Fabrizio Valletti, o jesuíta que ocupou São Pedro para protestar contra Nixon em 1968

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03 Março 2018

O jesuíta Fabrizio Valletti, aos quase 80 anos, hoje está sediado em Scampia, Nápoles, onde há anos anima as atividades para devolver a dignidade às pessoas do bairro que, nesse meio tempo, ficou famoso por causa da Gomorra. Em 1968, ele era um jovem jesuíta ainda não ordenado e foi detido pelos gendarmes vaticanos enquanto distribuía panfletos dentro da Basílica de São Pedro para protestar contra a chegada de Richard Nixon a Roma.

A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Vatican Insider, 01-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Poucos anos antes, ele participou dos protestos em Valle Giulia, a Faculdade de Arquitetura de Roma, depois foi um dos promotores da ocupação da Universidade de Pisa. E, ao longo desse tempo, encontrou-se no meio de um episódio incomum, para dizer o mínimo, o sit-in dos seminaristas e jovens padres (sobretudo latino-americanos) que estudavam na austera Pontifícia Universidade Gregoriana.

Um legítimo filho de 1968, em suma, que não vinha de uma família qualquer (o pai, médico cirurgião, operou Paulo VI) e que foi ordenado precisamente pelo Papa Montini, como demonstração de sua obediência ao pontífice.

Em 1968, “eu compartilhava a fermentação de toda uma área católica em Roma”, conta o Pe. Valletti nesta entrevista com o Vatican Insider. “Sobre muitos assuntos, como a catequese, o ensino da religião na escola, os problemas ligados à Concordata, havia convergência com as comunidades de base e com os valdenses. Quando Richard Nixon veio a Roma para se encontrar com o papa, pedia-se que Paulo VI não o acolhesse como presidente, mas como penitente, porque, naqueles anos, os Estados Unidos estavam envolvidos na Guerra no Vietnã. Parecia-nos que poderia ser um momento de pacificação. E, assim, durante uma assembleia eclesial romana, foi decidido ir a São Pedro e rezar no túmulo de São Pedro. Fizemos panfletagem na basílica para sugerir justamente isto: denunciar que Nixon representava uma potência que bombardeava o Vietnã e pedir que ele fosse recebido não como chefe de Estado, mas como penitente que o papa podia convencer a trazer a paz. Paulo VI era muito sensível ao tema da paz, o Concílio acabara há pouco tempo, e, na base católica, havia um sentimento muito forte de adesão ao ideal da paz. O reitor da basílica nos proibiu de fazer panfletagem... E como eu, que ainda não era sacerdote, mas já tinha entrado na Companhia de Jesus, era o único clérigo, fui pego pelos gendarmes e levado embora, enquanto todos os outros amigos – devíamos ser uma centena de pessoas – se jogaram no chão. Muitos daqueles que estavam visitando a basílica naquele momento se aproximaram. A coisa acabou nos jornais... Eu ainda tenho cópias do Paese Sera, naquela época o jornal da crônica romana, com a foto daquela cena!”.

Eis a entrevista.

Como tudo isso acabou, para o senhor?

Como a Gendarmeria estava ocupada com os preparativos para acolher Nixon, eles não tinham tempo para mim, e então fui levado até a Polícia de Estado italiana... Foi um episódio interessante. Eu era estudante, e meus superiores estavam um pouco preocupados. Temiam que eu não fosse obediente ao papa.

Não era verdade?

Absolutamente não. Eu professava plena obediência ao papa. As coisas correram bem. Em 1970, fui ordenado pessoalmente por Paulo VI. Foi o primeiro episódio do gênero: o papa quis fazer, junto com seu vigário, a ordenação de 80 clérigos de todo o mundo que estudavam em Roma. Meus superiores pensaram que a melhor maneira de mostrar que eu amava o papa era que eu fosse ordenado pelo papa. Aliás, naquele período, meu pai, que era médico e fazia o serviço de cirurgia no Vaticano, havia operado Paulo VI...

Não era a primeira vez que o senhor participava de tais iniciativas?

Antes de entrar na Companhia de Jesus, eu havia me inscrito na Faculdade de Arquitetura em Roma, em Valle Giulia. Lá, anos antes da famosa revolta de 1º de março de 1968, em 1957-1958, fizemos uma ocupação para contestar a política do setor imobiliário e dos palazzinari [empreiteiros] romanos. Naquela época, dominava a política de uma direita católica que era pouco sensível à escolha de civilização de impedir a urbanização selvagem. Precisamente naqueles anos, no entanto, o abade de São Paulo, Pe. Giovanni Franzoni, publicou La terra è di Dio [A terra é de Deus], uma carta pastoral cujo significado é que, justamente, a Terra é de Deus, não dos pallazzinari, um texto que lhe causou uma censura muito forte.

