Poderá o precariado assombrar o capital?

Foto: Cesar | Flickr CC

01 Junho 2021

 

Novo livro examina a fundo os trabalhadores-emblema do capitalismo pós-moderno. Superexplorados por mega-corporações, espalham lutas pelo mundo. Prezam sua autonomia. Parecem indomesticáveis. Mas até onde irá sua rebeldia?

O texto é de Leo Vinicius Liberto na apresentação ao livro Delivery Fight: A luta contra os patrões sem rosto de Callum Cant, editado pela Veneta, publicado por OutrasPalavras, 28-05-2021.

 

Eis o texto.

 

Enquanto lia Delivery Fight não pude deixar de recordar o já clássico Greve na Fábrica, de Robert Linhart. Com seus pontos comuns e diferenças, o livro de Callum Cant faz parte desse mesmo gênero de literatura, infelizmente não numeroso, em que a experiência do trabalho, as formas de controle e a construção das lutas são apresentadas pelo olhar de um trabalhador.

Robert Linhart era um jovem militante e intelectual que se inseriu como operário numa fábrica da Citroën na França no final dos anos 1960. Seu objetivo era fomentar a luta e organização dos operários daquela fábrica. Callum Cant, diferentemente, foi fazer entregas pela Deliveroo sem o objetivo militante, apesar de ser um militante e de ter sido ativo na organização da greve dos entregadores em Brighton, no período em que trabalhou para a Deliveroo. O objetivo dele ao se cadastrar no aplicativo era ter mais uma fonte de renda.

Apesar de o livro de Linhart ser magnífico para se estudar algumas áreas do conhecimento, como a ergonomia, a sociologia e psicologia do trabalho, será no livro de Callum Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as lutas deles. Mas deixemos as comparações de lado. O motivo de Greve na Fábrica ter aparecido neste Prefácio é servir como referência para situarmos historicamente a experiência relatada e analisada em Delivery Fight ao longo dos últimos setenta anos de luta de classes.

 

Do fordismo à fábrica difusa

O cenário apresentado por Robert Linhart foi emblemático do último grande ciclo mundial de lutas da classe trabalhadora, situado nas décadas de 1960 e 1970 [1]. A maior greve geral mundial até então, ocorrida de forma selvagem em maio de 1968 na França, mostrava que

o chão das grandes fábricas era ainda local privilegiado de luta e rebeldia da classe trabalhadora. No ano seguinte, na Itália, no que ficou conhecido como “outono quente”, ocorreu uma das mais intensas mobilizações de trabalhadores da história, com mais de 300 milhões de horas de trabalho perdidas por greves, das quais 230 milhões foram nas indústrias [2]. Costuma-se dizer que o “Maio de 68” italiano durou uma década, pois as lutas se estenderam com incrível intensidade até a segunda metade da década de 1970. O caráter espontâneo, por fora dos sindicatos, das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes plantas da Fiat, tidas como termômetros da luta de classes naquele país há décadas, serem consideradas ingovernáveis por volta de 1974. Para além das greves selvagens e da intimidação a supervisores, as faltas ao trabalho chegaram a 28% em certas semanas [3].

Essa tentativa de fuga da subordinação do trabalho expressa na rebeldia e nas formas de luta operárias levou o capital a fugir dessa insubordinação. Na Itália, ainda nos anos 1970, a resposta dada à insubordinação operária foi a reestruturação produtiva, com a automatização, a terceirização e a descentralização do processo produtivo, além do aumento do setor informal da economia [4]. Cabe ressaltar que a maior planta da Fiat, em Mirafiori, concentrava 63 mil operários no final dos anos 1960, sendo a maior fábrica do mundo. Esse processo de reorganização e dispersão da produção foi uma resposta global dos capitalistas àquele ciclo de lutas da classe trabalhadora.

A intensidade daquelas lutas havia posto em xeque o fordismo como forma de controle e organização do trabalho. Intelectuais italianos envolvidos nas lutas daquelas décadas passaram a denominar de fábrica difusa essa dispersão e terceirização da produção, que a espraiava pelo território da cidade, retirando a centralidade das grandes fábricas. Na expressão de Antonio Negri, a cidade passaria a ser produtiva como antes era a terra trabalhada [5]. Se o livro de Linhart ilustrava perfeitamente o cenário daquele ciclo de lutas, Callum Cant nos traz uma ilustração equivalente da experiência de trabalho e de lutas nessa fábrica difusa pós-fordista.

