Religioso africano diz que resposta para a divisão entre muçulmanos e cristãos é a democracia

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30 Março 2017

Apesar de liderar uma diocese em uma região do norte da Nigéria conhecida como um reduto Boko Haram, o Bispo Matthew Kukah insiste que não existe uma verdadeira divisão entre muçulmanos e cristãos em seu país e que os confrontos percebidos como religiosos servem para 'encobrir' o fato de o governo não promover uma democracia genuína no país.

A entrevista é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 27-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Um dos religiosos mais experientes do mundo católico no que tange a viver lado a lado com muçulmanos insiste que não há divisão real entre cristãos e muçulmanos na África, sobretudo em seu país natal, a Nigéria. Para ele, os confrontos percebidos como religiosos indicam que um estado verdadeiramente democrático não foi construído.

“Não há um real conflito entre cristãos e muçulmanos na Nigéria, existe o encobrimento de outra coisa”, disse o bispo Matthew Kukah de Sokoto, na Nigéria, área predominantemente muçulmana no extremo norte do país que tem sido um reduto para o movimento radical Boko Haram.

“Não há nada de inevitável no que as pessoas chamam de conflito entre cristãos e muçulmanos", disse Kukah. “Acredito que seja uma construção muito popular da mídia ocidental. E também é muito popular na Nigéria, mas afirmo que, em um período de 30 anos, não há conflito real entre cristãos e muçulmanos”.

“Os mesmos muçulmanos e cristãos trabalham juntos na parte burocrática. Eles servem ao exército juntos e atuam juntos em outras áreas do governo. O que chamamos de violência entre cristãos e muçulmanos na Nigéria é na verdade o fracasso da lei e da ordem", disse ele.

Kukah falou à Crux em 24 de março, durante uma conferência sobre a Igreja africana patrocinada pelo Centro de Ética e Cultura da Universidade de Notre Dame e realizada no Centro Global Gateway da universidade, em Roma.

Apesar de liderar uma diocese pequena e ser bastante diminuto em estatura, Kukah tem uma grande presença na vida pública nigeriana. PhD pela Universidade de Londres, ele é um dos líderes religiosos mais confiáveis e admirados no país, tendo atuado em uma comissão nacional da reforma política e liderado as negociações para acabar com um conflito entre a empresa Shell e o grupo étnico Ogoni sobre as operações de petróleo no Delta do Níger.

Kukah também é presença constante na TV nigeriana e em artigos de opinião editorial de jornais locais, com uma incrível capacidade de dizer coisas que parecem provocativas no momento, mas que acabam sendo certeiras.

Questionado sobre a opinião dos africanos sobre Donald Trump, Kukah sugeriu que ele é popular entre muitos cristãos em seu país, que pensam que ele se opõe aos muçulmanos, e “rejeitado” pela maioria dos muçulmanos, pela mesma razão.

O argumento fundamental de Kukah é que se a Nigéria tivesse uma democracia real capaz de distribuir equitativamente os vastos recursos em potencial do país, aquilo que muitas vezes as pessoas consideram como conflito religioso e étnico desapareceria.

“Neste momento, o líder [do país] está dormindo no ponto, porque se tivéssemos conseguido resolver os problemas de integridade humana, empregos e famílias, segurança, e assim por diante, não estaríamos tendo essa conversa sobre supostas tensões entre muçulmanos e cristãos agora", disse ele.

Eis a entrevista.

No Ocidente, geralmente só ouvimos falar sobre interações entre cristãos e muçulmanos na Nigéria quando há violência, como o recente escândalo Boko Haram. O que não estamos sabendo?

Isso não é nem perto do que é a Nigéria. É um país extraordinário. Costumo brincar que depois do que passamos, a Nigéria é como um casamento católico: você pode até não estar feliz, mas não vai se separar!

Então quando as pessoas falam sobre as possibilidades da Nigéria, eu enxergo em uma dimensão um pouco diferente. O que tem mantido o nosso país unido? Porque ele tem todos os motivos para não estar unido, mas está.

As pessoas muitas vezes não entendem o significado disso. Temos algo que não se encontra em todo o Oriente Médio ou qualquer outro lugar no mundo, que é presença equilibrada de cristãos e muçulmanos. Isto é singular.

