13 Setembro 2016
Declarada ameaça global, a zika ainda respeita algumas linhas dentro do Brasil – as da distância geográfica e as do preconceito, por exemplo. “Como o epicentro da doença é no sertão nordestino, não damos a ela o destaque devido”, diz a antropóloga Debora Diniz, autora de livro sobre a epidemia. Ela própria vítima da zika, a professora da UnB alerta para a chegada da segunda geração de crianças afetadas. “Se alcançarem os grandes centros, talvez atentemos a elas. A proximidade da dor nos fará reconhecer a tragédia em curso”.
A entrevista é de Mônica Manir, publicada por O Estado de S. Paulo, 11-09-2016.
Durou um dia só. Debora Diniz estava em Alagoas, seu Estado natal, quando percebeu manchas no próprio rosto e na barriga. A coisa evoluiu para dor nas articulações, conjuntivite e uma ânsia danada, que a fez vomitar. Aquilo tinha cheiro de zika. E era. A antropóloga de 46 anos, que pesquisava sobre a contaminação do vírus para um documentário, sentiu na pele e nas dobras do seu corpo o efeito de uma ameaça que a OMS declarou (e redeclarou) global.
Ameaça global porque em contínua expansão pelo mundo. E porque associada a uma doença simplificada na palavra “microcefalia”, mas que está mais para uma síndrome, que já afetou 1.845 bebês brasileiros. Tão complexa é a doença que várias perguntas sobre a zika continuam atormentando cérebros e corações. Bebês que não nasceram com microcefalia, mas que carregam o vírus consigo, podem desenvolver a doença mais pra frente? Mulheres podem passar o vírus para parceiros e parceiras pela relação sexual? Por que o Alto Sertão do Nordeste concentra os casos da síndrome no País?
O documentário de Debora, feito na cidade paraibana de Campina Grande e chamado simplesmente de Zika, foi debatido em abril na Universidade de Yale, nos EUA. Impactada com o que viu e sentiu, ela foi adiante e escreveu um livro, Zika, do Sertão Nordestino à Ameaça Global, lançado no último dia de agosto pela Civilização Brasileira, em Brasília. Em quase 200 páginas, a também professora da UnB e da Fundação Oswaldo Cruz escarafunchou relatórios, documentos e vidas severinas para mostrar como a ciência da zika foi peculiar no Brasil.
Debora trouxe à luz desigualdades regionais contrapondo médicos à beira do leito e cientistas de laboratório. Mas também levantou uma enormidade de mulheres que se vê desesperada entre um breve dia de incômodo e o destino de eterna cuidadora. “E vem por aí a segunda geração, com fetos já diagnosticados”, alerta a antropóloga. A diferença é que as gestantes estão escondendo dos médicos os sintomas que tiveram, numa espécie de autonegação. “A felicidade do pré-natal desapareceu do Sertão nordestino”, completa Debora. Pensando no risco para a saúde psíquica dessas mulheres, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, encaminhou nessa semana ao STF parecer favorável ao aborto em casos de grávidas contaminadas pelos vírus. A Igreja e algumas entidades civis se posicionaram contra o aval.
A seguir, a entrevista com a antropóloga, feita em duas etapas, uma delas quando Debora participava de um encontro em Sauípe, na Bahia, com 1.800 mulheres. Ele estava previsto para abril, mas foi adiado por precaução contra a zika.
Eis a entrevista.
Seu livro conta a história da zika a partir do Nordeste. Por que essa opção?
Porque, embora falemos de uma ameaça global, essa é uma história que teve sua gênese e permanência nos exemplos escondidos do Nordeste. A zika entrou no Brasil pelo Rio Grande do Norte, provavelmente durante a Copa. Depois houve a descoberta da epidemia de microcefalia. Tanto o anúncio da circulação da doença como o da sua relação com a microcefalia foram descobertas feitas por médicos de beira de leito e cientistas locais. E, exceto pela grávida italiana que contraiu a doença quando morou em Natal, e cuja identidade revelo no livro, todas as pacientes são mulheres nordestinas.
A sua origem nordestina a aproximou das suas fontes?
Nasci em Maceió, mas morei só um ano lá. E morei em Recife por uns seis anos, até que minha família foi para o Rio. Mas tive todas as férias da minha vida na casa dos meus avós em Alagoas. De qualquer forma, para as mulheres que entrevistei, talvez eu nunca tenha sido uma nordestina. Pela ausência de sotaque, e também pelo mundo de onde eu vinha. Falar de Brasília é falar de um centro de poder. E essas cidades do sertão são frágeis, vivem sob a herança do coronelismo. Então essas mulheres me ajudaram a saber o lugar da criança e o lugar dos médicos nessa estratificação simbólica do cuidar. Elas me ajudaram a domesticar meus cacoetes urbanos. Vi nisso um exercício de escuta.
Você também revelou as disputas por crédito na descoberta da doença e da relação dela com a microcefalia. Como chegou a esses bastidores?
