16 Agosto 2012
“O  direito de resistir ao Direito deve ser analisado, então, em torno de  questionamentos fundamentais: em que casos seria legítimo desobedecer às  leis? Dentro de quais limites? E, principalmente, por parte de quem?”, pergunta a advogada.
Confira a entrevista. 
A expressão “direito de resistir ao Direito”  se relaciona com o conceito “direito de resistência” e deve ser  aplicada diante dos limites do exercício dos direitos, especialmente  quando se trata de “violação de direitos humanos, sob a égide do Estado  Democrático de Direito no Brasil”, assinala a pesquisadora Natália Castilho à IHU On-Line. 
Mestranda em Direito Público, Natália explica que o direito de resistir reflete uma “forma de compreensão das  complexas dimensões que envolvem a lutas por direitos humanos  organizadas por movimentos sociais populares”. Em sua avaliação, um dos  temas que mais desafia o direito de resistência é a moradia urbana, que  está relacionada com diversos problemas sociais, como “a concentração de  terras e a distribuição exclusivista e desigual do espaço urbano”. 
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Natália menciona o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro,  que reúne dados do número de famílias que já tiveram suas terras  desapropriadas para viabilizar a construção de novos estádios e  empreendimentos por causa dos megaeventos a serem realizados no país.  “Constata-se que o início das intervenções na direção desses projetos  permite afirmar que a cidade avança em sentido oposto ao da integração  social e da promoção da dignidade humana. (...) Para além das remoções,  estão em curso transformações mais profundas na dinâmica urbana das  cidades, envolvendo, de um lado, novos processos de elitização e  mercantilização da cidade, e, de outro, novos padrões de relação entre o  Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das  esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções  autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de  exceção”, aponta.
Natália Castilho abordará o tema desta entrevista na tarde de hoje, na palestra “Direito de resistência”: a luta social pelo direito à moradia urbana, que será ministrada às 17h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Natália Castilho é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos  Sinos – Unisinos, e graduada em Direito pela Universidade Federal do  Ceará – UFC. Participa do Núcleo de Direitos Humanos da Unisnos e do  Grupo de Estudos em Teorias Críticas do Direito na América Latina, da  UFC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como compreender o "direito de resistência"?
 
Natália Castilho – O “direito de resistir ao Direito” trata-se de uma expressão que se  relaciona ao conceito de direito de resistência. Refere-se a uma análise  das possibilidades e dos limites de exercício desse direito, nos casos  de extrema violação de direitos humanos, sob a égide do Estado  Democrático de Direito no Brasil. Apesar de a pesquisa ter sido  realizada diante de um caso concreto específico, o conflito fundiário  estudado infelizmente representa a realidade de violações ao direito à  cidade e à moradia nos grandes centros do Brasil, nos quais a intensa  especulação imobiliária, a moradia precária e as políticas de higienização social do espaço urbano engrossam o número de sem-teto, ano após ano.
As possibilidades de afirmação do direito de resistir ao Direito estão relacionadas ao contexto social e político em que se insere o  sistema jurídico brasileiro. Emergem, assim, os altos índices de  desigualdade social, bem como o número de pessoas sem-terra, sem-teto,  etc. As análises jurídicas feitas no trabalho, em relação ao fenômeno da  resistência, nascem da confrontação dessa realidade com o conjunto de  direitos humanos sustentados na Constituição Federal, mais  especificamente do acesso a terra e à moradia. O estudo do caso concreto  proporciona a reflexão acerca das contradições do Judiciário brasileiro  frente às violações de direitos humanos (e aos interesses econômicos  frequentemente envolvidos), o que enseja um olhar mais profundo e  crítico em relação ao fenômeno da resistência protagonizado pelas  vítimas dessas violações em tais casos.
A partir desse lugar,  seria possível começar a falar de tal concepção do direito de  resistência – o que requer uma readequação de seu significado histórico  liberal. Essa possibilidade pôde ser concebida neste trabalho como uma  forma de atuação legítima de certos sujeitos coletivos, os movimentos  sociais populares, que em sua práxis conectam a luta por direitos  humanos à efetivação da democracia e da pluralidade política,  princípios que fundamentam o regime constitucional. Na maioria dos  graves e históricos conflitos sociais relacionados à luta por direitos  humanos no Brasil é possível a utilização desse “conceito”. Isso se dá  exatamente porque neste contexto de privações de direitos e de  consolidação de um sistema jurídico-político reprodutor e mantenedor de  opressões e desigualdades, a resistência mostra-se como último recurso,  tanto como meio de pressão para a urgência na efetivação dos direitos  básicos desses sujeitos quanto para a proposição de uma prática política  orientada para a participação direta e popular no processo de  construção do sentido dos direitos humanos na sociedade. 
O direito de resistir
O  direito de resistir nessas bases serviria, então, como uma forma de  compreensão das complexas dimensões que envolvem a lutas por direitos  humanos organizadas por movimentos sociais populares. A luta da  comunidade Raízes da Praia, protagonizada pelo MCP, movimento que  atua na cidade de Fortaleza-CE, foi analisada, dentre outros motivos,  porque representou um longo processo de organização e resistência  popular frente não só a determinadas decisões judiciais no decorrer do  processo movido pelo grupo econômico (antigo proprietário do terreno),  mas também às tentativas de despejo ilegal protagonizadas por uma milícia privada, composta inclusive por policiais militares, contratada pelo proprietário. 
