“Correção filial” a Francisco é marcada por hipocrisia evidente e acusações risíveis

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29 Setembro 2017

Escritor inglês, recorda que “a hipocrisia pode se voltar àquele que a pratica". Em 2012, durante o pontificado de Bento XVI, o Rorate Caeli postou uma longa citação extraída de São Pio X com o objetivo de instruir todos os leitores a obedecerem ao papa. O título dizia: Amem o Papa! – sem “ses” e sem “poréns”.

O artigo é de Stephen Walford, publicado por National Catholic Reporter, 28-09-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Ele transcreve o texto publicado pelo sítio conservador acima referido:

Portanto, quando amamos o Papa, não há discussões concernentes ao que ele ordena ou exige, ou sobre até que ponde a obediência deve ir, e em que coisas ele deve ser obedecido (...) nós não limitamos o campo em que ele poderia e deve exercer a sua autoridade; nós não pomos sobre a autoridade do Papa aquela das demais pessoas, por mais instruídas que sejam, que divergem do Papa, que, por mais instruídas que sejam, não são santas, porque quem for santo não pode divergir do Papa”.

Stephen Walford é escritor católico inglês, formado pela Universidade de Bristol e autor de dois livros: “Heralds of the Second Coming: Our Lady, the Divine Mercy, and the Popes of the Marian Era from Blessed Pius IX to Benedict XVI” (Angelico Press) e “Communion of Saints: The Unity of Divine Love in the Mystical Body of Christ” (Angelico Press). Atualmente trabalha em um livro sobre Amoris Laetitia.


Eis o artigo.

A notícia que o blog tradicionalista Rorate Caeli havia chamado, no dia 19 de agosto, de “inacreditável” acabou em nada praticamente. Não era sequer a “correção formal” do Cardeal Raymond Burke, mas uma “correção filial” por uma minoria com grande simpatia pela Fraternidade de São Pio X.

Falo de uma carta, de 25 páginas, emitida em 24 de setembro, em que algumas dúzias de católicos dizem que o Papa Francisco cometera uma heresia, apontando para os ensinamentos sobre a família trazidos presentes na exortação apostólica de 2016, Amoris Laetitia (A Alegria do Amor).

É difícil decidir por onde começar aqui: pela hipocrisia ou pelas acusações risíveis de heresia contra o Santo Padre. Começarei pela hipocrisia.

O mais evidente – e comicamente irônico, considerando a famosa nota 351 de Amoris Laetitia – é a omissão deliberada, na nota de rodapé número 21 da carta, de uma citação fundamental extraída de Pastor Aeternus, a Constituição Dogmática sobre a Igreja do Concílio Vaticano I.

Os autores da carta citam diretamente a passagem, porém omitem este trecho:

“E esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos”.

Agora devemos nos perguntar: Por que eles omitiram esta parte? Simplesmente porque, para incluí-la, teriam destruído, em um lance apenas, toda a premissa de heresia contra o papa. Não dá para acreditar que os autores da missiva acharam que ninguém perceberia tal omissão. Será que eles estão em condição, seriamente, acusar o papa de “omissões” depois disso?

Mas é claro que Pastor Aeternus estava somente repetindo aquilo que o Papa Inocêncio III havia proclamado na carta apostólica Sedis Primatus: “O Senhor claramente intima aos sucessores de Pedro a jamais se desviarem da fé católica, mas, em vez disso, irão sempre recordar aos outros e fortalecer os que hesitam”.

Os que hesitam, neste caso, são os dissidentes. Eles dizem que aderem à doutrina da infalibilidade papal, no entanto sentem-se felizes em rejeitar o ensinamento de uma variedade de papas relativos à autoridade do magistério ordinário não infalível.

Podemos invocar o ensinamento de São João Paulo II sobre o “carisma da assistência especial” do Espírito Santo que protege os papas de errarem em matéria de fé e moral para o “exercício completo do magistério”.