Nós, estudantes de diversas sensibilidades políticas, nos coordenamos com uma iniciativa que superava essas diversidades. Foi uma experiência muito singular, muito significativa, que, em certo sentido, antecipou os tempos da centro-esquerda. Mais tarde, eu abandonei a Arquitetura. Entrei na Companhia de Jesus entre 1958 e 1959. Estudei Filosofia na Gregoriana, depois fui a Pisa para estudar Letras. Também naquele caso fizemos uma ocupação da Sapienza de Pisa. Eu já era um estudante jesuíta, mas não padre, e servi um pouco de mediador entre católicos e comunistas. Mais tarde, voltei a Roma para obter a licenciatura em Teologia.

Também na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde ainda hoje se conta que o senhor fez parte de um sit-in de protesto muito representativo de 1968...

Era 1971. O padre Josef Fuchs, que ensinava Teologia Moral e fazia parte da comissão teológica que o Papa Paulo VI consultou antes de escrever a Humanae vitae, favorecia dentro da Gregoriana a possibilidade de que os estudantes pudessem ter palavra e expressão. Fui eleito representante. Começamos, com os representantes dos colégios pontifícios, a fazer encontros para encorajar os nossos professores a implementar aquilo que o Concílio havia proposto, a abertura pastoral, levando em conta as culturas diversas dos jovens que vinham estudar em Roma. A ocasião mais surpreendente foi uma assembleia em 1971, durante a qual os estudantes e, em particular, os seminaristas e os jovens padres da América Latina contestavam algumas propostas que eram feitas pela Pontifícia Universidade Gregoriana, questões mais práticas, como o aumento das taxas universitárias ou a dificuldade que esses estudantes sentiam ao conjugar a proposta teológica teórica da Gregoriana com as realidades que emergiam na América Latina, também no rastro da teologia da libertação.

Depois, houve a assembleia, e esses estudantes decidiram fazer um sit-in no pórtico interno que serve de ingresso para a universidade. Foi uma ocasião bastante singular. Estava cheio de seminaristas e jovens padres sentados no chão. O episódio pôs em crise o reitor da época. Era incomum que, em uma pontifícia universidade, pudesse haver um protesto que tinha um pouco o sabor do 1968 secular. Houve um pouco de preocupação com a repercussão da história, que acabou nos jornais... Eu me tornei um pouco alvo de alguns professores, mas meus superiores me defenderam, porque não tinha sido eu quem decidiu o sit-in. Eu era o representante dos estudantes e tive que constatar que havia essa vontade, não dei o aval a ela, nem tinha a autoridade para negá-la.

Que tempos eram para um jovem sacerdote?

A Igreja estava em grande fermentação. Depois dos anos 1970, nasceu o movimento dos “Cristãos pelo Socialismo”, o “Movimento 7 de Novembro”. Eu fui enviado para trabalhar em Florença, no rastro de Ernesto Balducci, me vi fazendo experiências muito bonitas com a comunidade do Isolotto do Pe. Mazzi, que, infelizmente, foi censurado pelo cardeal Florit, que não concordava com essa fermentação que a Igreja de base florentina expressava. Em todo o caso, foi uma bela estação.

Em Florença, havia o Pe. Lorenzo Milani...

A presença do Pe. Milani era sentida. Sentia-se especialmente seu catecismo. O Pe. Milani desenhava e escrevia com as crianças. As experiências pastorais, a carta à professora, sua experiência em Barbiana e, depois, seu catecismo em Calenzano são coisas que se desenvolveram e permanecem ainda hoje e ainda incidem, não só em ambiente secular, onde o Pe. Milani é muito citado, mas também na Igreja florentina. Marcou um momento de renovação não indiferente. E eu tentei viver uma catequese muito inspirada no seu método, que colocava mais o Evangelho do que o catecismo no centro. (Pe. Valletti para e reúne as ideias.) São pequenos episódios que o tempo, talvez, apague, mas não apaga aqueles riachos subterrâneos que voltam a sair: o desejo da base de se expressar, o desejo do povo cristão de ter voz, todas realidades que depois do Concílio levaram muitos anos para se afirmar, mas hoje, talvez, estejamos na fase mais bonita da Igreja. Muitos podem falar, podem se expressar, a Igreja sinodal está vivendo um momento profícuo.