E junto com essa singularidade vem a dificuldade de construir com estes recursos. Quero dizer que isso acontece no contexto de um estado muito disfuncional, um estado muito complexo, com antecedentes coloniais e todas as camadas de distorções e contradições e coisas assim, assim como tentativas dos britânicos de consertar esta nação. Agora também estão começando a aparecer evidências de que na verdade os britânicos provavelmente nem sequer tinham a melhor das intenções quanto à possibilidade de unir o país.

Nós tivemos uma guerra civil, tudo bem, mas não muito diferente do que se encontra em outros países. Menos de 10 anos depois, um Ibo tornou-se o primeiro vice-presidente da Nigéria. É esta resiliência que muitas vezes falta [na forma como as pessoas falam da Nigéria].

O que significa o fato de um Ibo se tornar o primeiro vice-presidente da Nigéria?

Eles foram para a guerra, uma guerra muito difícil, contra a Nigéria. Nós lutamos uma guerra civil por quase três anos. Eles foram os vencedores. A guerra só terminou em 1970 e em 1979 um Ibo tornou-se vice-presidente da Nigéria. Esta conquista não é pequena.

No contexto dos EUA, seria como se Jefferson Davis fosse vice-presidente dos Estados Unidos logo após a guerra civil.

Exato. E olhe quanto tempo levou para algo assim acontecer.

O segundo problema decorre da ideologia do Islã e sua obsessão pelo Estado e pelo poder, bem como a natureza peculiar da história nigeriana, especialmente da comunidade muçulmana do norte da Nigéria, que detinha o poder de 1804 a 1903, quando os ingleses conquistaram o Estado.

Percepções de injustiças históricas [complicam a convivência com os cristãos], como os muçulmanos veem a narrativa sobre o que os colonos fizeram, as acusações de traição e a possibilidade de que por causa da pele clara dos missionários havia a percepção [de que o cristianismo é estrangeiro].

Essa percepção ainda existe, de que o cristianismo é apenas o braço espiritual do estado colonial. Tivemos algumas dificuldades para eliminar essas sombras. Infelizmente, o que realmente não aconteceu na Nigéria, assim como em outras partes da África, [é que] nunca tivemos um senso de urgência sobre criar coesão nacional e trabalhar com as regras constitucionais para conseguir esse resultado.

A Nigéria tornou-se independente em 1º de outubro de 1960 e ficou por cerca de 30 ou 40 desses anos sob o poder dos militares, que realizaram todos os tipos de golpes e assim por diante. Isso tudo atrasou o projeto de democracia. Se não tivéssemos tido o regime militar da Nigéria, teríamos conseguido avançar muito rapidamente para lidar com questões de integração nacional.

Esse período também prejudicou as relações entre cristãos e muçulmanos, na medida em que praticamente só a elite muçulmana do norte se beneficiou do regime militar.

Perguntei sobre as relações entre cristãos e muçulmanos e você está falando sobre o atraso no projeto de construção da democracia. Devemos explicar que isso se deve ao fato de que, na sua opinião, para superar as tensões comunais ou sectárias, seja entre cristãos e muçulmanos ou em questões étnicas e tribais, é necessário construir um Estado verdadeiramente democrático em que todos se sintam igualmente participantes.

Com certeza. Não há nada de inevitável no que as pessoas chamam de conflito entre cristãos e muçulmanos. Acredito que seja uma construção muito popular da mídia ocidental. E também é muito popular na Nigéria, mas afirmo que, em um período de 30 anos, não há conflito real entre cristãos e muçulmanos. Nunca tivemos uma crise advinda de uma igreja ou de uma mesquita. Nunca tivemos uma situação em que alguém tenha dito que não se pode ler a Bíblia ou o Alcorão.

Os mesmos muçulmanos e cristãos trabalham juntos na parte burocrática. Eles servem ao exército juntos e atuam juntos em outras áreas do governo. O que chamamos de violência entre cristãos e muçulmanos na Nigéria é na verdade o fracasso da lei e da ordem. Ao reler e analisar as histórias após estas crises, muitas vezes as pessoas estavam discutindo no mercado ou debatendo sobre limites da terra ou algo assim. Muitas das questões que levaram à violência têm muito pouco a ver com religião per se.

Posso discordar de você respeito disso? Eu e minha colega Ines San Martin fomos à Nigéria há 18 meses e um dos locais que visitamos foi a paróquia nos arredores de Abuja que foi bombardeada por Boko Haram em 2011. Encontramos cerca de 50 sobreviventes, e todos perderam membros da família. Perguntamos se eles acreditavam que se tratava de um ataque religioso e eles achavam que sim. Eles disseram: 'Eles nos bombardearam em uma igreja no dia de Natal e ganharam o crédito ao falar de sua grande vitória sobre os infiéis.’ Como isso não é religioso? Ao ouvir esse tipo de coisa, o que você diz?