Os entregadores de aplicativos são hoje uma das expressões mais notáveis das tendências que se desencadearam como resposta à crise do fordismo gerada pela Z’insubordinação da classe trabalhadora. A ampliação do setor informal (ou a exploração direta da informalidade), a expansão da relação de serviço, a terceirização, a produção se confundindo com o próprio território da cidade, o desmanche da proteção trabalhista e social, a fuga por parte das empresas da própria relação de trabalho buscando transformar os trabalhadores em consumidores do seu serviço. Todas essas características da reestruturação produtiva pós-fordista são vividas pelos entregadores de aplicativos.

 

Multiculturalismo e luta de classes

Apesar de ambientado na Inglaterra, o livro de Callum Cant toca diretamente ao leitor brasileiro não apenas pelo fato de a organização do trabalho imposta aos entregadores de aplicativos ser muito parecida na Inglaterra e no Brasil. Como o leitor terá oportunidade de verificar através das palavras do autor, os imigrantes brasileiros eram particularmente conhecedores de táticas de greve, tendo disparado as greves em Brighton (2016) e desempenhado papel importante na consolidação da greve em Londres (2018). Isso em si talvez marque uma diferença da composição dessa força de trabalho na Europa e no Brasil. Lá, uma grande parte dos entregadores de aplicativos são imigrantes vindos de outros países, frequentemente não legalizados. A participação de imigrantes nessa força de trabalho tem aumentado à medida que os rendimentos baixam e os estudantes locais se retiram da atividade.

O esforço relatado por Callum Cant para ultrapassar a barreira linguística que separava entregadores de diversas nacionalidades nos remete ao tema do multiculturalismo na luta de classes. Na fábrica em que Robert Linhart trabalhou na França, como fica bastante nítido através de seu relato, os patrões se aproveitavam de uma força de trabalho multicultural, formada em grande parte por imigrantes, de modo a melhor manter os trabalhadores separados e sem unidade coletiva. Além das diferenças de língua, as identidades étnicas, religiosas, algumas das quais com rixas históricas, eram usadas pelo comando e controle capitalista. A greve naquela fábrica da Citroën foi possível porque a barreira das diferenças de origem e de identidade foi sendo superada pela condição operária compartilhada no local de trabalho. Na fábrica difusa, em que a produção se espalha pela cidade e pelo tempo de vida, as classes capitalistas continuam contando com as diferenças e rixas identitárias para que a força de trabalho não se constitua como coletividade em luta.

Programas políticos e a política eleitoral também podem se constituir como força de fragmentação dos trabalhadores. Os motoboys brasileiros que estavam na vanguarda das greves relatadas por Callum Cant simpatizavam com Jair Bolsonaro e compartilhavam conteúdos dessa nova direita nos grupos de WhatsApp dos entregadores brasileiros. Contradições à parte, o fato é que eles constituíram uma prática de antagonismo direto ao capital, lutando contra a exploração a que eram submetidos pelas empresas de entrega por aplicativos. No Brasil, durante a mobilização para as paralisações nacionais dos entregadores dos dias 1º e 25 de julho de 2020 – o Breque dos Apps –, a classe pôde se constituir porque deixou de lado as preferências partidárias e eleitorais individuais. A comunidade emergia da experiência comum do trabalho e sabiamente não se falava de política nos grupos de WhatsApp de organização e divulgação do Breque. A organização e mobilização da categoria constituía uma política contra a exploração, sem dúvida. Tratava-se de uma política implícita nas práticas de mobilização e luta dos entregadores, o que era diferente de identidades políticas evidenciadas em programas e preferências partidárias e eleitorais.

Foi a política nesse sentido identitário, [6] com potencial de fragmentar os trabalhadores, que veículos e pessoas de esquerda acabaram reforçando ao concederem enorme destaque e sobrevalorizarem a importância do grupo Entregadores Antifascistas. Introduzindo um elemento de identidade política, o “antifascismo”, eles introduziram um elemento de tensão e divisão. Não por algum entregador se considerar fascista, evidentemente. Mas por trazer algo externo à experiência comum de trabalho, o único elemento capaz de ser imediatamente compreendido por todos e de unificar e constituir a classe.

