O silêncio de Deus. Artigo de Roberto Mela

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20 Novembro 2021


O livro reúne quatro conferências realizadas entre fevereiro e março de 2021 no Centro Informação Bíblica de Carpi (MO). O presidente Alberto Bigarelli assina uma apresentação que resume os temas principais das propostas apresentadas.

 

O texto é de Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 18-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Elias

 

Laura Invernizzi aborda o tema "O Deus inútil - a solidão de Elias (1 Reis 19,1-18)" (pp. 23-60). Desde o início da Bíblia, o Senhor é um Deus que fala com poder e eficácia e tudo se cumpre. A. Neher ressalta que a própria Bíblia exorciza o silêncio de Deus atribuindo-o aos ídolos: é o ídolo que é mudo, obra das mãos do ser humano. Mas um Deus que não fala é um Deus inútil, não serve, é supérfluo.

 

A autora nos convida a abordar com a análise narrativa o texto de 1Reis 18-19 como um díptico. Na primeira parte, Elias aparece como o campeão do monoteísmo Yahwista que aparece em cena de improviso e anuncia ao rei Acab e por sua própria iniciativa que haverá um tempo de seca. Elias é muito compenetrado em seu papel, até demais. O Senhor tenta minar suas certezas e educá-lo para sair progressivamente de sua própria idolatria: a tentação de enrijecer Deus dentro de um esquema e de uma única representação. Em vários momentos são destacadas as mudanças de perspectiva a que Elias é convidado ("E sucedeu..." + particípio).

 

Elias vence o desafio no Carmelo contra os profetas de Ba'al. Deus responde à invocação de Elias enviando não uma palavra, mas o fogo. A ordália termina com a morte dos 450 profetas do deus máximo do panteão venerado pela rainha pagã Jezabel.

 

No capítulo 19 Elias parece totalmente diferente. Ele está fugindo de Jezabel, cheio de medo e angústia, assustado e deprimido pelo estresse da vitória e da perseguição. Não entende por que Deus não o ajuda e no deserto não busca o suicídio, mas coloca sua vida nas mãos de Deus, provocando-o a intervir (como acontecera com Agar e Ismael, após um dia de caminho).

 

No Horeb, a montanha da teofania, Elias entra na caverna de Moisés e tristemente responde duas vezes à pergunta de Deus: "O que você está fazendo aqui, Elias?". Elias expressa seu desânimo e a sensação de solidão que o envolve. O Senhor o interpela e Elias experimenta a presença de Deus, a sua alteridade. Deus não está mais no vento fortíssimo, nem no terremoto e no fogo. Manifesta-se numa "voz de silêncio sutil", um silêncio eloquente que serve e no qual pode reconhecer o seu medo, o seu fracasso, o seu ressentimento. Elias aprende a escutar.

 

Somente depois da forte vivência da presença transcendente de Deus quase como uma "visão", Elias sai da caverna, repete sua resposta à voz que o questiona, mas agora recebe uma nova vocação que o remete ao cerne de história.

 

O silêncio de Deus tem a mesma propriedade maiêutica da palavra. A palavra de Deus voltou a ser apenas um sussurro, a fase originária em que o som ainda não está articulado em palavra.

 

 

Salmo 88

 

Luca Mazzinghi intitula a sua contribuição de "Salmo 88: um grito das trevas" (pp. 61-80).

 

É o salmo mais sombrio do Saltério, colocado justamente no meio. É um salmo de lamento individual, mas é o único desprovido de um final aberto à esperança. Um homem profundamente doente - mas não necessariamente - grita a Deus seu lamento pelo ambiente "infernal" em que se encontra, feito de trevas e águas que submergem na morte. Ele também pode ser um homem saudável, mas que compreendeu que é um mortal e que a morte está diante dele como a única perspectiva real. Ironicamente, se sente "livre entre os mortos" (assim traduz Mazzinghi o v. 5, respeitando o texto original).

 

A morte é vista como uma libertação do sofrimento, do isolamento, do abandono até mesmo de Deus. Entre os mortos não está a sua presença, a sua bondade, fidelidade e justiça. Deus parece desmentido em suas características principais. A morte é "a terra do esquecimento".

 

Mas o salmista persevera na oração, que começa pela manhã e que se defronta com o silêncio de Deus, que dele se esconde desde a sua infância. Deus continua sendo para ele o único "conhecido" a quem recorrer e que pode escutá-lo.

 

Lido no contexto do livro do Saltério, o Salmo 88 aparece como uma resposta polêmica às promessas divinas a Israel expressas nos salmos anteriores. Os sucessivos irão na direção do agradecimento e do louvor.