Primeiro, na Nigéria não fazemos uma verdadeira investigação da cena do crime. Se você voltar a esse caso e vir o que realmente aconteceu, pode ser um pouco diferente da narrativa popular. O segurança que estava trabalhando na proteção daquela igreja [e morreu no ataque], por exemplo, era muçulmano.

A situação da Nigéria é complicada, mas como o conflito entre cristãos e muçulmanos tornou-se a alegação natural do povo e sempre que o Ocidente vê conflitos na África é por causa de tribos ou religião, entender o problema e responder às perguntas difíceis torna-se complicado.

As questões são muito maiores do que um simples embate religioso. Como diria o Cardeal [John] Onayiekan, durante 360 dias do ano nós comemoramos juntos, convivemos no mercado e nos escritórios, estamos nos mesmos partidos políticos e nada disso sugere que não podemos chegar às mesmas conclusões.

Para dar um exemplo simples, temos um presidente agora na Nigéria, o general Buhari, que tentou ser presidente por pelo menos três vezes e não conseguiu. Mas na última eleição, quando finalmente ganhou, o presidente do seu partido era um católico que até comungava.

Na verdade, conversando com o cardeal Onaiyekan, ele disse abertamente que votou em Buhari.

Eu não votei nele, porque não votei em ninguém.

Mas a questão é que a política nigeriana não necessariamente fica restrita a termos cristãos e muçulmanos.

Exatamente. Não estamos fazendo muito para destacar as realidades com que os nigerianos convivem. Reestabelecer a Nigéria, na verdade, deveria ser o projeto mais importante. “Neste momento, o líder [do país] está dormindo no ponto, porque se tivéssemos conseguido resolver os problemas de integridade humana, empregos e famílias, segurança, e assim por diante, não estaríamos tendo essa conversa sobre supostas tensões entre muçulmanos e cristãos agora.

Moro em Sokoto e vou para Sokoto com as minhas vestes especiais sempre que tenho que viajar. Chego ao aeroporto e quem carrega minhas malas são muçulmanos. Uma vez, alguém me abordou no saguão do aeroporto e me apresentou a um amigo como o Bispo Católico de Sokoto. Outro muçulmano entrou na conversa e disse: “Não, não o chame de bispo católico, ele é nosso bispo em Sokoto, também. Ao chamá-lo de 'católico', você nos elimina.”

Estas são as coisas que eu vivi pessoalmente na Nigéria. E tem muito pouco a ver com as narrativas populares sobre cristãos e muçulmanos. O sultão de Sokoto é a pessoa no mais alto escalão muçulmano [na área]. Entro na sua casa às 10h da noite e não é problema. Não preciso ser convidado para o jantar, apenas apareço. E ele fica desapontado se por volta de 23h digo que preciso ir embora. É verdade!

É um país emocionante e eu espero e rezo para que, cedo ou tarde, nós possamos virar a página e começar a falar sobre as coisas humanas ao invés de supostas tensões entre muçulmanos e cristãos.

Você está pintando uma imagem otimista, em que a raiz dos problemas é um Estado e uma democracia falhos. A situação é tão singular que não possa ser reproduzida ou há lições que a Nigéria pode oferecer ao resto do mundo?

Há lições, mas acho que ainda não chegamos lá, porque ainda precisamos nos resolver. Não é como se houvesse eletricidade no lado muçulmano e não no lado cristão, ou água corrente de um lado, mas não do outro.

Dada a incapacidade do Estado de distribuir equitativamente os recursos que são tão amplamente disponíveis, as pessoas comuns na África ainda veem a Nigéria como um problema, o que não é justo, considerando a forma como a Nigéria segurou o continente - estávamos na linha de frente da luta contra o Zika vírus, trouxemos paz a Serra Leoa e à Libéria, e assim por diante. Mas não temos conseguido ganhar o respeito condizente com a nossa contribuição, principalmente porque há muito trabalho que não fizemos. Exigimos uma liderança honesta e empenhada na construção de uma sociedade justa.

É aí que a Igreja Católica precisa apertar os cintos e fazer muito mais do que já fez, muito mais do que está fazendo.

Por exemplo?