 

O Breque dos apps e o fantasma da autonomia operária

Como disse antes, havia sim um programa político implícito nas práticas do Breque dos Apps. Para usar um termo corrente nos anos 1970, principalmente na Itália, o Breque dos Apps foi uma expressão política de “autonomia operária”. Autonomia “operária” numa dimensão alcançada em São Paulo que não se via nos centros urbanos brasileiros havia pelo menos quarenta anos.

Comunicação horizontal e participação ativa dos entregadores imprimindo e distribuindo eles próprios os cartazes, gravando vídeos, por fora de entidades sindicais – e em parte até mesmo contra o sindicato em São Paulo. A percepção dessa autonomia e horizontalidade foi o que possibilitou um efeito de contágio pelo Brasil, para dentro e para fora da categoria, e até mesmo fora do país, fazendo do chamado de greve para o dia 1º de julho uma greve internacional, com a paralisação se estendendo a outros países da América Latina. Essa participação ativa da categoria na construção da mobilização e a comunicação horizontal entre os trabalhadores tornaram o Breque dos Apps uma mobilização diferente daquelas puxadas por direções sindicais. Essa forma potencializou o movimento e também o seu impacto. Um movimento que não é controlado por direções sindicais não é limitado por convenções, normas, leis, e possui assim uma imprevisibilidade que em si constitui uma força sua. A autonomia “operária” se constituía já na própria construção do Breque.

Puxar uma greve nacional de entregadores de aplicativos para o dia 1º de julho foi uma ideia discutida e decidida em grupos de WhatsApp de entregadores de alguns estados. A ideia de uma greve nacional já vinha sendo gestada desde os primeiros meses do ano e ganhou impulso com ações de luta dos entregadores em algumas cidades, como em Rio Branco, Rio de Janeiro e São Paulo. Seguindo mais ou menos uma ordem decrescente de importância para a mobilização dos entregadores, as reivindicações eram: 1) Aumento do valor das corridas; 2) Aumento do valor mínimo por entrega; 3) Fim dos bloqueios e desligamentos indevidos; 4) Seguro de roubo, acidente e vida; 5) Fim do sistema de pontuação; 6) Auxílio-pandemia (EPIs e licença). Evidentemente, as tendências e relações que se estabeleciam entre entregadores e sindicatos, políticos e instituições não são homogêneas Brasil afora. Mas o que prevaleceu, principalmente em São Paulo, onde o movimento era mais potente, foi uma posição de autonomia total quanto a sindicatos, partidos, instituições… quando não com uma atitude de aversão aberta e declarada. Dias antes da paralisação, um vídeo gravado por alguns motoboys de São Paulo que estavam bastante engajados na organização do Breque sintetizou a perspectiva autônoma do movimento [7].

Baseando as pautas na atividade dos entregadores de aplicativos e explicitando que não havia vínculo político com ninguém nem com sindicatos, sendo uma iniciativa e ação dos próprios entregadores, eles demonstravam uma aguçada consciência de classe prática. Mais do que isso, mostravam como o movimento era uma expressão de continuidade da autonomia operária que precipitou a crise do fordismo nos anos 1970, dessa vez numa condição pós-fordista. Como diz um ex-operário italiano bastante ativo nas lutas e na construção dessa autonomia operária nos anos 1960 e 1970: a passividade dos trabalhadores normalmente pode ser superada, pois ela seria consequência da falta de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato. 8 Em parte, era isso que também estava sendo constituído pelos entregadores: uma referência de organização alternativa ao sindicato. Como no último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora, o potencial disruptivo da ação dos trabalhadores vinha de fora do sindicato, quando não se voltava diretamente contra ele.

Impossível dizer o número de entregadores que aderiram à paralisação em 10 de julho de 2020 no Brasil. Em São Paulo, especificamente, talvez seja difícil até mesmo fazer uma estimativa. Provavelmente foi a maior paralisação de entregadores de aplicativos no Ocidente. A imagem midiática, espetacular, foi a da imensa manifestação que saiu da Avenida Paulista e terminou ocupando a Ponte Estaiada. Contudo, a autonomia de classe se expressou de forma menos visível aos olhos do público. Foram os incontáveis piquetes auto-organizados em locais de coleta de pedidos, como shopping centers, que fizeram desse o dia de maior ex- pressão de autonomia “operária” nos centros urbanos brasileiros das últimas décadas.