O  processo de resistência resultou na desapropriação de um dos lotes do  terreno pelo poder público municipal, o que representou uma vitória para  a concretização do direito à moradia daquelas pessoas frente ao alegado  direito de propriedade exercido em um terreno que se encontrava  abandonado há 25 anos, em uma área de intensa especulação imobiliária da  cidade. Um dos elementos revelados na pesquisa, por meio de entrevistas  e da observação participante, foi o de que a continuidade da  resistência não teria sido possível se aquelas pessoas não estivessem  organizadas no movimento popular.
Nesse sentido, o exercício do direito de resistência,  nos casos e situações descritas no estudo, relaciona-se com a  capacidade de articulação e organização popular. Mais ainda, está  diretamente ligado ao nível de conscientização política e social dos sujeitos daquele processo de luta. O engajamento naquele processo  de resistência, como apontou a pesquisa, significou um crescimento  político e intelectual para alguns, além de representar uma forma de  aquisição de cidadania. A resistência representou igualmente a  construção do significado do direito à moradia, que passou a adquirir  uma dimensão maior e mais profunda do que o sonho individual da casa  própria. A organização e a participação política proporcionaram a  construção de uma dimensão desse direito que envolve a luta pelo  bem-viver de uma comunidade, pela permanência no lugar de onde vieram  seus ancestrais e pela condição de moradia que priorize as instâncias de  organização comunitárias, o que extrapola até mesmo a interpretação  constitucional desse direito. Na disputa de concepções e discursos  efetuada no ambiente de pluralidade política, verifica-se a necessidade  de fortalecimento dos movimentos sociais populares como espaços  fundamentais à construção democrática e plural da cidadania e do próprio  sentido dos direitos humanos.
IHU On-Line – Em que consiste o "direito de resistir ao Direito"? Qual é o embasamento, a fundamentação dessa resistência?
Natália Castilho – É a história da formação do Estado e do conceito de Estado de Direito  que elabora os aportes para o conceito de direito de resistir ao  Direito, entendido o “Direito” como ordem legal. Historicamente, as  reflexões em torno da existência de um direito a resistir ao Estado, em  termos gerais, associam-se às condições de legitimidade do governante  quanto aos seus atos políticos e jurídicos. Assim, questiona-se sobre a  “qualidade” do ordenamento jurídico, se é ou não justo. Nesse sentido,  as origens da fundamentação do Estado, principalmente em relação ao  contrato social e à origem do poder político, são fundamentais para  contextualizar o estudo do fenômeno da resistência e da desobediência às  leis. O direito de resistir ao Direito deve ser analisado, então, em  torno de questionamentos fundamentais: em que casos seria legítimo  desobedecer às leis? Dentro de quais limites? E, principalmente, por  parte de quem?
A evolução histórica do direito de resistência para o Direito Constitucional é um elemento importante a ser analisado, tendo em vista o processo de  constitucionalização do Estado, fruto das revoluções sociais ocorridas  nos séculos XVIII e XIX. A resistência a governos autoritários e  injustos é inserida no bojo do constitucionalismo moderno. Entretanto,  nos últimos duzentos anos, o direito de resistência foi perdendo espaço  na maioria parte das Constituições modernas. 
Por outro lado, a  busca por uma delimitação desse direito – ou mesmo a investigação em  torno das possibilidades de sua existência ou não, seja ligado a uma  ideia de direito positivo ou ao estabelecimento de uma noção de  legitimidade política e social – encontra-se também relacionada ao  regime democrático, principalmente às possibilidades de aplicação dos  princípios constitucionais de cidadania e da dignidade da pessoa humana.  Esse viés vem à tona quando se verifica o processo de exclusão e  marginalização social, vinculado ao quadro de uma profunda violação  institucional de direitos humanos na sociedade brasileira.
Nesse  sentido, buscou-se lançar algumas reflexões acerca do problema da  resistência ao ordenamento jurídico em situações em que se luta pela  efetivação de direitos fundamentais, quando nenhuma outra forma de  resolução mostrou-se suficiente para a superação daquela situação de  violação de diretos. Por meio da análise da resistência de movimentos  sociais populares em torno da luta pelo direito à moradia, buscou-se  investigar as possibilidades de existência de uma garantia fundamental à  resistência implícita na Constituição Federal de 1988. 
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios na luta social pelo direito à moradia
urbana?