Graças ao Papa Francisco?

Graças à maturidade de muitos bispos, de muitas Igrejas locais que estão dando ao laicato a justa responsabilidade e consciência.

Que avaliação o senhor faz de 1968? Para alguns, foi uma promessa traída.

Eu acho que 1968, antes de ser um momento político, foi um momento cultural, porque a ampliação do conhecimento, o modo de ler a realidade, o modo de abordar o mundo dos pobres, o combate aos impulsos autoritários são todos fatores que significaram um progresso cultural antes que político. Depois, é claro, alguns protestam, porque não houve um impulso revolucionário ou porque foi um período de anarquia. Mas, ao ler aquela conjuntura de modo historicamente inteligente, eu acho que se deve reconhecer que ela representou uma reviravolta, uma virada de significado antiautoritário e anticelebrativo, que, no mundo operário ou no mundo escolar, deu voz ao povo, aos últimos, àqueles que nunca tiveram a oportunidade de se expressar e, acima de tudo, de decidir. Só posso dizer que foi um período importante. Infelizmente, como todos os movimentos inovadores provocam uma reação, o de 1968 provocou uma reação muito forte, penso em 1977, no assassinato de Moro...

Os episódios de reação existiram, mas o movimento do espírito não pode ser parado. E, certamente, como todas as situações conflitantes, eles podem trazer sofrimento, mas, ao mesmo tempo, podem significar progresso e desenvolvimento. Todo conflito é fruto de movimento, ou de reação ou de crescimento. Na minha opinião, 1968 levantou a consciência de muitas pessoas e as tornou capazes de pensar e de assumir a própria responsabilidade. Demo-nos conta de que a ignorância não recompensa: a necessidade da escola, da educação, do pensamento, da comunicação são todas conquistas de cultura e de civilização, e isso, embora provoque sofrimento e reação, também significa crescimento. Não acho, porém, que o passado seja melhor do que o presente. Estou mais interessado em ver o que é positivo no presente e pode se desenvolver no futuro. Os sinais existem.

Uma personalidade que conheceu 1968 a partir de dentro como Goffredo Fofi admira aqueles católicos que, de formas diferentes, foram, na opinião dele, o melhor produto da época: “Eu acredito – escreveu ele – que o melhor veio de certas minorias católicas, que tomaram muito de 1968, mas que traduziram suas reivindicações nas práticas de organização e defesa daqueles que vivem nas margens”...

O movimento das comunidades de base foi e ainda é interessante. Hoje não são mais fenômenos excepcionais. Eu tive a sorte de viajar pela Itália nesses anos e posso dizer que, no silêncio e na discrição, existem muitos grupos, paróquias, movimentos, jovens de grande valor. A máquina da Igreja é muito lenta, mas há experiências muito significativas que refletem a história daqueles anos, uma maior consciência, uma vida sacramental menos celebrativa e mais responsiva à comunidade, uma leitura atenta da Palavra de Deus. É preciso ter a paciência de buscar os melhores brotos.

* * *

Durante sua vida, o Pe. Valletti fez atividade pastoral em Florença, mas também em Follonica e Bolonha, onde fundou o Centro Poggeschi, ensinou Letras na escola pública, ocupou-se da educação de adultos, fez assistência na prisão e muito mais. Ele continua percorrendo a Itália, mas está sediado em Scampia.

Desde setembro de 2001, ele anima o Projeto Scampia e deu vida ao Centro Hurtado, que une uma associação de voluntariado, uma entidade de formação e uma cooperativa social para ajudar os jovens da parte mais problemática de Nápoles a construir um futuro. Ele escreve na revista Presbyteri da Congregação de Jesus Sacerdote (Padre Venturini) e recentemente publicou o livro Un gesuita a Scampia (Ed. EDB).

O bairro de Gomorra, o livro de Roberto Saviano, o filme de Matteo Garrone e a série de televisão bem-sucedida, uma praça de tráfico nacional e internacional, mas também um lugar de resistência humana. Ano após ano, cresceu uma rede de associações que deu origem a um laboratório de alfaiataria e uma biblioteca, a uma orquestra infantil e a projetos contra o abandono escolar, a um café literário e a cursos de formação profissional, a atividades artísticas e esportivas, a um portal da internet.

Porque, como defende o Pe. Valletti no livro, “também em Scampia se pode sonhar, pode-se tentar viver juntos na legalidade e na liberdade”. Palavra de um jesuíta que levou para Scampia o Evangelho e uma pitada de 1968.

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