16 Dezembro 2025
Rascunho vazado da nova estratégia de segurança dos EUA indica que Casa Branca contempla dividir a União Europeia e persuadir Polônia, Áustria, Itália e Hungria a seguirem exemplo do Reino Unido e deixarem o bloco.
A reportagem é de Astrid Benölken, publicada por DW, 15-12-2025.
As relações entre os EUA e a União Europeia vêm sofrendo um forte baque desde que Donald Trump voltou ao poder. A divulgação da nova estratégia de segurança nacional dos EUA, em 4 de dezembro, foi considerada por muitos políticos europeus como uma afronta direta.
No documento, que deve ser apresentado ao Congresso a cada novo governo, a gestão Trump descreveu a Europa como um continente em declínio. O texto fala, literalmente, de “censura” à liberdade de expressão na Europa, de “opressão aos opositores políticos” e de uma eventual “extinção civilizacional” causada pela migração.
No entanto, um vazamento de um rascunho até então não divulgado da estratégia de segurança nacional expôs pontos ainda mais delicados sobre como os EUA pretendem agir no futuro em relação à Europa.
De acordo com o portal americano Defense One, que teve acesso a essa versão, o documento prevê que uma intensificação da parceria dos EUA com Itália, Áustria, Polônia e Hungria “com o objetivo de separá-los [da União Europeia]”. A Casa Branca negou a existência de tal documento ao site Defense One.
No entanto, podemos dizer que os EUA estão tentando dividir a União Europeia? E por que justamente esses quatro países podem ser afastados do bloco?
Hungria, Áustria, Polônia e Itália
A Hungria é provavelmente a menos surpreendente da lista. O primeiro-ministro do país, Viktor Orbán, e Donald Trump são aliados próximos. Orbán já apoiou Trump durante a campanha presidencial de 2016 – na época, ele foi o único chefe de governo da UE em exercício a endossar o republicano.
Ambos os mandatários sabem muito bem o que podem ganhar com a presença do outro. Eterno contestador, Orbán desestabiliza a UE e, com isso, uma instituição contra a qual Trump nutre grande desconfiança.
Orbán, por sua vez, se contenta com o apoio político da superpotência americana. Alegações dão conta de que os EUA teriam oferecido à Hungria uma “proteção financeira” de 20 bilhões de dólares, semelhante à que foi concedida à Argentina, já que a economia húngara vem passando por turbulências e importantes fundos da UE permanecem congelados.
Trump, no entanto, disse, em uma entrevista recente ao site Politico, não se lembrar de tal promessa. Há, porém, rumores de conversas sobre uma cooperação financeira. O americano parece estar sempre disposto a ajudar seu “bom amigo”.
O presidente americano também já elogiou a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e o partido pós-fascista Fratelli d'Italia. Porém, para Daniel Hegedüs, diretor regional para a Europa Central do German Marshall Fund of the United States, é um “equívoco” dos EUA acreditar que Meloni poderia se opor à UE. Embora haja certa proximidade ideológica entre Meloni e Orbán, a italiana não tem confrontado o bloco europeu, mas, sim, assumido uma postura bastante pragmática. Segundo Hegedüs, quase ninguém entendeu tão bem quanto Meloni o que uma UE estável e funcional é capaz de proporcionar para seu país.
Embora a Polônia e a Áustria não sejam governados atualmente por populistas de direita, até recentemente ambos os países tinha, no poder, partidos de direita e eurocéticos – que continuam extremamente influentes. O Partido Liberal da Áustria (FPÖ) foi a força política mais votada nas últimas eleições e lidera as pesquisas atuais. Na Polônia, as eleições presidenciais foram vencidas por Karol Nawrocki, candidato do partido conservador de direita Direito e Justiça (PiS). Por isso, é provável que o governo Trump volte a ter maior influência em ambos os países em breve.
Por que Eslováquia e República Tcheca estão fora?
O que mais deve ter surpreendido os observadores foi o fato de dois países da UE não constarem na lista de países do rascunho da estratégia de segurança americana: a República Tcheca e a Eslováquia.
Na República Tcheca, em outubro, o partido populista de direita ANO, do bilionário Andrej Babis, venceu as eleições parlamentares e formou uma coalizão governamental com o partido Motoriste, também de direita, e com o partido de extrema-direita Liberdade e Democracia Direta (SPD).
Já a Eslováquia vem passando por uma guinada à direita desde 2023, sob o governo de Robert Fico. O partido dele, o Smer-SD, tem “social-democrata” no nome, mas, na prática, é em grande parte nacionalista de direita – e, por isso, foi recentemente expulso do Partido Socialista Europeu (PSE).
Tanto Babis quanto Fico são declaradamente céticos em relação à UE e têm o potencial de gerar caos nas tomadas de decisão europeias e minar a autoridade do bloco em questões estratégicas, especialmente no que diz respeito à Rússia e à Ucrânia. Essas são características que o governo de Trump, com sua orientação atual, possivelmente aprecia.
Segundo Hegedüs, os governos tchecos e polonês não foram sido incluídos no documento estratégico por causa de suas respectivas raízes. O ANO não se encaixava no espectro clássico da esquerda-direita, enquanto o Smer-SD se considerava inicialmente de esquerda. “É possível ver claramente como a abordagem americana é idealizada”, diz o cientista político à DW. “Como o Smer e o ANO não têm uma origem populista de direita clássica, eles não são considerados aliados ideológicos, mesmo que talvez façam uma política útil para o governo de Trump.”
Corrosão gradual do pacto europeu
As primeiras tentativas de interferência do novo governo dos EUA nos processos democráticos na Europa no início do ano, como o discurso provocativo do vice-presidente JD Vance na Conferência de Segurança de Munique, foram em parte ignoradas pelos observadores das relações transatlânticas, pois o novo governo de Washington ainda procurava seu novo lugar.
Mas, desde então, o governo dos EUA voltou a se envolver nas campanhas eleitorais de Alemanha, Romênia e Polônia. A interferência segue sempre o mesmo padrão: apoia-se quem o governo Trump considera ideologicamente um aliado – e quem enfraquece Bruxelas.
O objetivo dos EUA não será um Huxit, Italexit, Ausexit ou Polexit, afirma Hegedüs, mas, sim, uma lenta corrosão da integração europeia, o que esses países poderiam promover por meio de apoio diplomático, político e talvez até financeiro.
Os primeiros sinais disso já estão visíveis, como a redução gradual da dependência da União Europeia em relação à Rússia. Até o final de 2026, será proibida a importação de gás natural liquefeito e, até novembro de 2027, a importação de gás por gasodutos. Orbán, por sua vez, já havia obtido de Trump, em novembro, uma isenção das sanções dos EUA às importações de energia russa.
Ele declarou que não aceitará a decisão da UE e que levará o caso ao Tribunal Europeu de Justiça. Em uma coletiva de imprensa conjunta com o presidente turco Recep Tayyip Erdogan no último dia 8 de dezembro, Orbán anunciou que a Turquia continuará garantindo o fornecimento de gás russo à Hungria através do gasoduto TurkStream.
Hegedüs acredita que, nos próximos anos, haverá cada vez mais casos em que os países membros não cumprirão as decisões tomadas em conjunto em determinadas áreas, questionando cada vez mais a essência da integração europeia. Assim, a UE seria cada vez mais enfraquecida, o que pode levá-la, em algum momento, a perder a importância.
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