“Minha geração fracassou na questão climática”. Entrevista com António Guterres

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02 Junho 2021

 

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas tem um ofício estressante, às vezes, inclemente. Já era assim antes da pandemia, mas aumentou ainda mais com o coronavírus. O português António Guterres, de 72 anos, ocupa este cargo desde 2017. Os quatro primeiros coincidiram com a era Trump, e o presidente estadunidense não perdeu sequer uma oportunidade para desacreditar a ONU, especialmente um de seus organismos: a OMS.

Para o ex-primeiro-ministro de Portugal e presidente da Internacional Socialista, esse já é um capítulo encerrado, mas as tarefas que tem pela frente continuam enormes: coronavírus, mudança climática, migração, desigualdade e pobreza, às quais se une a crescente rivalidade entre os Estados Unidos e a China. Entre essas tarefas também está uma urgente e necessária modernização da ONU. A lista é longa, e cada dia que passa parece aumentar um pouco mais.

A entrevista é de Michael Streck, publicada por XL Semanal, 29-05-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Deve-se sentir quase como um bombeiro do planeta, com incêndios para serem apagados por todas as partes. Ontem, Hong Kong e Mianmar, hoje, Ucrânia e Afeganistão. Com consegue manter o otimismo apesar de tantas crises?

O problema é que a maioria de nossas instituições multilaterais não tem 'dentes'. Olhe para a OMS: pode fazer recomendações, mas, ao final, não tem poder para obrigar os países a tomar medidas. Mesmo onde o sistema multilateral tem dentes, como no Conselho de Segurança das Nações Unidas, não há vontade de usá-los. Sendo assim, estamos diante de um Conselho de Segurança que parece paralisado nas questões mais importantes, tanto na prevenção de conflitos como na sua resolução.

Visto assim, soa quase uma missão impossível.

É uma tarefa muito dura, mas é nossa responsabilidade. Pensar no sofrimento das pessoas no Iêmen, no Afeganistão ou na Síria, obriga-nos a fazer tudo o que for possível para resolver estes conflitos. Fazemos isso convencendo e intermediando e, às vezes, conseguimos.

Na Líbia, por exemplo, conseguimos a assinatura de um cessar-fogo e a consolidação de um Governo de unidade nacional. Confiamos em que seja possível a realização de eleições livres e que haja uma retirada das tropas estrangeiras, confiamos em uma nova Líbia, definitivamente. Isso prova que não podemos nos render jamais. Mas, sim, é verdade o que você dizia, em muitas situações, dá a sensação de que somos bombeiros sem água na mangueira.

Enquanto o Ocidente monopoliza as vacinas, os países pobres quase nem sequer receberam uma dose. Você qualificou isso como “fracasso moral”. Esse fracasso pode se tornar uma maldição?

Os riscos são evidentes. Quanto mais o vírus se propagar, maior é a probabilidade de que surjam novas mutações. É um fenômeno que responde aos princípios da evolução de Darwin, ou seja, a sobrevivência do mais apto: acabam se impondo as mutações mais facilmente transmissíveis e também mais resistentes às vacinas.

O que, por sua vez, quer dizer que...

Que corremos o risco de que o vírus possa sofrer mutações nos países do sul e retornar para nós, caso não seja realizado um grande esforço para impulsionar vacinações em massa nas regiões em vias de desenvolvimento, em paralelo às que já estão ocorrendo nas regiões desenvolvidas. Por isso, não só temos que apoiar economicamente a iniciativa COVAX...

Nome de um mecanismo internacional que busca a divisão justa de vacinas.

... também precisamos de uma ação concertada. Por isso, pedi um plano global de vacinação, coordenado pelo G20, para unir os países que contam com os meios econômicos e de produção necessários, além da tecnologia. Temos que duplicar a produção e facilitar as licenças necessárias para isso.

Fica surpreso com o nível de nacionalismo das vacinas que estamos assistindo?

Posso entender que alguns países primeiro tenham que satisfazer os desejos de sua população, mas monopolizar vacinas não faz sentido.

Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico, prognosticou outra onda muito maior de refugiados, caso o Ocidente não estenda a mão.

Todos os fenômenos que aumentam a desigualdade e a injustiça têm como consequência inevitável o aumento da migração. Caso ocorra essa onda, será consequência da pandemia, mas também da mudança climática e de muitas outras formas de injustiça. Tudo passa pelo combate à desigualdade e a criação de condições de vida dignas nos países de origem dessas pessoas.

Você chegou a seu cargo com o desejo de modernizar a ONU. Mas é reformável uma organização com 37.000 empregados e semelhante aparato burocrático?

Já demos passos na reforma de muitos dos aspectos que não estão diretamente relacionados ao exercício do poder...

Com ‘poder’, refere-se ao Conselho de Segurança e seus membros permanentes... Uma vez, conversando sobre ele, você disse que “a desigualdade começa na cúpula das instituições globais”.