 

A tradição cristã interpretou este salmo como um símbolo da paixão de Cristo, que experimentou a morte como abandono de parte de Deus.[1]

 

O salmista persevera na oração a um Deus que responde com o silêncio. Também esta é uma modalidade da sua linguagem, ao lado daquela da palavra dos profetas ou da palavra-evento que se realiza na história, representada por Jesus.

 

 

O Servo sofredor

 

Ermenegildo Manicardi desenvolve o tema "Desprezado e rejeitado pelos homens, o reputávamos ferido de Deus e oprimido”. O canto do Servo sofredor (Is 53) (pp. 81-106).

 

No canto, três planos se entrelaçam: o Servo desprezado e rejeitado pelos homens, o juízo das testemunhas e, em tal sofrimento, o próprio Deus intervém para realizar seu desígnio. A voz de Deus se entrelaça com a dos homens, representada pelo coro e, ao final, mostra-se que aquele servo carregava o pecado de muitos e intercedia pelos pecadores. O canto influenciou Jesus e a compreensão cristã do Messias crucificado.

 

Nos versículos iniciais e finais Deus intervém. No início apresenta solenemente o Servo. Sua dolorosa história se segue. Maltratado, desprezado, rejeitado, como um cordeiro mudo levado ao matadouro, ele tem força para reunir o rebanho disperso. Com um grito, Deus inesperadamente proclama que foi por causa de seu povo que ele foi espancado até a morte e que pela opressão e sentença injusta ele foi removido do meio. O coro conclui reconhecendo a responsabilidade de Deus no destino do Servo, mas este, paradoxalmente, como soube sofrer e oferecer sua vida em sacrifício, chegará ao conhecimento do porquê de seu sofrimento, verá uma descendência e viverá por muito tempo.

 

No final, Deus anuncia que o Servo será a referência absoluta de toda a humanidade, terá uma nova vida, verá um novo dia. Os povos se tornarão seu "espólio" porque ele venceu a batalha despojando-se de sua própria vida. O Servo conseguiu, por assim dizer, "eliminar as sujeiras" que infectam a humanidade (A. Vanhoye); sua vitória não está na história, mas na profundidade de Deus; embora inocente, ele conseguiu oferecer a si mesmo em sacrifício de reparação e cumprir, na sua pessoa, a vontade do Senhor; enquanto sofre, o Servo fica nas trevas, mas uma vez glorificado, será alimentado e adquirirá conhecimento; os povos serão o seu espólio porque "carregou o pecado de muitos e intercedia pelos culpados".

 

Seguindo algumas sugestões de H. Simian Yofre, Manicardi observa que o canto é uma narrativa singular, onde silêncio, sofrimento e morte constituem a chave de leitura. A vida humana e a morte do Servo são uma liturgia diante de Deus. O Servo foi testado para ver, escutar e ensinar como realmente é a vida. Ele abre os homens à compreensão do sofrimento que se apresenta como um sacrifício de reparação. É uma figura que inclui todos os que sofrem verdadeiramente e cujo sofrimento tem um sentido para os outros, portanto aceitável a Deus, pois sofrer ao lado de outro já é de alguma forma carregar a sua dor.

 

No NT, os textos mais próximos de Is 53 são o Hino aos Filipenses 2 e Mc 8,34-35. Aqui se explica que a única maneira de manter a vida é não segurando-a junto a si, mas doando-a.

 

 

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

 

Carlo Broccardo intervém sobre o tema “O Deus ausente. O filho abandonado" (pp. 107-131).

 

Os Evangelhos têm uma qualidade narrativa e Marcos frequentemente observa como Jesus fica comovido, entristecido, surpreso, irado, geme, ama, suplica. Ele é uma pessoa real e não uma ideia. O autor enfoca a relação que Jesus tem com o Pai. Marcos observa que muitas vezes Jesus se retirava para orar sozinho, em lugares apartados. No entanto, o conteúdo da oração nos é dado apenas no momento do Getsêmani e no momento da cruz.

 

No primeiro momento Jesus sente medo, angústia e tristeza. Ele está alarmado, ansioso, agitado, triste até à morte. A morte iminente o preocupa e ele reza três vezes ao Pai para que afaste o seu doloroso destino, "o cálice". Em sua humanidade, porém, sente a presença de Deus, seu desígnio, e se abandona ao cumprimento da vontade do Pai.

 

No momento da morte, somos confrontados com o "espetáculo da cruz" (B. Maggioni). O evangelista reduz ao máximo o ritmo para que o leitor possa contemplar a cena em profundidade. Jesus morre orando para o Salmo 22 do qual é citado o v. 6: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" É uma invocação devastadora e dramática dirigida a Deus por uma pessoa de fé que se encontra numa situação muito difícil.

