercado nas quais algumas pessoas tentam excluir as outras: não só os grandes proprietários, mas pessoas mais pobres que embarcam em uma luta contínua para tentar conseguir sua parte do bolo e para que outros não consigam. Este seria um eixo de exclusão mais horizontal.

O último seria a exclusão social de dentro para fora: construímos fronteiras – físicas e metafóricas – ao redor de nosso sistema de participação para tentar deixar de fora todos aqueles que tentem passar a participar de algumas das oportunidades de vida que temos. A democracia atual é tanto sobre a exclusão como sobre a inclusão (...). Isto vai muito além da exclusão social que faz parte das democracias ocidentais.

Também temos a [questão] ecológica (...). Enfim, nosso sistema de participação democrática está baseado na energia fóssil, já que esta está no coração de nosso modo de vida. E nas últimas décadas nos acostumamos com isso.

 

Essa necessidade de mudança está despertando na chamada geração Greta?

 

Sem dúvida. Estão mudando as regras do jogo. Não podemos homogeneizar a próxima geração, mas os jovens vão fazer a diferença. É óbvio que essas gerações, de certo modo, estão agindo de forma interessada, no sentido de que são elas que veem como o planeta fica sem futuro e, por conseguinte, as oportunidades acabam para elas. Pensam: 'Não teremos as mesmas oportunidades que vocês tiveram há 30 ou 50 anos, então, parem de agir como se nada tivesse mudado'.

 

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