Uma das ambições deste livro foi usar o tempo todo uma técnica básica do jornalismo: a triangulação da informação. Quando um dizia “Fui o primeiro a descobrir”, eu pedia os pareceres para ver as datas; quando o outro afirmava “Fui o primeiro a publicar”, eu perguntava “Onde estão as comunicações com quem você trabalhava?”. Então, no capítulo que trata das descobertas da zika, falo em “escândalo científico” que envolve Paraná e Bahia. A Bahia é a primeira a anunciar a descoberta do vírus, em 29 de abril de 2015. Dr. Gúbio Soares Santos o faz tendo sete amostras de sangue de doentes de Camaçari, porém não entrega todas, por achar que seria passado para trás pelo Ministério da Saúde. Mas então o Paraná refaz o teste com um teste específico e é o primeiro a publicar, porque têm acesso aos periódicos acadêmicos. O Instituto Carlos Chagas, no Paraná, é um dos maiores laboratórios da Fiocruz no Brasil. Eis a primeira disputa.
A segunda é entre Campina Grande e Pará.
Sim, porque o Pará tem o Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde. O enredo é o mesmo. A Drª. Adriana Melo, especialista em medicina fetal da Paraíba, que tinha avaliado o líquido amniótico de duas mulheres, vai à imprensa antes de ir à comunicação científica porque acredita que Pernambuco já sabia da relação entre zika e microcefalia, mas ninguém havia contado isso a ela. No entanto, assim como ocorreu com o Dr. Gúbio, quando o Pará anuncia a informação, a Drª. Adriana não vai receber crédito nenhum. O depoimento dos dois é quase de arrependimento: “Fizemos uma descoberta, mas não fomos reconhecidos”.
Você foi a única brasileira a assinar uma carta de pesquisadores à OMS solicitando o cancelamento da Olimpíada no Rio. Por que fez isso?
Pela absoluta convicção de que falamos de uma doença que tem a forma sexual de transmissão já comprovada. Esse estrangeiro poderia vir ao País e infectar a sua companheira quando voltasse. A zika é uma DST com um vetor voador. Além disso, como está muito associada à pobreza e ao Aedes, não se toca na moral sexual. O governo brasileiro não alterou sua política de saúde sexual com a epidemia. Não incluiu o repelente, não alterou os métodos de planejamento familiar. Só que, quando escrevi o fim do filme, em fevereiro, eram 40 mulheres infectadas em Campina Grande. Quando terminei o livro, eram 60. Hoje são 120. Triplicou.
É a segunda geração?
Sim. As mulheres já estão grávidas e com diagnóstico de síndrome nos fetos. Mas antes de a imagem aparecer elas escondem o adoecimento por zika. É o que ocorre hoje no ambulatório da Drª. Adriana, que é de referência. A gestante é encaminhada a ela, mas quando chega lá nega ter tido os sintomas. Diz que foi uma doença parecida com zika.
Elas estão com medo do diagnóstico?
Claro, o diagnóstico é uma sentença. Não temos interrupção de gestação, não temos tratamento, não temos cura. A felicidade do pré-natal desapareceu na terra da zika. “Eu não vou falar disso porque não vai acontecer comigo!” Eu me pergunto como a ciência está tratando esse dado. O critério de ter tido sintomas de zika é fundamental na questão da microcefalia. Quase todas as mulheres com filhos afetados tiveram sintomas. Pode ser que nelas a doença tenha sido mais grave? Não sabemos. E saberemos menos ainda, se elas começarem a mentir ou esconder.
É importante insistir que se trata de uma síndrome, e não só de microcefalia?
É importantíssimo destacar isso porque há estudos recentes mostrando que crianças que não foram sequer notificadas nesse primeiro ano foram afetadas. Não tinham o perímetro cefálico menor que o regular, mas tinham calcificações. Isso qualifica a compreensão pública.
A epidemia terá o mesmo pico de 2015?
O pico não será tão gigantesco porque existe sazonalidade do mosquito e uma alternância da tríplice epidemia (dengue, zika e chikungunya). E 2016 é o ano da chikungunya. A zika talvez volte no ano que vem. Mas ainda não sabemos se toda a população foi afetada porque não sabemos a taxa de ataque. Como o mosquito vai migrando, ele pega regiões livres da doença. Há também as mulheres da primeira geração que podem se ver grávidas novamente. Adianta perguntar se estão de novo em risco? O ambulatório dirá “Não sei”.
O mesmo vírus, aquele que ela carrega, pode atuar numa segunda gestação?
Não sabemos, mas sabemos que o vírus continua atuando na criança mesmo depois do nascimento. Há destruição neuronal. Isso é muito angustiante para uma mulher. Quando me perguntam qual o risco de o aborto ilegal crescer com a epidemia, meu maior medo é quanto às mulheres dessa primeira geração. São cuidadoras integrais de um bebê e existe todo um drama existencial. Elas podem dizer pra si mesmas: “Eu não consigo levar isso adiante”.
A zika ficou apagada do noticiário na Olimpíada e no impeachment. Agora há a Paralimpíada e as eleições. Quando a doença ganhará o destaque devido?
Quanto mais fronteiras ela ultrapassar, quanto mais for identificada em outros países, mais esse movimento externo romperá o nosso silêncio e provocará o agendamento devido por aqui. Ou se a segunda geração de crianças afetadas alcançar os centros urbanos, se chegar a nós. Parece que precisamos da proximidade da dor para reconhecer que há uma tragédia humanitária em curso. Quem está no epicentro hoje? Nordestinos de pouca escolaridade, eles mesmos agricultores ou filhos de agricultores. Não estamos falando de nordestinos das capitais. Falamos do Alto Sertão. Eles existem no nosso regime de convivência? Só se for no das empregadas domésticas. Como a gente conhece a história deles? Como migrantes. Ainda.
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As fronteiras da zika: 'Só atentaremos à epidemia quando chegar a grandes centros', diz antropóloga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU