15 Dezembro 2025
Em 4 de dezembro, o governo Trump publicou sua Estratégia de Segurança Nacional (ESN). Provavelmente ignorada em seu próprio país, como a maioria das publicações desse tipo, ela certamente será lida com atenção pelos membros do corpo diplomático da União Europeia, interessados em avaliar o quanto a aliança euro-americana está vacilando. O documento estratégico confirma muitos dos piores temores a esse respeito.
A reportagem é de Kevin Clarke, publicada por America, e reproduzido por Settimana News, 13-12-2025.
O texto inclui uma digressão aprofundada — e provavelmente indesejada — sobre o declínio cultural e econômico e a disfuncionalidade da UE, mas é surpreendentemente leve em comentários diretos sobre adversários (agora ex?) como China e Rússia. Esses antagonistas geopolíticos haviam ocupado papel central nas versões anteriores da ESN apresentadas anualmente ao Congresso.
Foto: Montagem Settimana News
Nos termos do governo Trump, “nosso objetivo deveria ser ajudar a Europa a corrigir sua trajetória atual”. “No longo prazo, é mais do que plausível que, dentro de poucas décadas, no máximo, alguns membros da OTAN se tornem majoritariamente não europeus. Assim, é legítimo perguntar se verão seu lugar no mundo — ou sua aliança com os Estados Unidos — da mesma forma que aqueles que assinaram a carta da OTAN.”
Talvez seja significativo que Dmitry Peskov, porta-voz do presidente russo Vladimir Putin, tenha tido apenas palavras gentis para as novas diretrizes estratégicas do governo Trump. “Os ajustes que estamos vendo, eu diria, são em grande parte coerentes com a nossa visão”, disse Peskov à mídia russa.
A aceleração da antipatia do governo Trump em relação à Europa foi tão evidente que até papa Leão, embora expressando certa hesitação em comentar tais questões, sentiu-se compelido a dizer algo, reconhecendo a aparente ruptura da aliança transatlântica.
Questionado sobre o plano de paz dos Estados Unidos para a Ucrânia ao fim de seu terceiro encontro presencial com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em 8 de dezembro, o papa disse aos jornalistas: “Infelizmente, creio que alguns aspectos do que vi levariam a uma enorme mudança naquilo que, por muitos e muitos anos, foi uma verdadeira aliança entre Europa e Estados Unidos”.
O papa acrescentou que “as observações feitas sobre a Europa, inclusive em entrevistas recentes, creio que buscam romper aquilo que considero uma aliança muito importante hoje e no futuro”.
Segundo Gerard O’Connell, correspondente da revista America no Vaticano, as observações do papa americano sobre essa aliança histórica refletem a posição de longa data da Santa Sé. Mas a divergência sobre o valor estratégico das relações dos Estados Unidos com a Europa não é, certamente, o único ponto de desacordo entre a Santa Sé e o governo revelado pela ESN.
Questões migratórias
O documento reafirma a percepção do atual governo da migração como uma ameaça às sociedades receptoras, algo a ser contido por todos os meios possíveis, e não — como sustenta a Igreja — uma realidade da condição humana que exige uma abordagem prática e misericordiosa. O rascunho da ESN avalia a migração como um fenômeno de algum modo criado ou ao menos favorecido por um liberalismo político excessivamente permissivo, e não como uma crise geopolítica derivada de conflitos, secas, pobreza e mudanças climáticas ou, no caso da Europa, ao menos em parte, de conexões coloniais.
Convém lembrar que a crise migratória contemporânea foi alimentada por uma guerra civil feroz na Síria, pela violência terrorista no Oriente Médio, pelo fracasso da governança em países como o Haiti e por ameaças autoritárias e climáticas na América Central e no Norte da África.
Em Laudato Si’, Fratelli Tutti e outras declarações formais e informais, os papas Francisco e Leão exortam a uma abordagem diferente da migração. Francisco, chocado com a aceitação impiedosa da morte e do sofrimento de migrantes no Mar Mediterrâneo, descreveu de modo célebre uma “globalização da indiferença” ao tentar compreender a inércia coletiva da Europa diante da crise.