Sim. O Conselho de Segurança segue refletindo as relações de poder que existia após a Segunda Guerra Mundial. O mundo mudou, mas as relações de poder não. As estruturas multilaterais modernas deveriam ao menos se adaptar ao presente.

O ideal seria um sistema completamente democrático, ou seja, que funcionasse sob o princípio da justiça e a igualdade de direitos. De qualquer modo, implantá-lo exigiria o consenso de muitos países. Ou ao menos um acordo básico de que é preciso começar a se mexer. E muitos se mostram pouco entusiasmados.

É uma forma muito diplomática de apresentar as coisas. O Conselho de Segurança nem sequer é capaz de chegar a um acordo sobre situações de emergência como as de Mianmar, Síria, Iêmen e Palestina. Não é frustrante?

As relações disfuncionais entre as grandes potências tornam praticamente impossível para uma organização como a ONU enfrentar de forma razoável esses focos de crise que você acaba de citar, isso é uma realidade. De vez em quando conseguimos, mas muitas vezes não. E é isso que leva a essa aparência de paralisia que eu dizia antes.

Não obstante, acredito que a ONU alcançou um papel de liderança muito importante em alguns aspectos, sobretudo no tema da mudança climática. Nisso estamos na liderança, insistimos mais de uma vez que estamos diante de um abismo.

Foi o que disse na recente cúpula climática convocada pelo presidente estadunidense, Joe Biden.

Acabo de apresentar um relatório sobre o estado do clima global, e a situação é absolutamente dramática, com um aumento médio das temperaturas de quase 1,2 grau em relação ao nível pré-industrial, ou seja, já muito próximas do 1,5 grau que a ciência considera o limite máximo. Não temos tempo a perder.

Tomamos a iniciativa, já temos uma coalizão internacional, cujo objetivo é reduzir as emissões a zero. Os europeus se somam ao objetivo. E esse passo ajudou a convencer o Japão, a República da Coreia, a China e esperamos que agora também os Estados Unidos.

Quero dizer que acredito que, a partir da ONU, sinalizamos o caminho para a criação de uma consciência global e de pressão sobre os governos. Como é natural, muitas vezes, é complicado e frustrante, mas demonstra que podemos fazer mudanças e marcar uma diferença.

Os Estados Unidos do presidente Biden voltaram à Organização Mundial da Saúde e ao Acordo de Paris, inclusive querem liderar a política climática, após quatro anos de estagnação e retrocessos. Você deve se sentir aliviado, não?

O novo Governo também deu sinais animadores para além da OMS e da proteção do clima. Por exemplo, a ajuda humanitária para a Palestina, o envolvimento no Iêmen e em outras regiões em conflito. Tudo isso me deixa otimista. Mas, por outro lado, é óbvio que também enfrentamos uma relação muito complicada entre os Estados Unidos e a China.

Você chegou a alertar sobre o risco de uma possível guerra fria entre os dois países.

É importante organizar essa relação de forma razoável. Acredito que os Estados Unidos, junto com a União Europeia, deveriam ser capazes de estabelecer uma discussão séria com a China, uma discussão na qual todos os temas estivessem sobre a mesa para ver em que aspectos é possível encontrar um caminho comum em benefício de toda a humanidade, como, por exemplo, naqueles relacionados ao comércio e as novas tecnologias.

Qual considera que é o papel da União Europeia nesta luta de poder entre norte-americanos e chineses?

Como europeísta convencido que sou, nunca havia sentido tão claramente a necessidade de ter uma Europa forte e unida como pilar básico de uma ordem internacional multilateral. No que diz respeito aos Estados Unidos e a China, é evidente que a Europa pode desempenhar o papel de construtora de pontes entre os dois.

Existe a possibilidade de que ocorra uma séria ruptura entre as duas maiores economias do mundo e temos que fazer tudo o que for possível para impedir. Por isso, também é tão animador que Washington e Pequim estejam mantendo uma postura muito construtiva no âmbito da proteção do clima.

Isso é o que esperam sobretudo os jovens, que você chama de ‘geração da esperança’.

Minha geração fracassou na questão climática. E acredito que deveríamos ter a humildade de reconhecer. Vejo esta geração jovem decidida a abordar todas as transformações básicas que minha geração deixou passar.

Também acredito que esta geração é muito mais cosmopolita, aberta ao mundo, menos suscetível ao nacionalismo e o populismo. Entendem que todos vivemos em um planeta que precisa ser protegido. Conforme estes jovens forem chegando a postos de liderança, avançaremos muito melhor e mais rápido.

Isto quer dizer que a ‘geração Thunberg’ está à frente da classe política atual?

Sim, porque os jovens são conscientes da influência que o clima terá sobre eles. Pense em 2070, eu não estarei mais aqui, mas os jovens sim. E sabem perfeitamente que é agora que precisamos tomar as decisões que continuarão tornando possível a vida em 2070.

 

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