13 Dezembro 2025
“Para a Igreja Católica, não há ninguém que seja estranho, ninguém que seja excluído, ninguém que esteja longe. Cada um […] é um chamado, é um convidado; é, em certo sentido, um presente.” Com essas palavras, o Papa Paulo VI encerrava o Concílio Vaticano II em 8 de dezembro de 1965, há sessenta anos, e confiava ao mundo a mensagem resultante da assembleia. O XXI Concílio Ecumênico foi o evento mais influente na vida sobre a Igreja no último século, mas aqui não queremos celebrar o aniversário com recordações circunstanciais, mas sim nos perguntando como aquele processo continua vivo na Igreja hoje, ainda empenhada em sua implementação. O Papa Montini já o havia dito então: "Se não poucas questões, postas no decorrer do Concílio, ainda aguardam uma solução conveniente", e "isso indica sem dúvida que o Concílio não conclui os seus trabalhos no meio do esgotamento de forças mas antes no meio do entusiasmo que despertou; no período pós-conciliar, se Deus quiser, ele voltar-se-á de novo para essas questões com todo o empenho".
A reportagem é de Giovanni Ferrò, Vittoria Prisciandaro e Paolo Rappellino, publicada por Jesus, dezembro de 2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Discutimos tudo isso numa conversa entre os jornalistas da redação de Jesus e cinco convidados: o Padre Severino Dianich, 91, um dos protagonistas mais influentes do debate teológico na Itália da fase pós-conciliar, antigo professor de Eclesiologia e Cristologia na Faculdade de Teologia da Itália Central de Florença; Cristina Viganò, 49, auxiliar diocesana de Milão, professora de Eclesiologia e Antropologia Teológica no Instituto Teológico Missionário do PIME em Monza, e membro da Coordenação Teólogas Italianas; Daniele Menozzi, 78, professor emérito de História Contemporânea na Scuola Normale Superiore de Pisa e especialista em história da Igreja; Donata Horak, 58, canonista, vice-presidente da Coordenação Teólogas Italianas, uma das vozes ouvidas pelo Papa Francisco e pelo Conselho de Cardeais (C9) sobre o tema da mulher na Igreja; Marco Damilano, 57, jornalista, ex-editor do L'Espresso, apresentador do programa de notícias Il Cavallo e la Torre na Rai3 e colunista do Domani.
Eis a conversa.
Vamos começar pelo tema mais evidente e discutido: a liturgia. O Concílio Vaticano II, com a constituição Sacrosanctum Concilium, optou por passar do latim para as línguas faladas. Mas há mais: de uma liturgia em que o ator principal era o "sacerdote", o administrador exclusivo do sagrado, passou-se para uma em que toda a comunidade de fiéis é o ator. Após um período inicial conturbado, que culminou no cisma da pequena comunidade lefebvriana, parecia que a reforma introduzida por Paulo VI havia se incorporado ao cotidiano da Igreja, tornando-se um dado adquirido. Os pontificados de Bento XVI e Francisco, contudo, demonstraram que a questão é mais debatida do que se poderia imaginar. O Papa Francisco quis reiterar claramente que não há volta. Na opinião de vocês, a liturgia continua sendo um campo de batalha?
Dianich: A liturgia sempre foi um tema muito delicado. Especialmente no cristianismo oriental, mesmo correções mínimas foram suficientes para desencadear imensas questões. E até cismas. É o poder simbólico da palavra e do gesto litúrgico. A reforma do Vaticano II, que trouxe a liturgia para a língua das pessoas, foi, em certo sentido, uma obra de dessacralização. Mas mexer no sagrado é sempre uma questão complicada, porque quando se mexe, ou ele deixa de ser sagrado ou o sagrado se rebelará e causará danos. Nesse sentido, é compreensível que a liturgia tenha despertado tantos sentimentos e também criado tantas contradições. No entanto, a ideia do Concílio de uma certa dessacralização corresponde ao espírito do Evangelho, ao espírito de Jesus: ‘Destruí este templo, e em três dias o levantarei’ (Jo 2,19), e ele estava falando do seu corpo. A Carta aos Hebreus (10,1-23), de fato, decreta o fim do sistema litúrgico sacrificial. Porque o sacrifício da vida, que Jesus ofereceu a Deus, acabou encerrando a época dos sacrifícios rituais. Mas, com o passar do tempo, no cristianismo tudo isso foi enfraquecido por um retorno de sacralização que se acumulou ao longo dos séculos.