Para o dia 25 de julho era nítido que não havia a mesma energia e disposição dos entregadores para se envolver com a paralisação. Mesmo assim, ao menos em São Paulo ela foi bastante expressiva. Dessa vez a paralisação teve um tom de “greve de pijama”. Muitos ficaram em casa. Mas os piquetes em alguns shoppings eram desnecessários uma vez que o movimento de trabalho estava mesmo muito abaixo do normal. Grande parte dos entregadores de fato não havia ido trabalhar.

O movimento conseguiu trazer uma boa exposição da situação vivida pelos entregadores de aplicativos. A imagem das empresas de aplicativo saiu arranhada, e esse prejuízo à marca certamente foi maior do que aquele trazido pela paralisação do trabalho. No entanto, comparada com as greves de entregadores na Inglaterra relatadas por Callum Cant, o Breque dos Apps objetivamente conquistou muito pouco. Talvez o único ganho objetivo tenha sido alguma melhora para que não haja tantos bloqueios indevidos por parte da maior empresa do mercado, mas sem nada oficializado. Essa diferença em termos de conquistas e compromisso das empresas na Inglaterra e no Brasil é indício de que aqui os trabalhadores estão enfrentando um poder econômico mais soberano, mais difícil de ser constrangido. Algo que a existência do modelo OL no Brasil também nos indica, o que veremos mais adiante.

 

A composição de classe

A atração exercida tanto por Delivery Fight quanto pelo Breque dos Apps sobre aqueles que buscam um mundo mais justo certamente se relaciona com a esperança ou expectativa de que a classe trabalhadora esteja se recompondo nas novas condições técnicas e de relações de trabalho que chamamos vagamente de pós-fordismo. Pós-fordismo que os entregadores de aplicativo tão bem representam na sua versão talvez mais extrema, que tem sido denominada de uberização. O conceito de composição (e recomposição) de classe surgiu em meio a uma corrente de intelectuais italianos, os quais se envolveram nas lutas operárias dos anos 1960 e 1970. É dessa referência teórica, chamada operaísmo, que Callum Cant parte para analisar o seu próprio trabalho como entregador, assim como a organização e a luta da categoria. 

O leitor irá encontrar em Delivery Fight a explicação mais didática de que tenho conhecimento dos conceitos de composição de classe, de composição técnica, de composição política e de composição social (este último acrescido posteriormente aos conceitos originais dos operaístas italianos). Callum Cant é excepcionalmente didático e claro na explicação desses e de outros conceitos importantes para se compreender e analisar a organização do trabalho e as relações de produção. Essa já seria uma virtude que por si só justificaria o livro.

Esquematicamente podemos dizer que o último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora se baseou numa determinada composição de classe. Com a reestruturação produtiva para responder a essas lutas, o capital gerou um processo de fragmentação e decomposição da classe trabalhadora. Esse processo de fragmentação, iniciado há décadas, ainda está em curso. No entanto, as lutas que ocorrem com maior ou menor intensidade podem indicar um processo ou tendência de recomposição de classe. Pelo menos é nessa expectativa que olhamos para as lutas dos trabalhadores. Estar atento aos indícios de uma possível recomposição de classe é também estar atento a uma nova ­subjetividade dos trabalhadores, emergente a partir de novas ­condições de vida e de experiência de trabalho. Uma nova composição de classe implica uma nova política, novos desafios e novas questões postas, que certamente não constituirão um caminho de regresso histórico ao fordismo. Ora, o fordismo como forma de organização da produção e de pacto social foi posto em crise pela própria luta dos trabalhadores.

A falta de perspectiva histórica aliada a um afastamento da realidade vivida pelos trabalhadores e a um desinteresse em compreendê-los têm feito muitos acadêmicos atribuírem a rejeição da maioria dos motoboys à CLT, ou a preferência em não terem carteira assinada, a uma suposta ideologia empresarial e de empreendedorismo que estaria impregnando esses trabalhadores. Todos os trabalhadores sempre buscam autonomia e segurança social. Busca por autonomia que se expressa desde as tentativas subterrâneas de controlar o ritmo de trabalho até os momentos revolucionários de tomada dos meios de produção e autogestão generalizada. Como Callum Cant deixa claro, e também como relatam entregadores de aplicativos do Brasil à China, uma vantagem evidente que faz os entregadores de aplicativos preferirem em geral esse trabalho a uma série de outros é a ausência de chefe. Os chefes costumam ser uma das principais fontes de incômodo e estresse em qualquer trabalho. A carteira assinada está relacionada a esse tipo de subordinação clássica.