E o que dizer do Beato Pio IX, quem, em 1846, afirmou que “esta autoridade julga infalivelmente todas as disputas concernentes a matéria de fé e moral”, ou Pio XII, que disse, em Humani Generis, que o magistério papal “deva ser para qualquer teólogo a norma próxima e universal de verdade em matéria de fé e de moral”.

Pio XII acrescentou: “Nem se deve crer que os ensinamentos das Encíclicas não exijam per se o assentimento, sob o pretexto de que os Pontífices não exercem nelas o poder de seu Supremo Magistério. Tais ensinamentos fazem parte do magistério ordinário, para o qual também valem as palavras: ‘Quem vos ouve, a mim ouve’ (Lc 10,16)”.

Então eu pergunto os signatários: Quem ouve o Papa Francisco também ouve a Jesus?

Ou, para reformular a pergunta: Por que estes signatários estão – e incluo os cardeais das “dubia” – rejeitando o claro ensinamento que não só os papas estão protegidos de errar em fé e moral (independentemente de isto ser definido ou não como infalivelmente proclamado), mas que todos os atos do magistério derivam de Cristo (cf. Donum Veritatis)?

A hipocrisia continua. Eles acusam o Papa Francisco de estar sendo influenciado por Martinho Lutero, e no entanto a própria rejeição deles do magistério papal ordinário em sua totalidade – portanto pegando e escolhendo o que aceitar através da própria “sabedoria” e “autoridade” deles – não é outra coisa senão um protestantismo nu. De novo, a ironia está aí para todos ver, vindo dos defensores da fé!

Um outro exemplo gritante de hipocrisia vem na forma da afirmação feita por eles de que não procuram julgar a culpa do Papa Francisco em ele sustentar “direta ou indiretamente (...) proposições falsas ou heréticas”. Todavia, eles fazem o mesmo para as pessoas em uniões irregulares? Não. Para eles, é um adultério impenitente e estas pessoas são todas pecadores mortais.


Acusações baseadas numa fantasia

Se nos voltarmos às acusações factuais dirigidas ao Papa Francisco, veremos que há um elemento incriminador imediatamente percebível: nenhuma delas contém citações de Amoris Laetitia. Todas as sete baseiam-se numa fantasia, como se os signatários tivessem parido em conjunto um texto paralelo.

Entretanto, na essência trata-se de mentiras e, honestamente, mentiras vergonhosas. É de se perguntar se existe o desejo genuíno de buscar a verdade contida neste documento magisterial, quando teólogos e estudiosos não conseguem notar quais são as rejeições óbvias das heresias que os autores da carta dizem ver.

Peguemos, por exemplo, a primeira acusação feita por eles, baseada no ensinamento do Concílio de Trento, segundo o qual Deus sempre dá a graça necessária para manter os mandamentos. Este fato eles acham que o papa tem negado.

Se realmente lerem, com cuidado, Amoris Laetitia, encontrarão isto: “Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção, que se pode viver com a força da graça” (Amoris, parág. 295). Nenhuma heresia nem negação de Trento, portanto. Tenhamos também em mente que a esta altura no texto o papa está promovendo a “lei da gradualidade” do Papa João Paulo II.

As segunda e terceira acusações são basicamente o mesmo. Insinuam que o papa alterou o ensinamento sobre o que constitui um pecado mortal. No entanto, em lugar algum de Amoris Laetitia o Santo Padre sugere alguma coisa deste tipo. Ele fala em fatores atenuantes que podem reduzir a culpabilidade (parágrafos 301-302); quase certamente na área do pleno consentimento da vontade.

No parágrafo 297, o papa claramente adverte aqueles que ostentam o próprio estado de pecado grave objetivo. Convido os signatários a ler o que a Igreja ensina sobre a culpabilidade objetiva. A Congregação para a Doutrina da Fé afirmou que esta era aplicável a “toda desordem moral intrínseca”.

É praticamente um insulto ao Santo Padre dar espaço às quarta e quinta acusações: uma pessoa peca contra Deus ao obedecer uma proibição divina, e a consciência pode julgar que às vezes cometer atos intrinsecamente maus é uma boa opção ou mesmo algo comandado por Deus.