Exatamente o que o Concílio quis conter, trazendo os gestos e as palavras da liturgia de volta à sua verdade existencial mais que ritualística."
Menozzi: Parece-me que o Padre Severino identificou a razão subjacente que levou a tantas contradições na reforma litúrgica. Penso que outra poderia ser acrescentada: o cisma lefebvriano, a partir de meados da década de 1970, erigiu a seu emblema a manutenção da ‘Missa de sempre’. Por trás desse slogan reside um grande equívoco ou, pior, um grande engano, porque a ‘Missa de sempre’ não existe. A Missa foi mudando continuamente ao longo dos séculos. Na realidade, por trás da rebelião lefebvriana, havia a oposição ao conjunto dos decretos conciliares, particularmente aquilo que os tradicionalistas consideravam especialmente prejudicial, ou seja, o reconhecimento da liberdade religiosa e o fim do Estado cristão. Esse tema foi claramente destacado pelo Papa Francisco: em sua revogação do Summorum Pontificum (documento do Papa Bento XVI que autorizava a celebração em latim com o rito pré-conciliar), ele não impediu que a Missa fosse celebrada segundo o rito em latim, mas confiou a decisão aos bispos: cabe a eles decidir se aceitam ou não os pedidos dos grupos para celebrar segundo aquele rito, com uma condição: que o rito não seja usado para se opor às reformas conciliares. E aqui Francisco acertou o ponto central das oposições à reforma litúrgica: seu uso para um fim outro que não a liturgia, ou seja, a tentativa de cancelar a atualização conciliar da Igreja e, em particular, aqueles seus resultados de tipo político-cultural ou político-religioso que se chocavam com a ideologia da intransigência oitocentista, constitutiva dos grupos tradicionalistas.
Durante o período em que a Summorum Pontificum esteve em vigor, a partir do pontificado de Bento XVI, testemunhamos essa estranha situação em que foi liberada a ideia de um "menu" litúrgico à la carte. Mesmo do ponto de vista canônico, uma situação complexa...
Horak: Sim, eu diria que revela uma duplicidade de registro eclesiológico. O dilema é antigo: é a liturgia que faz a Igreja ou é a Igreja que faz a liturgia? Certamente existe uma correspondência entre a liturgia que celebramos e a maneira como nos entendemos como Igreja. Assim, a questão é mais complexa do que o uso do latim na liturgia. Em vez disso, parece evidente que a pretensão de alguns de celebrar segundo o paradigma litúrgico que reflete uma certa eclesiologia pré-conciliar revela a persistência de uma ideia de Igreja como societas perfecta, fundada na desigualdade, na separação de status entre alguns poucos escolhidos e o resto do povo de Deus, e, portanto, a pretensão de que se possa justamente escolher entre uma eclesiologia e uma outra. Ter sucesso na implementação da Sacrosanctum Concilium, a constituição do Concílio Vaticano II sobre a liturgia, comportaria que a Lumen Gentium, a constituição conciliar sobre a eclesiologia, houvesse de fato sido implementada. Ou seja, que o povo de Deus houvesse realmente tomado consciência de sua dignidade batismal, da possibilidade de tomar a palavra, consciente, portanto, de participar da liturgia não apenas porque ‘faz coisas’. Ao redor do altar, a participação, a actuosa participatio do povo de Deus, não pode ser reduzida a funcionalismo. Na liturgia, nunca há um momento em que o povo de Deus tome a palavra com autoridade. E não há uma representatividade das mulheres. A estrutura permanece a de uma Igreja fundada na desigualdade entre uma categoria de fiéis e o restante do povo de Deus e, portanto, sobre uma eclesiologia pré-conciliar.