O que a maioria dos motoboys está dizendo com essa ­rejeição à carteira assinada e à CLT é que não estão dispostos a abrir mão da autonomia e flexibilidade que possuem em troca da proteção trabalhista e previdenciária da CLT. Ora, isso não impediu que se colocassem em luta aberta contra as empresas de aplicativos de entrega nem, que reivindicassem proteção social, como deixam claro o Breque dos Apps e suas pautas.

A composição técnica, nas palavras de Cant, diz respeito a como os trabalhadores são organizados como força de trabalho produtiva. Por isso Delivery Fight traz uma brilhante análise da organização do trabalho dos entregadores de aplicativos, além de descrever e analisar a organização deles enquanto classe que luta (a composição política).

 

Normas de produção e o risco de acidentes

Central a essa organização do trabalho é o salário por peça, que já mencionamos. Ele por si só induz que os entregadores autogerenciem e autointensifiquem o trabalho. A percepção de risco de Callum Cant era assim reduzida enquanto ele fazia as entregas, em relação a quando ele pedalava fora do trabalho.

Ocupações ligadas ao transporte rodoviário possuem as maiores taxas de mortalidade por acidente de trabalho no Brasil [9]. E isso mesmo desconsiderando os que estão na informalidade. Na China, as pressões exercidas pela organização do trabalho imposta pelas empresas levam os entregadores a se arriscarem ainda mais. Tempos reduzidos para realizar as entregas, com rotas que desconsideram as regras de trânsito, e punições financeiras e de desligamento por atraso levam os entregadores a avançarem o sinal vermelho e a andarem na contramão, o que gera um aumento expressivo dos acidentes e mortes de motoboys [10]. Como

no Brasil e nos outros países, essas empresas não são responsabilizadas pelos acidentes e não arcam com nenhum custo de afastamento do trabalho nem de reparo do instrumento de trabalho, de modo que as empresas não se veem incentivadas a mudar as regras que determinam os acidentes. Quando os acidentes se tornam uma questão pública, uma série de medidas cosméticas ou que acabam penalizando os entregadores acabam sendo postas em prática, em nome da segurança no trabalho. Para não entrarmos nos diversos exemplos chineses de medidas que supostamente visam prevenir acidentes mas que não tocam nas regras impostas pelas empresas que determinam a maior parte dos acidentes, responsabilizando unicamente os trabalhadores pela prevenção, fiquemos com um exemplo ocorrido em Florianópolis.

Em setembro de 2020, uma espécie de operação-padrão massiva envolvendo a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar levou à apreensão de inúmeras motocicletas de entregadores, além de um número maior de multas, flagelando ainda mais trabalhadores que se viram do jeito que podem com extensas jornadas para conseguir pagar as contas a cada mês. As blitze eram diárias e em tantas vias da cidade que alguns entregadores chegaram a não sair para trabalhar tamanha a dificuldade de se deslocar sem passar por elas. In- dignados, os motoboys chamaram uma manifestação para o dia 23 de setembro. Com a repercussão na imprensa, o discurso do comando da Polícia era de que se tratava de ação motivada pelo aumento no número de acidentes com motoboys. A lição é clara: se a segurança e saúde dos trabalhadores não estão incorporadas à organização do trabalho como valor exterior à maximização do lucro, elas aparecerão como força policial sobre os trabalhadores.

 

A liberdade do trabalhador contra o controle e a disciplina do explorador

Um ponto importante destacado por Callum Cant é que a precariedade dos vínculos trabalhistas não significa necessariamente menor poder desses trabalhadores, podendo ocorrer exatamente o contrário. O vácuo de legislação trabalhista que implica ausência de direitos e de proteção social também implica que os entregadores estão fora da legislação que enquadra as formas de luta de organização dos trabalhadores. Todo um espaço se abre para lutas mais autônomas, contundentes e imprevisíveis quando não há necessidade de aviso prévio, formalização ou de seguir procedimentos de negociação quanto à ocorrência de greves. Cant apresenta o exemplo histórico dos operários da construção civil e dos estivadores ingleses. A ausência de vínculo empregatício propiciava um grande poder de barganha aos estivadores. Para lhes retirar esse poder, os capitalistas terminaram por incorporá-los como empregados em tempo integral, com salários fixos.