Aqui eu diria duas coisas: a) aos signatários, se forem fazer afirmações ridículas como estas, fazem-nas apoiando-se em algumas citações para nós outros podermos vê-las; b) o Papa Francisco enquadra o Capítulo VIII de Amoris Laetitia e as situações irregulares sempre à luz do pecado que está presente se tais atos acontecem, porém ele considera as circunstâncias atenuantes.

O seu ensinamento busca dizer a estas almas que “com a graça de Deus vocês podem seguir em frente, num novo caminho, desde que o reconhecimento do estado de pecado exista e, em segundo lugar, esteja presente um desejo de mudar, até mesmo em circunstâncias que o tornem extremamente difícil”.

A sexta acusação simplesmente tenta causar discórdia entre Amoris Laetitia e a encíclica de Joao Paulo II, publicada em 1993, Veritatis Splendor. Ela fracassa pelos motivos já mencionados. O Papa Francisco, em momento algum, permite exceções à verdade moral de que atos gravemente pecaminosos são e sempre continuarão sendo pecaminosos. De novo, os signatários não têm com tirar um trecho de Amoris Laetitia que apoie tal absurdidade.

No entanto, creio que é apropriado, aqui, lembrar os signatários o que disse o Papa Bento XVI sobre os prostitutos usarem camisinhas. Ele viu isto como um possível primeiro passo em direção a uma mudança, mesmo se permanecer o grave pecado objetivo. Isso pode ser interpretado como a “lei da gradualidade” na prática. O Papa Francisco parece compartilhar esta visão da luz da graça que pode, com paciência, tirar uma alma do erro do pecado.

A última das acusações apresentadas parece-se com várias anteriores ao alegar que a Sagrada Comunhão pode ser dada aos que não expressam contrição pela situação em que se encontram e nem um firme propósito de mudança.

De novo, simplesmente remeto às palavras do papa sobre os que ostentam o seu estado: “Obviamente, se alguém ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão”.

Infelizmente, parece que os signatários não leram esta seção do texto. O que se pode dizer sem hesitar é que, como ensina Donum Veritatis, “as decisões magisteriais em matéria de disciplina, mesmo não sendo garantidas pelo carisma da infalibilidade, não são desprovidas da assistência divina, e exigem a adesão dos fiéis”.

Então, a pergunta a que os signatários devem responder é: Vocês creditam e aderem a isso e, caso negativo, por que não?
Podemos ver que esta tentativa cínica de atribuir erros aos ensinamentos do papa não é outra coisa senão uma charada. Essa tentativa vem de um grupo que, na verdade, não confia no desejo do Espírito Santo ou na capacidade dele de guiar e proteger a Igreja.

À luz deste episódio lamentável e da angústia contínua demonstrada por tantos tradicionalistas nas mídias sociais, penso que há a necessidade de o movimento tradicionalista prestar-se a um verdadeiro exame de consciência. Se acham que este é o jeito de agradar ao Senhor, então não conhecem o Senhor.

Concluo com uma advertência final sobre como a hipocrisia pode se voltar àquele que a pratica. Em 2012, durante o pontificado de Bento XVI, o Rorati Caeli postou uma longa citação extraída de São Pio X com o objetivo de instruir todos os leitores a obedecerem ao papa. O título dizia: Amem o Papa! – sem “ses” e sem “poréns”.

Reproduzo parte da citação. Tenho certeza de que os leitores não precisarão de maiores explicações:

“Portanto, quando amamos o Papa, não há discussões concernentes ao que ele ordena ou exige, ou sobre até que ponde a obediência deve ir, e em que coisas ele deve ser obedecido (...) nós não limitamos o campo em que ele poderia e deve exercer a sua autoridade; nós não pomos sobre a autoridade do Papa aquela das demais pessoas, por mais instruídas que sejam, que divergem do Papa, que, por mais instruídas que sejam, não são santas, porque quem for santo não pode divergir do Papa”.

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