Viganò e o terceiro segredo de Fátima: o que poderia dar errado?

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01 Mai 2020

Dom Carlo Maria Viganò está de volta ao noticiário e num momento apropriado. Desta vez, ele traz uma advertência não a partir da sua longa experiência como conhecedor do que se passa internamente no Vaticano ou como diplomata, mas com base em uma comunicação mais direta de Deus: o Vaticano tem mentido sobre o terceiro segredo de Fátima[1], e tem mentido desde o reinado do Papa São João XXIII!

O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 29-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

“A terceira parte da mensagem que Nossa Senhora confiou aos pastorinhos de Fátima, para que eles a entregassem ao Santo Padre, permanece em segredo até hoje”, contou Viganò a um sítio eletrônico de Portugal, chamado Dies Irae (o dia da ira). “Nossa Senhora pediu [que a terceira parte fosse] revelada em 1960, mas João XXIII publicou, a 8 de fevereiro daquele ano, um comunicado em que afirmava que a Igreja ‘não quer assumir a responsabilidade de garantir a veracidade das palavras que os três pastorinhos dizem que a Virgem Maria lhes dirigiu’. Com este afastamento da mensagem da Rainha do Céu, deu-se início a uma operação de encobrimento, evidentemente porque o conteúdo da mensagem revelaria a terrível conspiração dos seus inimigos contra a Igreja de Cristo”.

Portanto, não somente São João XXIII, mas São Paulo VI e São João Paulo II e o Papa Emérito Bento XVI fazem, todos eles, parte desta conspiração também. Presumivelmente, o Papa João Paulo I não teve tempo de desfazer a traição! E, o que não deve nos surpreender, o Papa Francisco manteve em curso a conspiração.

Viganò igualmente critica os papas por não consagrarem a Rússia ao Coração Imaculado de Maria, preferindo percorrer o caminho da distensão com a Rússia comunista, “inaugurado precisamente por Roncalli, sem compreender que sem Deus não é possível paz alguma”. Ora, Viganò considera que chegou o momento para se conduzir as relações com a Rússia.

“Hoje”, disse Viganò ao entrevistador, “com um presidente da Confederação Russa que certamente é Cristão, o pedido da Virgem poderia ser atendido, evitando posteriores infortúnios para a Igreja e para o mundo”. Certamente cristão? Suponho que deixar passar a bem-aventurança que afirma: “Felizes os ditadores violentos que matam opositores políticos e jornalistas; deles são os despojos dos poços de petróleo na Sibéria”.

Esta incursão do arcebispo em umas das teorias mais conspiratórias da história católica recente não é exemplo de um idoso a perder suas faculdades e que é merecedor de nossa piedade. Seria cruel zombar de alguém assim. Não. Viganò trafega sem sentido em palafitas há anos.

Soube eu pela primeira vez de sua predileção pelas maluquices da direita num dos jantares que promovi em meus aniversários. Três dos monsenhores que trabalhavam na Nunciatura Apostólica [dos EUA] costumavam se juntar a mim e meus amigos em um belo e pequeno restaurante mexicano, não longe da minha residência, para comemorar. Certa vez, os monsenhores me informaram que eu fora atacado em um programa televisivo chamado Gloria TV. Nunca ouvi falar, mas acabou que era o equivalente internacional daquilo que se conhecia então por “a TV católica de verdade”, hoje conhecida por “Church Militant”, ou seja, seus “noticiários” traziam uma homofobia agressiva, combinada com uma política de direita e com uma política eclesial, além de doses pesadas de teorias conspiratórias e condenações contra todos que eram suspeitos de modernidade. Os monsenhores explicaram que o núncio assistia o Gloria TV diariamente e que eles mesmos assistiam junto o programa.