Natália Castilho – No âmbito social e político, os desafios estão relacionados a uma  problemática que se encontra no âmago de diversos outros problemas  sociais: a concentração de terras e a distribuição exclusivista e  desigual do espaço urbano. O modelo de desenvolvimento urbano privou as  classes de menor renda da urbanidade, da inserção e fruição efetiva da  cidade. O crescimento acelerado da população urbana reforçou um modelo  de desenvolvimento socioeconômico desigual. De acordo com a professora Raquel Rolnik,  a população urbana no Brasil em 1940 era de 31%, e em 2000 passou para  81,2%. Ou seja, em 60 anos, o percentual de pessoas vivendo em cidades  mais do que duplicou, quase triplicou. Uma mudança vertiginosa num  espaço de tempo muito curto. A autora aponta ainda que o referido modelo  de urbanização, além de excludente, foi também concentrador: 60% da  população urbana vive em 224 municípios com mais de 100 mil habitantes,  dos quais 94 pertencem a aglomerados urbanos e regiões metropolitanas  com mais de 1 milhão de habitantes. Sendo assim, a forte concentração da  renda e da posse da terra, o gradual empobrecimento da população e a  fragilidade da regulação da expansão das metrópoles brasileiras  favoreceram a formação de espaços contraditórios, que se expressam na  paisagem. 
Expansão urbana desigual
O problema da expansão urbana desigual se manifesta em níveis diversificados, mas pode ser visualizado  principalmente a partir da lógica de especulação imobiliária, de  segregação da pobreza nas cidades (excluindo cada vez mais a população  pobre dos centros urbanos, em áreas longínquas que não possuem espaços  de lazer, de educação, geração de trabalho, transporte público adequado,  etc.) e do tratamento policial que é dado aos conflitos fundiários por  acesso à terra urbana. Nesse sentido, a questão do direito à moradia é  bastante complexa, especialmente porque envolve a lógica das relações de  poder que determinam e estruturam a cidade e seu desenvolvimento. Outro  desafio fundamental, especialmente para o campo jurídico, consiste em  visualizar o direito à moradia como uma condição de dignidade (e não  somente a obtenção de um teto, um produto imobiliário), essencialmente  atrelada à vivência do espaço urbano, ou seja, ao acesso aos serviços  básicos, à saúde, ao transporte, à educação, ao lazer, etc. 
Esse quadro fica ainda mais claro quando analisamos a política brasileira de incentivo à realização de grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.  As consequências desse modelo de urbanização, atrelada aos grandes  investimentos em infraestrutura, são agravadas ainda mais. A gestão  urbana encontra-se em um duelo constante entre os interesses sociais e  das grandes empresas e, no caso dos grandes eventos, gerou-se uma  situação extraordinária na qual grandes projetos urbanos capitalistas  encontram uma ocasião especial para se impor, a despeito dos  regulamentos urbanísticos e ambientais e dos interesses sociais.
De acordo com o Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro,  constata-se que o início das intervenções na direção desses projetos  permite afirmar que a cidade avança em sentido oposto ao da integração  social e da promoção da dignidade humana. Os impactos das intervenções  urbanas são de grandes proporções e envolvem diversos processos de  exclusão social, com destaque para as remoções. Para além das remoções,  estão em curso transformações mais profundas na dinâmica urbana das  cidades, envolvendo, de um lado, novos processos de elitização e  mercantilização da cidade, e, de outro, novos padrões de relação entre o  Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das  esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções  autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de  exceção. Decretos, medidas provisórias, leis votadas ao largo do  ordenamento jurídico e longe do olhar dos cidadãos, assim como um   emaranhado de portarias e resoluções, constroem uma institucionalidade  de exceção. 
IHU On-Line – Qual é a importância dos movimentos populares na reivindicação de
direitos como o da moradia, por exemplo?
Natália Castilho –  A atuação dos movimentos populares é fundamental para o processo de  organização, conscientização e mobilização social. A reivindicação por  direitos insere-se em um processo mais amplo e profundo, a partir da  perspectiva organizativa de alguns movimentos, capazes de relacionar a  luta por direitos a um paradigma de construção de poder popular, segundo  o qual as relações sociais e individuais tornam-se pautadas por outros  valores, efetivamente comunitários, horizontais e participativos. Assim,  a resistência e o potencial de organização a partir da atuação dos  movimentos populares são capazes de construir um novo sentido para a  luta por direitos, especialmente porque constroem um processo  político-pedagógico em torno do qual esses outros valores são exercidos e  vivenciados na prática.
Isso pode ser constatado a partir da luta da comunidade Raízes da Praia. Em certo momento da luta, foi proposta para uma parte da comunidade a participação no Programa Minha, Casa Minha Vida,  e a maior parte deles foi contra em primeiro lugar porque o este  programa abriria possibilidade de descaracterização da comunidade, pois a  venda do imóvel é permitida, o que poderia fazer com que pessoas que  não participaram da trajetória da comunidade adquirissem imóveis com  base nas leis de mercado, explorando as dificuldades financeiras de  alguns. A comunidade respondeu que, se as famílias tivessem optado pela  lógica de mercado do Minha Casa, Minha Vida teriam nele se inscrito; não o fizeram porque optaram pela lógica da  organização e da luta para conseguirem efetivar seu direito  constitucional à moradia através de justo investimento do poder público.  Verificou-se também durante a pesquisa que, para os moradores, não  haveria possibilidade de resistência e de conquista do direito à moradia  sem o processo de organização e conscientização proporcionado pela  participação no MCP.