Para fugir do vínculo empregatício, essas empresas de entrega por aplicativos terceirizam o trabalho para uma multidão, considerando-os trabalhadores autônomos, ou mesmo consumidores de seus serviços. Para Callum Cant, esse status de trabalhador autônomo (independent contractor na Inglaterra) se torna necessário para que possam implementar o sistema de salário por peça. Somado a isso, a automatização da função de supervisão (o chamado “algoritmo”) completa a caracterização do que tem sido o típico modelo de relação de trabalho de entregadores de aplicativo pelo mundo. Mas Callum Cant nos mostra que o supervisor automático exerce mal uma das funções da supervisão, isto é, da chefia: disciplinar o trabalhador. Disciplinar para trabalhar, assim como para não contestar e não lutar. A essa deficiência na função disciplinar brilhantemente apresentada por Callum Cant, podemos acrescentar que o modelo típico de entrega por aplicativos cria uma incerteza de quantos entregadores a empresa terá disponíveis em determinado horário, uma vez que em tese os entregadores possuem liberdade de logar e deslogar da plataforma quando bem quiserem. Essa incerteza tende a se tornar mais problemática para as empresas, por exemplo, em dias ou horas de chuva, quando a demanda tende a aumentar e o número de entregadores logados tende a diminuir.

Para resolver o problema da indisciplina e dessa incerteza sobre o número de entregadores à disposição, a atual conjuntura histórica tem permitido que as empresas de entrega por aplicativos deem uma resposta diferente da que foi dada aos estivadores ingleses. Essa conjuntura é a de debilidade geral da classe trabalhadora, num período de décadas de relativa estagnação econômica e de desindustrialização, com consequente subemprego em massa [11]. A resposta diferente que essas empresas de entrega por aplicativos já dão pode ser vista num modelo de relação de trabalho que não existe na Europa – segundo informações que troquei com o nosso autor – mas que existe por aqui.

No Brasil, apesar de ser adotado também pela Bee, esse modelo ficou conhecido pelo iFood como OL. O iFood possui dois tipos de entregadores, o Nuvem e o OL. O Nuvem é o modelo típico que caracterizamos acima, o mesmo descrito por Callum Cant a partir de seu próprio trabalho. Aquele em que o entregador pode logar e deslogar quando quiser, isto é, a princípio trabalhar quando quiser, não possuindo chefe ou supervisor humano. O OL por sua vez tem que cumprir horários todos os dias, com um dia de folga por semana. Ele possui chefe/supervisor humano, o Operador Logístico, uma espécie de supervisor terceirizado do iFood que determina os dias de folga e em quais turnos (manhã, tarde, noite) o entregador terá que trabalhar. O modelo OL responde ao problema da indisciplina do trabalhador: os entregadores OL, a grosso modo, não participaram do Breque dos Apps. Se faltarem ao trabalho podem ser desligados por seus Operadores Logísticos, que funcionam como pequenos patrões. Por outro lado, esse modelo garante à empresa a certeza de que haverá determinado número de entregadores trabalhando, não importa o clima, uma vez que não possuem liberdade para logarem e deslogarem quando quiserem e tampouco para rejeitarem corridas.

Na China as duas grandes empresas de entrega por aplicativo alocam grande parte das suas forças de trabalho sob um modelo bastante parecido com o do OL, no qual os entregadores têm supervisores humanos terceirizados e são obrigados a cumprir uma jornada de trabalho definida. No entanto, na China eles recebem um valor mínimo fixo, enquanto no Brasil não. Nos Estados Unidos, uma empresa de compras e entregas por aplicativos chamada Instacart possui um modelo algo semelhante para toda a sua força de trabalho. Há supervisores humanos e turnos de trabalho, que são escolhidos pelos trabalhadores conforme seu ranqueamento. A Deliveroo na Europa, embora não tenha supervisores humanos, possui em grande parte das cidades um sistema de turnos em que o trabalhador deve escolher horários pre-definidos para trabalhar, por ordem de ranqueamento. Um sistema parecido com o de distribuição de comida do filme O Poço, em que os grupos mais abaixo no ranqeamento ficam com as sobras de horários e regiões, até sobrarem apenas os piores e poucos horários e regiões para os do fundo do “poço”. Não poder cumprir um turno programado por causa de um acidente ou qualquer outro imprevisto, como um assalto, costuma jogar o entregador em direção ao fundo do poço no ranqueamento.

 

O que vem pela frente?