A inclinação de Viganò à loucura também esteve à mostra quando ele trapaceou Francisco para que este último se encontrasse com Kim Davis, a tabeliã do condado de Kentucky cuja recusa em emitir licenças matrimoniais entre pessoas homoafetivas a fez uma heroína para os homofóbicos do mundo todo. Davis se pintou – e foi apresentada ao papa por Viganò – como uma objetora de consciência, mas não era o caso. Como observei na época:

“Quisesse o papa mostrar apoio à objeção de consciência, seria melhor ter se encontrado com um objetor de consciência. Davis perdeu o direito de considerar-se objetora de consciência quando proibiu outros de emitir licenças matrimoniais que ela não queria emitir por si mesma. Davis não foi presa por praticar sua religião. Foi presa por forçar outras pessoas a pratica a sua religião.”

Quando o papa descobriu a verdade da situação – e que Davis não era exatamente um exemplo de casamento tradicional, pois tivera quatro maridos –, Viganò foi chamado a Roma para uma longa conversa.

Em seguida, veio o seu “depoimento”, em que atacou Francisco acusando-o de encobrir os crimes do então Cardeal Theodore McCarrick e pedindo que o papa renunciasse, em agosto de 2018. Estava óbvio, para mim, que este ataque de Viganò tinha pouco a ver com o sentimento de indignação em relação a McCarrick: mesmo a questão não se referindo a McCarrick, ainda assim a última pessoa a ser responsabilizada seria Francisco. Foi João Paulo II quem promoveu McCarrick – não uma, nem duas, nem três, mas quatro vezes. E, indo a público, Viganò violou o juramento de fidelidade feito a Bento XVI quando foi enviado a Washington em 2011. Muitos bispos não compartilhavam de minhas reservas quanto ao depoimento ou ao histórico de loucura demonstrado por Viganò. Eles estavam demasiadamente dispostos a testemunhar a integridade e virtude do núncio.

“Conheço Dom Carlo Maria Viganò há 39 anos”, disse o bispo de Phoenix, no Arizona, Dom Thomas Olmsted à época. “Nos tornamos colegas na Secretaria de Estado da Santa Sé em agosto de 1979, onde ele trabalhava antes da minha chegada para atuar no ministério do Papa João Paulo II. Embora não tenha conhecimento das informações reveladas por ele em seu depoimento escrito, de 22-08-2018, portanto não podendo asseverar pessoalmente a veracidade delas, sempre o conheci e respeitei como um homem verdadeiro, religioso e íntegro. São Paulo diz dos sacerdotes: ‘Que os homens nos considerem como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus. Ora, o que se espera dos administradores é que eles sejam dignos de confiança’ (1 Cor 4,1-2). É assim que sempre considerei Dom Carlo Maria Viganò”. Será que Olmsted ainda acha Viganò “um homem verdadeiro, religioso e íntegro”? Acha ele que todos papas, desde Pio XII, foram mentirosos?

O arcebispo de Oklahoma City, Dom Paul Coakley, segue no mesmo tom, dizendo: “Embora não tenha conhecimento pessoal ou experiência dos detalhes contidos em seu depoimento, tenho o mais profundo respeito por Viganò e por sua integridade pessoal. As afirmações que faz, ainda que precisam ser investigadas ou substanciadas, confirmam a urgência de uma investigação completa da penetração de McCarrick para dentro das fileiras eclesiásticas, dada a sua história de supostos abusos, envolvendo seminaristas e jovens”. Será que o arcebispo ainda tem o “mais profundo respeito” pelo ex-núncio, agora que sabemos que ele trafega em teorias conspiratórias malucas?

Se quisermos conhecer um dos principais motivos por que a hierarquia americana se encontra em má-forma, só basta lembrar que Viganò desempenhou um papel central na escolha dos bispos de 2011 a 2016. Núncios nem sempre ficam com o candidato que querem, mas possuem uma influência ao longo do processo que não se compara a de nenhuma outra pessoa. Por cinco anos, tivemos este homem, histérico, como núncio apostólico.

Aliás, qual era o verdadeiro terceiro segredo de Fátima? Cuidado com qualquer núncio que viole o seu juramento de fidelidade ao papa; ele mostrar-se-á um doido.

 

Nota:

[1] Conferir o artigo “‘Sois um povo com uma grande responsabilidade’ – Monsenhor Viganò”, disponível aqui.

 

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