Segundo a ESN, o governo Trump busca “o controle total de nossas fronteiras, de nosso sistema de imigração e das redes de transporte pelas quais as pessoas entram em nosso país, legal e ilegalmente. Queremos um mundo em que a migração não seja apenas ordenada, mas em que países soberanos cooperem para deter, em vez de facilitar, fluxos demográficos desestabilizadores e tenham pleno controle sobre quem admitir e quem não admitir”.
A Igreja ensina que Estados soberanos têm o direito — e até o dever — de gerir suas fronteiras; não contestaria o objetivo de uma imigração “ordenada”, mas poderia lembrar ao governo que o bem comum não é delimitado por cartógrafos. Insiste que a migração deve ser enfrentada com misericórdia e respeito pela dignidade humana, que todas as pessoas têm o direito de migrar para escapar de conflitos e calamidades econômicas e climáticas, e que as nações mais ricas têm a obrigação moral de acolhê-las na medida de sua riqueza e capacidade.
A declaração do governo Trump silencia sobre várias outras questões abordadas em documentos anteriores e que suscitaram preocupação na Igreja. Entre elas, a crise climática — destacada como ameaça fundamental pelos governos Obama e Biden — e um apelo global para enfrentar a desigualdade, a pobreza e a crise global da dívida. Não há referência aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, aos Acordos de Paris sobre o clima, à saúde global ou à oportunidade de promover tecnologias energéticas sustentáveis.
Dada a antipatia do presidente ao que chamou de “farsa” das mudanças climáticas, não surpreende que uma crise confirmada por consenso quase unânime da comunidade científica mundial não seja sequer tratada na ESN. Outras palavras ausentes são pobreza ou fome. A África, continente que se tornou epicentro de uma série de calamidades globais — guerras, endividamento paralisante, doenças, secas, competição mortal por recursos e ruína ecológica causada por indústrias extrativas — recebe pouca atenção: três parágrafos ao final do texto.
Ainda assim, a ESN celebra de forma pomposa os êxitos do governo Trump e a grandeza dos Estados Unidos, descrevendo o documento como “um roteiro para garantir que a América permaneça a maior e mais bem-sucedida nação da história da humanidade, bem como a pátria da liberdade na Terra”.
Um restabelecimento do soft power — mas como?
Depois de desmantelar a agência federal responsável pela ajuda humanitária e pelo desenvolvimento econômico e civil global, no novo plano estratégico o governo Trump reconhece o valor das campanhas de soft power.
O restabelecimento dessas redes após o desmonte da USAID por Elon Musk será uma tarefa enorme, mas pode não envolver parceiros tradicionais como o Catholic Relief Services, que colaboraram frutuosamente por décadas com governos republicanos e democratas. A Casa Branca de Trump criticou as organizações não governamentais, classificando-as como ineficazes e ávidas por recursos.
Uma decisão recente de restabelecer o financiamento dos Estados Unidos à assistência em saúde no Quênia excluiu deliberadamente esses prestadores intermediários. O secretário de Estado Rubio, antes apoiador de operadores humanitários e de desenvolvimento, agora os deplora como “complexo industrial das ONGs”. A ESN sugere que a ajuda direta a governos amigos dos Estados Unidos será seu modelo preferido de “retorno ao futuro”.
Essa ênfase transacional é uma abordagem amplamente abandonada devido à profunda disfuncionalidade que gerava. Funcionários federais responsáveis por desembolsos futuros talvez queiram estudar como a corrupção e a incompetência entre atores governamentais em países em desenvolvimento levaram à intervenção de ONGs — agora presumivelmente colocadas de lado — nas quais se podia confiar para a prestação eficaz de serviços e uma gestão contábil confiável.
Rearmamento alarmante
A ESN compromete os Estados Unidos com um gasto recorde de 1 trilhão de dólares em defesa direta e destaca planos para ampliar e modernizar o arsenal nuclear americano.