 

Além dessas palavras, o Salmo 22 faz alusão à partilha das vestes e ao sacudir de cabeça dos presentes.

 

Jesus se dirige a Deus não como uma pessoa desesperada, mas como uma pessoa que reconhece uma relação com ele, um vínculo. A sua não é uma afirmação, mas uma pergunta. Marcos não descreve a morte nobre de um herói, mas sim de um homem real que sofre e sente a solidão. Deus responde com o silêncio. Não se ouvem palavras nem presença. Deus não ajuda visivelmente quem lhe é fiel e invoca a sua presença.

 

Broccardo cita duas linhas de interpretação das palavras de Jesus. Muitos pensam em uma atitude de , de confiança e de entrega a Deus. Ao rezar os primeiros versículos, Jesus rezaria todo o salmo de lamento que termina com uma nota de mudança, em que o salmista diz que o Senhor o ouviu e que, portanto, o anunciará a todos.

 

Broccardo aponta uma segunda linha de interpretação, que ele assume. Na cena e na citação não há alusão à segunda parte do salmo, aquela positiva, de confiança, de esperança e de louvor. Do v. 9 Marcos retrocede para o v. 2, afastando-se da parte positiva. Além disso, no NT, as citações bíblicas são frequentemente citadas abstraindo do contexto original (cf. Paulo). Finalmente, se Marcos quisesse expressar a confiança de Jesus, poderia ter escolhido outro salmo, mais explícito. De fato, Lc 23,46 cita o Salmo 31.6: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito".

 

Nos salmos de lamentação, exceto no Salmo 88, Deus no final intervém com sua presença. No momento da morte na cruz não há nenhuma intervenção, mas apenas o silêncio. Jesus não compreende o silêncio do Pai, a quem amou e serviu, mas continua a invocá-lo. Ele não está desesperado, mas desorientado. Porém, reconhece uma relação, um vínculo ("Meu Deus"). Jesus faz uma pergunta porque ele não está mais entendendo. Ele chama Deus “violentamente” (A. Guida). Mas Deus está ausente, não responde.

 

Broccardo pergunta-se: qual Deus esse episódio revela? Estamos perante uma cena de revelação (cf. v. 38 com o véu do templo rasgado). Vemos quem é Jesus e quem é Deus. No final do Evangelho, o centurião reconhece Jesus como o Filho de Deus, assim como em Mc 1,1 o Evangelho começava falando "do evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus".

 

No Evangelho é dito que Jesus anunciava que "o reino de Deus está próximo". Broccardo se pergunta: qual reino de Deus? Qual é o senhorio de Deus? Qual é a sua presença na terra se não responde ao Filho que o invoca?

 

A imagem do Deus de Jesus é revolucionária, afirma A. Vanhoye. Não é a imagem de um Deus que, até mesmo no último momento, chega como um deus ex machina que salva, ajuda e resolve, como nas antigas tragédias. Não é a imagem de um Deus que humilha os poderosos e salva quem nele confia. A imagem de um Deus poderoso - de acordo com Vanhoye - é idólatra. Com sua morte, Jesus revela que Deus não é um Deus forte e poderoso.

 

O que concluir então? Segundo o autor, Marcos afirma três realidades.

 

A cruz não é a última página do Evangelho. Deus ressuscitou Jesus, um mistério tão grande que a princípio causou transtorno entre as mulheres. Jesus sabia que a paixão e a morte o aguardavam, mas também a ressurreição. Marcos convida a não ter pressa em dizer que depois haverá a ressurreição. Ele deixa para um tempo oportuno o leitor junto com Jesus que sofre, que sente desorientação, medo e angústia, tristeza e com a pergunta "por quê?". Não se deve ter pressa em chegar à ressurreição.

 

A segunda realidade é o convite a olhar para a história do ponto de vista de Deus: ele não deve ser colocado no banco dos réus. Deus vê o Filho morrer e não intervém em favor daquele Filho que ama e que havia revelado no batismo e na transfiguração. “Agora Deus para, estabelece um limite - anota o estudioso -; é um Deus tão fiel à humanidade que não força a liberdade dos homens, mesmo quando eles colocam à morte o seu Filho” (p. 130). Imagem dramática, mas muito respeitosa do nosso ser pessoas humanas, conclui Broccardo.

 

A terceira realidade é tirada de Mc 1,35, em que se recorda como Jesus, depois do dia de Cafarnaum, se levantou e rezava (no tempo imperfeito de duração e de repetição) de manhã cedo, em um lugar deserto. O mistério de um Deus que parece abandonar seu Filho não se resolve apenas no plano intelectual (cf. O livro de Jó). Deus é grande demais para ser encerrado em raciocínios humanos. Broccardo nota como, além de um discurso racional, há algo mais, ou seja, uma dimensão relacional.