Precisamos chegar ao ponto de partida da política. Eu não acho que devemos falar da Igreja a partir do ponto de vista de cardeais, bispos, párocos, e assim por diante. Deveríamos falar sobre a seleção de lideranças [entre os leigos]. Não fomos muito bem-sucedidos nisso. Mas hoje eu acho que há um senso de urgência nesta questão.

Muito disso também se vê na minha decisão de criar o Centro Kukah, que lida com questões de criação de políticas públicas. Tenho interesse em garantir que a voz católica seja ouvida.

Quando você criou o Centro Kukah?

Há três anos.

Ao que se dedica?

Políticas públicas, religião, fé

O legal sobre o Centro é que foi um amigo estadunidense que me disse: 'Olha, você precisa criar o centro porque você tem o poder de reunir as pessoas. Quase todos que você chamasse na Nigéria viria.' E, com humildade, estou muito contente com isso. Porque quando decidimos apresentar o projeto, convidei o então presidente Jonathan e ele compareceu presencialmente. Na verdade, é o resultado da minha experiência com a vida pública na Nigéria, tendo participado de três ou quatro iniciativas diferentes.

Foi o que me deu um sentido especial de urgência. Além disso, as portas podem estar fechadas, mas não trancadas. Há muitas coisas que se pode fazer para melhorar a qualidade das políticas públicas e também para que a voz moral da Igreja seja ouvida. Porque as pessoas levam a Igreja Católica muito, muito a sério.

Qual a opinião do africano, ou nigeriano, sobre Donald Trump?

É muito interessante. Primeiro, eu não tinha muita certeza, mas por mim tudo bem se Donald Trump ganhasse a eleição. Penso no porquê de ele ter se tornado popular na Nigéria ...

Você está dizendo que ele é popular na Nigéria?

Com certeza, com certeza, principalmente na comunidade cristã. Referindo-se à Nigéria depois de Boko Haram.

É porque eles acham que ele vai se opor aos muçulmanos?

Penso que essas são as questões. Muitas pessoas sentiram-se derrotadas e eles também sentiram que as questões morais não estavam sendo discutidas. Não espero que Donald Trump mude o mundo, mas olha só!

Em outro nível, um lado de mim realmente queria que Hillary Clinton vencesse, porque acredito que as mulheres merecem uma oportunidade justa, especialmente considerando o que estava acontecendo em outras partes do mundo onde elas conseguiram ascender ao poder. Uma mulher no Brasil foi tirada do poder, na Coréia do Sul sofreu impeachment, na Argentina saiu por sofrer processo, e assim por diante. Além disso, eu tinha uma grande admiração por Bill Clinton... mas eu não voto nos Estados Unidos.

Mas você está dizendo que em uma pesquisa entre os cristãos da Nigéria, Donald Trump se sairia muito bem?

Com certeza, com certeza.

E quanto aos seus amigos muçulmanos na Nigéria?

Eu acho que os muçulmanos não gostam nem um pouco dele, por razões óbvias.

Se não fosse pela maneira como os nigerianos [cristãos] sentem sobre Boko Haram, o terrorismo global e tudo isso, eu pessoalmente não gostaria muito de Donald Trump a nível social, em termos de lidar com as questões sociais, como refugiados - sou contra tudo o que Trump apoia. Então, acho que é uma questão de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Entendo a frustração que levou as pessoas a essa posição.

Não há um real conflito entre cristãos e muçulmanos na Nigéria. Isso encoberta outras coisas.

Mas ao ouvi-lo, parece que Trump é bastante popular entre os cristãos, mas é rejeitado pelos muçulmanos. Parece que há uma certa divisão aí...

Não é 8 ou 80. As divisões existem, mas isso depende de instrumentalizá-la ou não.

Vou dar um exemplo muito bom. Nosso ex-presidente, [Olusegun] Obasanjo, contou uma história muito interessante. A Nigéria estava jogando na Copa do Mundo. Sempre que a Nigéria não ia tão bem, a torcida usava um desses apelos cristãos para Jesus e, de alguma forma, funcionava. Então um dia eles usaram uma dessas canções: 'Jesus nos dê um gol!' ou algo assim. Eles marcaram um gol e todos explodiram em comemoração.

O presidente do time, que é muçulmano, começou a comemorar. Obasanjo, disse, brincando: 'Este gol foi marcado em nome de Jesus, por que você está comemorando?' E o cara disse: 'Olha, depois do gol, somos todos cristãos!'

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