Em suma, o capital já está impondo um regime de trabalho com o sistema OL que mistura a subordinação despótica fordista com a ausência de direitos e proteção social que tem sido tendência no pós-fordismo. Já é realidade o paradoxo de ser empregado sem salário e sem vínculo empregatício com qualquer emprego – algo que não foi visto antes na história do capitalismo. A lógica é que esse paraíso para os capitalistas tenda a se expandir nessa e em outras categorias, se depender da vontade deles. E é a vontade deles, praticamente sem obstáculos, que tem prevalecido nos últimos anos, ao menos no Brasil.

A obrigação de possuir os instrumentos de trabalho e o salário por peça são duas características presentes no trabalho de entrega para aplicativos que tendem a se generalizar para outras atividades. Por isso os entregadores de aplicativos também podem nos antecipar, quem sabe, tendências para uma recomposição de classe no futuro. Uma tendência nesse contexto de baixa demanda por trabalho e de subemprego em massa é que a reivindicação de um salário mínimo se torne cada vez mais comum, pois seria a única forma de conseguir aumento salarial ou, pelo menos, tentar evitar a redução salarial. Tendência de redução salarial que afeta particularmente os serviços, como nos explica Aaron Benanav [12]. O aumento do valor mínimo por entrega e o valor mínimo por quilometragem foram reivindicações dos entregadores de aplicativos em julho de 2020 no Brasil, que nos servem como exemplo. Se isso parece ser uma reivindicação rebaixada quando comparada a outros tempos, pouco importa. O que irá importar do ponto de vista revolucionário, de fortalecimento de novas relações sociais, é a forma que terão as lutas e os movimentos. Como salienta Benanav, há uma diferença importante das lutas que viveremos em relação às lutas históricas da classe trabalhadora. Elas não serão mais relacionadas à industrialização, mas às consequências do fim desta.

Os capitalistas contam com a nossa dificuldade de construir lutas contínuas e que não se burocratizem, ainda mais em tempos de baixa demanda por trabalho. Contam também com a maior dispersão e fragmentação dos trabalhadores em relação aos tempos de Robert Linhart na fábrica da Citroën. E nada indica que a ampliação do poder deles sobre nós encontrará um revés tão logo. Mas uma coisa eles não podem evitar: a rebeldia. Como dizia um revolucionário do século XIX, o ser humano é dotado de duas faculdades preciosas: o pensamento e a necessidade de se revoltar. Haverá muitos gritos de Já Basta contra essa vida insuportável de sofrimento e indignidade que o lucro e o poder deles impõem. Callum Cant nos traz de forma inspiradora um desses gritos. O fato de você estar com esse livro nas mãos é sinal de que esse grito ecoa em direção a outros gritos de rebeldia…

Eles jamais poderão contar com um sono tranquilo.

Florianópolis, janeiro de 2021.

 

Notas.

1 A maior expressão desse ciclo de lutas no Brasil foram greves e agitações operárias no final dos anos 1970, concentradas no ABC e em São Paulo.

2 GIACHETTI, Diego; SCAVINO, Marco. La Fiat in mano agli operai. L’autunno caldo del 1969.Ghezzano: BFS Edizioni, 1999.

3 KATSIAFICAS, Georges. The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. New Jersey: Humanity Press, 1997

4 Ver: GINSBORG, Paul. A History of Contemporary Italy: Society and Politics 1943-1988. Londres: Penguin, 1990; e WRIGHT, Steve. Storming Heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism. Londres: Pluto Press, 2002.

5 NEGRI, Antonio. Adeus Sr. Socialismo. Porto: Ambar, 2006.

6 Ver: HAIDER, Asad. Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.

7 Postado na página Treta no Trampo no Facebook em 29 de junho de 2020: https://www.facebook.com/tretanotrampo/posts/158641615782375.

8 SACCHETTO, Devi; SBROGIÒ, Gianni. Quando il potere è operaio: autonomia e soggettività politica a Porto Marghera (1960-1980). Roma: Manifestolibri, 2009.

9 DIEESE. Anuário da Saúde do Trabalhador. São Paulo: Dieese, 2016.

10 Sobre a situação dos entregadores de aplicativos na China, ver a excelente matéria “Delivery Workers, Trapped in the System”, disponível em: http://chuangcn.org/2020/11/delivery-renwu-translation/, 27 fev. 2021.

11 BENANAV, Aaron. Automation and the Future of Work. Nova York: Verso, 2020.

12 BENANAV, Aaron, op. cit.

 

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