O ocaso da religião, de Bonhoeffer a Ricoeur. Artigo de Giuseppe Bonvegna

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16 Dezembro 2025

"Foi precisamente após ter internalizado essa eliminação bonhoefferiana da metafísica e da interioridade da relação do homem com Deus que Ricoeur pôde afirmar, alguns anos depois, em O Conflito das Interpretações (1969), que 'um ídolo precisa morrer para que um símbolo do ser comece a falar'".

O artigo é de Giuseppe Bonvegna, filósofo italiano e pesquisador independente, publicado por Avvenire 14-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo. 

Mais de 24 anos depois de o teólogo protestante alemão Dietrich Bonhoeffer, em um campo de concentração nazista onde esteve detido entre 1943 e 1945 (antes de ser morto em 9 de abril de 1945), ter se perguntado por que a Segunda Guerra Mundial não provocou uma “reação religiosa”, o filósofo francês Paul Ricoeur decidiu extrair, em 1966, algumas perguntas “daquelas notas dispersas que são como uma espécie de lampejo na noite”.

Foi uma palestra sobre Bonhoeffer, proferida no Centre Protestant de l’Ouest em Niort, na região da Nova Aquitânia, que Ricoeur, então professor da Sorbonne, publicou imediatamente, mas apenas em formato datilografado em uma revista. Está sendo republicada agora em sua primeira edição mundial como livro pela Morcelliana, com tradução e curadoria de Ilario Bertoletti: Bonhoeffer. L’interpretazione non-religiosa del cristianesimo (A Interpretação não religiosa do cristianismo, em tradução livre, 68 páginas, €11,00).

O filósofo, nascido em Valence, França, em 1913, e formado na década de 1930 através do contato com o catolicismo francês por meio da revista “Esprit” e dos encontros “da sexta-feira” na casa de Gabriel Marcel, fez amplo uso em sua obra de 1966 do famoso texto do teólogo luterano, Resistência e Submissão. Cartas e escritos da prisão, demonstrando, como destaca Bertoletti, não apenas sua própria “militância” dentro do protestantismo francês, mas também conferindo uma (ainda pouco conhecida) “guinada protestante” à sua própria filosofia, que até então parecia se encaixar no pensamento católico.

Foi precisamente a partir de seu contato com "Esprit" e Marcel que Ricoeur, ao traduzir Ideen (obra de 1913 do fundador da fenomenologia, Edmund Husserl), havia começado a criticar o foco husserliano no sujeito dentro do processo de conhecimento, tornando-se um dos principais expoentes da hermenêutica e da virada antropológica da filosofia do século XX, ambas centradas na redescoberta da dimensão da existência. Prisioneiro na Pomerânia durante a Segunda Guerra Mundial, lecionou na Universidade de Estrasburgo de 1948 a 1956, ano em que se transferiu para a Sorbonne, onde sua crítica ao subjetivismo moderno husserliano se beneficiaria da leitura de Kant (em particular, os temas do mal, da finitude e da culpa) e Freud, mas também dos fundadores do existencialismo do século XX (Karl Jaspers e Martin Heidegger) e de Verdade e Método (1960), de Hans Georg Gadamer: chegando assim à publicação de Finitude e Culpabilidade (1960), onde não são as ideias, mas "o símbolo que dá origem ao pensamento".

Em seu encontro com o pensamento de Bonhoeffer, Ricoeur via a possibilidade de continuar nessa trajetória antirracionalista: isso porque também o teólogo luterano (que retornou à Alemanha vindo dos EUA em 1940, no início da guerra, no último navio para a Europa, para estar perto de seu povo) também havia tentado "desracionalizar" o cristianismo. De fato, para Bonhoeffer, o século XX era um tempo em que a religião cristã, entendida em suas duas dimensões (metafísica e interior), havia chegado ao fim: após o ocaso do Deus da metafísica ou dos filósofos (que ocorreu no curso da filosofia e cultura modernas), o Deus da "interioridade" também estava se pondo, o qual era buscado nas "experiências limítrofes do homem: morte, pecado, sofrimento". “Agora”, diz Bonhoeffer, “este ‘Deus’ continua a recuar na medida em que o conhecimento progride. Estamos numa fase da cultura em que ‘Deus’ foi colocado nos confins do mundo. E, na fase final, tenta-se retê-lo como uma explicação ‘tapa-buracos’, como resposta a questões insolúveis, uma solução para questões sem resposta: isto é, recorre-se a esse ‘Deus’ nos limites da experiência, quando os recursos da experiência se esgotaram ou quando são impotentes. Ele é, portanto, verdadeiramente o ‘deus ex machina’, a quem se recorre para encontrar uma solução para uma situação intelectual não resolvida.

O homem, afirma Bonhoeffer, atingiu a maturidade no sentido de que aprendeu a enfrentar todas as questões fundamentais sem recorrer a esse ‘Deus’ como hipótese de trabalho”.

Ricoeur lembrava como esse declínio era saudável, aos olhos de Bonhoeffer, uma vez que o cristianismo autêntico deveria ter sido não aquele que fala ao ‘homem religioso’ (isto é, ao homem que busca a salvação através da sua própria interioridade), mas sim aquele de Jesus Cristo, que fala, em vez disso, ao “homem não religioso”: isto é, ao homem que descobre a fé não como resposta a uma busca humana interior, mas “pelo que ela é: fé”.

Não era difícil identificar, nessa abordagem, que substituiu a tentativa humana de se tornar santo pela mera crença, o legado do calvinista suíço Karl Barth, da primeira metade do século XX; mas Ricoeur, além disso, acreditava que em Bonhoeffer havia um passo a mais do que a “sola fides” barthiana, precisamente no momento em que ele afirmava que a fé deveria falar apenas ao homem “não religioso”: fé e ateísmo não eram mais mundos separados, já que poderia existir uma fé que dava razão ao ateísmo de Nietzsche, isto é, à afirmação da morte de Deus, desde que por “Deus” se entendesse apenas o Deus da metafísica e da interioridade. E foi precisamente após ter internalizado essa eliminação bonhoefferiana da metafísica e da interioridade da relação do homem com Deus que Ricoeur pôde afirmar, alguns anos depois, em O Conflito das Interpretações (1969), que "um ídolo precisa morrer para que um símbolo do ser comece a falar": assim começou uma trajetória que o levaria, durante a década seguinte de ensino em Lovaina e Nanterre (Paris-X), a A Metáfora Viva (1975) e, finalmente, a Do Texto à Ação (1986), O Si-mesmo como um Outro (1990) e A Memória, a História e o Esquecimento (2000). Paul Ricoeur morreu em sua casa em Châtenay-Malabry, nos arredores de Paris, em 20 de maio de 2005. 

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