 

De fato, no final do Evangelho, Marcos convida a recomeçar um percurso, regressando à Galileia. “O Evangelho segundo Marcos é um itinerário, um percurso, em que se entende vivendo; é entendido ao estar juntos; consegue-se entrar num mistério tão grande como aquele de um Deus que não intervém apenas ficando com ele, apenas "acordando de madrugada, quando ainda era escuro, e retirando-se só com ele". Obviamente, não há como dizer por quanto tempo será necessário fazer isso; mas assim se espera a resposta” (p. 131).

 

 Il silenzio di Dio. Apresentação: Alberto Bigarelli, org. Aldo Peri (Ed. San Lorenzo, Reggio Emilia 2021, pp. 134, € 14,85, ISBN 9788880712763)

 

 

Nota

 

[1] Exemplos de interpretação patrística dos salmos podem ser lidos em VINCENZO BONATO, I salmi. Pregherò con lo spirito ma pregherò anche con l’intelligenza, Edizioni San Lorenzo, Reggio Emilia 2021, pp. 440, € 22,50, ISBN 9788880712534.

Servindo-se da tradução grega dos LXX e de outras versões elaboradas por vários tradutores hebraicos (Simmaco, Aquila, Teodócio), eles pretenderam destacar várias nuances oferecidas pelo texto e evidenciadas pela variedade das versões. Por um lado, eles continuaram a orá-los no mesmo sentido literal que o povo de Israel havia dado a eles, por outro lado, os consideraram como uma profecia de Cristo. Os salmos foram a oração de Cristo no contexto da sinagoga junto com seu povo, mas foram posteriormente interpretados pela Igreja Apostólica como profecia sobre ele, afirma Bonato. Os Padres tentaram apreender a voz de Cristo nesses textos de oração.

Depois de ter relatado o texto do salmo, o monge camaldulense apresenta uma breve introdução a ele e, em seguida, relata o comentário patrístico resumido em suas próprias palavras ou apresentando-o na íntegra. Os padres mencionados no comentário são: Ambrósio, Agostinho, Atanásio de Alexandria, Basílio o Grande, Beda, o Venerável, Cassiodoro, Cirilo de Alexandria, Eusébio de Cesareia, Gero de Reichsberg, Bruno de Würzburg, Hilário de Poitiers, Orígenes, Próspero de Aquitânia, Remigio de Auxerre, Bruno de Segni (ou de Asti) e Teodoreto de Cirro.

A respeito do Sl 88, este último comenta (p. 253): “O conteúdo profético desse salmo preanuncias os infortúnios dos judeus e a escravidão na Babilônia. Ao mesmo tempo, também manifesta o sofrimento de toda a humanidade por causa do pecado. A profecia se apresenta na forma de uma súplica, oferecida ao Deus misericordioso pelos israelitas e por todos os homens, em um sentimento comum.

O salmo é a oração dos fiéis mais maduros na fé” (PG 80,1568 C). Eusébio comenta (ibid.): “Cristo sempre chorava pelas misérias dos homens; ele chorava pela ruína daqueles que não o acolhiam. Chorou por Jerusalém (cf. Lc 19,41) e pela ruína daqueles que se perdem, porque era amigo dos homens e Filho do Pai, cheio de bondade” (PG 23,1061 A).

Fechando o v. 7 e falando de Cristo, ele continua: "Se tu, ó Pai, quiseste que eu chegasse a este ponto, na morte e na profundíssima cova, foi apenas porque quiseste conceder maravilhas aos mortos" (PG 23.1061 D). “Fala-se brevemente, a seguir, sobre os sofrimentos do corpo de Cristo. De fato, não foram sofridas apenas pela Cabeça”, comenta Agostinho (PG 37,1119).

Sobre o v. 16 Eusébio observa (p. 254): “Em sua juventude [Cristo] foi pobre entre os pobres; fez-se pobre por nós, para que nos enriquecêssemos graças à sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)” (PG 23,1065 C).

E prossegue:

“Por excesso de ternura e de amor pelos homens, gemia pelos homens que se perdem por sua maldade, falando dela como se fosse a sua própria” (PG 23,1068 A). Agostinho comenta sobre o v. 17 (p. 255) “Tua ira passou sobre mim”: “Esta foi a persuasão dos crucificadores que não souberam reconhecer o Senhor da glória. Eles, de fato, estavam totalmente convencidos de que a ira de Deus não só tivesse sido desencadeada, mas também fortalecida, contra aquele que eles puderam mandar para a morte. Por isso diz o Apóstolo: Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós (Gl 3,13)” (PL 37,1113).

 

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