O texto afirma: “Queremos recrutar, treinar, equipar e empregar o exército mais poderoso, letal e tecnologicamente avançado do mundo para proteger nossos interesses, dissuadir guerras e, se necessário, vencê-las de modo rápido e decisivo, com o menor número possível de baixas entre nossas forças”. Acrescenta: “Queremos o dissuasor nuclear mais robusto, crível e moderno do mundo, além de defesas antimísseis de nova geração, incluindo um Golden Dome para o território americano, para proteger o povo americano, os bens americanos no exterior e os aliados americanos”.
Esses compromissos, somados às repetidas exigências de aumento dos gastos de defesa entre aliados europeus, sugerem um aumento iminente da produção global de armas e uma corrida armamentista convencional e nuclear que a Igreja tem frequentemente deplorado como desestabilizadora e moralmente escandalosa. A Santa Sé esteve entre os líderes globais que pressionaram pelo desarmamento nuclear e pela abolição das armas nucleares.
O governo Trump parece satisfeita em continuar uma abordagem de paz pela força, chegando a sugerir a paz pela invencibilidade. A Igreja, contudo, recorda que a paz sem justiça é provavelmente ilusória e que a paz pela misericórdia tem valor.
“Hoje, em muitos lugares, ouvimos o pedido por maior segurança”, declarou Francisco em Evangelii gaudium, “mas enquanto não forem eliminadas a exclusão e a desigualdade na sociedade e entre os povos, será impossível eliminar a violência… Quando uma sociedade, local, nacional ou global, está disposta a deixar uma parte de si à margem, nenhum programa político nem recursos gastos em aplicação da lei ou sistemas de vigilância podem garantir indefinidamente a tranquilidade” (n. 59).
Hegemonia hemisférica
A ESN inclui uma crítica bem recebida à expansão imperial excessiva e sugere que o governo rejeita empreendimentos duvidosos de nation-building, presumivelmente tendo em mente as calamidades no Afeganistão e no Iraque. Declara a determinação de evitar “guerras eternas” no Oriente Médio e afirma rejeitar ambições anteriores de domínio mundial.
Mas a ESN não expressa as mesmas preocupações quanto ao domínio hemisférico, seguindo um modelo de hegemonia regional favorecido por Rússia e China. Aceita essas esferas de influência como um resultado geopolítico de algum modo orgânico, ridicularizando a cooperação global como ilusória. “Afirmar e aplicar um corolário Trump à doutrina Monroe”, afirma o documento.
Não se trata, porém, da política de “boa vizinhança” de antigamente. O texto delineia de forma vaga a intenção dos Estados Unidos de estabilizar as nações do hemisfério ocidental para reduzir a migração e conter o tráfico ilícito de drogas, ao mesmo tempo protegendo rotas primárias e secundárias do comércio americano.
Por fim, a orientação “America First” da ESN perpetua a sensibilidade do governo Trump de agir sozinha nos assuntos globais, algo que líderes da Igreja Católica provavelmente considerarão deplorável. Sob Trump, os Estados Unidos suspenderam obrigações estatutárias com a ONU e se retiraram de relações e colaborações globais voltadas a enfrentar a fome no mundo, a privação infantil, os direitos humanos, as condições de trabalho e crises de saúde.
A última declaração estratégica evidencia profunda desconfiança — até hostilidade — em relação ao engajamento multilateral. A Igreja, ao contrário, sustenta consistentemente esses esforços como úteis, produtivos, até essenciais. Papa Francisco incentivou especialmente o diálogo e a cooperação internacionais, reconhecendo a necessidade de instituições multilaterais como as Nações Unidas para enfrentar preocupações e crises comuns.
As expressões de preocupação do papa Leão com o compromisso vacilante do presidente americano em relação às relações entre Estados Unidos e Europa já provocaram reação entre católicos pró-Trump deste lado do Atlântico. Desde sua eleição, muitos se perguntam com que frequência o papa Leão, líder de uma comunidade global de 1,5 bilhão de pessoas, estaria disposto a comentar políticas de seu país de origem.
Mas quando o país mais rico e poderoso do mundo define políticas sobre temas de interesse comum — como paz, comércio de armas e imigração —, como poderia um papa, independentemente de sua nacionalidade, abster-se de participar? Em entrevista ao Politico em 9 de dezembro, Trump expressou de forma direta seu interesse em encontrar o outro americano mais poderoso do mundo. “Claro que vou. Por que não?”, disse.
Se o encontro com o papa Leão ocorrer, os dois terão muito a discutir.
Leia mais
- Os EUA inauguram uma nova era de intervenções na América Latina
- O ICE de Trump-Vance impede bispo católico de entregar a eucaristia em centro de detenção
- Venezuela: a fabricação de uma mentira. Artigo de Ted Snider
- O governo Trump, agindo sem lei, causa estragos no Caribe. Artigo de Benjamin Fogel
- Trump ameaça a Venezuela: ‘Vamos exterminar aqueles filhos da p*’
- 5 razões que revelam por que o conflito entre EUA e Venezuela entrou na fase crítica e mais perigosa. Artigo de Boris Muñoz
- Sob pressão de Trump, que opções restam a Maduro?
- Trump ameaça a Venezuela: “Vamos exterminar aqueles filhos da puta”
- O Papa Leão XIV condena a invasão dos EUA à Venezuela e insta Trump a buscar o diálogo
- O Comitê Nacional BRICS se pronunciou contra a ameaça de uma invasão dos EUA na Venezuela
- Trump deu ultimato a Maduro e exigiu renúncia, diz jornal
- Os EUA aumentam a pressão sobre Maduro após a chegada do porta-aviões à região e denominam a operação militar no Caribe de "Lança do Sul"
- Por que Trump poderia mergulhar a Venezuela no caos com seu "intervencionismo barato". Artigo de Mariano Aguirre Ernst
- Venezuela, Ford chegou. Mas os aliados estão em desacordo com os EUA
- Ação militar dos EUA contra Venezuela: o que pode acontecer?
- Trump anuncia que “muito em breve” terão início “operações terrestres” contra supostos “traficantes de drogas venezuelanos”
- Maduro ordena que a força aérea esteja “em alerta e pronta” para defender a Venezuela
- O cardeal Cupich, de Chicago, denuncia a hipocrisia na aplicação das leis imigratórias nos EUA
- Em meio a batidas do ICE em Chicago, uma Missa popular é um exemplo de "santidade política"
- Ativistas em Chicago, impedidos de dar Comunhão a detidos do ICE, planejam próximas ações
- Eu estava na prisão… e não deixaram me visitar
- Chicago, transformada em uma "zona de guerra" pelo terror imigratório de Trump
- 'Nosso povo vive com medo': bispos dos EUA defendem migrantes em meio à repressão de Trump
- EUA: com poderes ampliados, agentes da polícia anti-imigração de Trump espalham terror
- Bispos da Califórnia se esforçam para atender católicos que se sentem "perseguidos" por agentes do ICE
- O que vimos durante uma audiência do tribunal de imigração e prisão do ICE: o colapso da justiça na América
- Fissuras na máquina de deportação de Trump? Entrevista com Dara Lind e Omar Jadwat
- Como os bancos de alimentos e abrigos religiosos de Nova York estão se adaptando ao medo do ICE
- Trump está usando a imigração no reduto democrata da Califórnia para promover sua agenda ultra-autoritária. Artigo de Andrés Gil
- Trump exige que as tropas entrem em Los Angeles, enquanto a Califórnia denuncia a mobilização "ilegal" da Guarda Nacional
- Bispos da Califórnia se esforçam para atender católicos que se sentem "perseguidos" por agentes do ICE
- O Arcebispo de Washington rejeita a política de imigração de Trump
- Deportações, pânico e perseguição: a crise dos imigrantes sob Trump. Entrevista com Gabrielle Oliveira