Efetivamente, mesmo a liturgia pós-conciliar mostra cada vez mais sinais de desgaste: nas últimas décadas, em particular, tornou-se evidente que as celebrações nas paróquias "não falam" aos fiéis. Trata-se de uma falha na implementação da reforma litúrgica ou é precisamente uma limitação constitutiva da reflexão conciliar sobre o tema?
Damilano: Penso que tenha sido uma falha na implementação. Nos últimos anos, houve dois impulsos muito radicais: um muito barulhento, o outro bastante silencioso. O impulso barulhento é aquele do retorno das identidades. Não se trata de simples saudade da Missa em latim, mas da afirmação do catolicismo como armadura ideológica sobre a qual construir um choque de civilizações. O impulso menos marcante é aquele descrito em 1999 por Pietro Prini: o cisma oculto, isto é, o afastamento sem estardalhaço, mas clamoroso, dos fiéis que já não se sentem mais em sintonia com a rigidez institucional e com as posições da hierarquia.
Viganò: O Concílio não tem como objetivo resolver tudo, mas sim fornecer diretrizes fundamentais. Depois, há trabalho a ser feito para implementá-lo. A desafeição deve ser explicada lembrando que a liturgia, certamente, acompanha e apoia um caminho de fé, mas também o pressupõe. E, portanto, não podemos separá-la do trabalho de anunciação, formação, cuidado das relações comunitárias e valorização de ministérios e carismas. O Concílio, na minha opinião, nos fornece os fundamentos teológicos e doutrinais, mas cabe a nós ter a coragem de fazer as escolhas e dar os passos daí resultantes.
Vou citar, por exemplo, o momento da pandemia e do confinamento, quando explodiram as contradições relativas à liturgia, cujo sujeito é o povo de Deus, a Igreja como assembleia. Em particular, despontou a questão da celebração eucarística: é revelador que, durante a pandemia, alguns sacerdotes tenham celebrado sozinhos em casa. Isso é permitido, mas teologicamente é admissível? Dessa forma, continuamos a transmitir a ideia de que existe alguém que possui um poder sagrado pessoal, quase como o de um mago ou xamã, quando, na verdade, o sacerdócio é um ministério, ou seja, um serviço, uma habilitação certamente, mas para o serviço na e para a comunidade.
Dianich: Deve haver um padre à frente da ação litúrgica ou não? Se formularmos a questão em termos tão simplistas, deveríamos lembrar um dado elementar: a linguagem litúrgica na Eucaristia é uma linguagem representativa. É a Ceia do Senhor. E para que a cena se realize, alguém deve partir o pão em lugar de Jesus. Eventualmente o problema aberto, crucial, gravíssimo e difícil de resolver, é por que necessariamente deve ser um homem, e não também uma mulher, a representar Cristo que parte o pão.
Sim, a questão da ordenação feminina permanece em aberto porque, apesar de o magistério no passado ter imposto restrições muito duras, continua sendo discutida. Para além disso, vejo outro problema com a reforma litúrgica: parece-me que os responsáveis por ela se preocuparam mais com a sua ortodoxia, isto é, com a clareza conceitual do discurso litúrgico, do que com a sua capacidade performativa e comunicativa de envolver emocionalmente a assembleia dos fiéis. Isso faz com que nós ainda convivamos com textos da liturgia antiga, muito nobres, de altíssimo valor em seus significados, mas cuja distância de nossa sensibilidade é enorme. E isso se percebe pelo fato de que não são percebidos como palavra ‘nossa’ pela vasta maioria dos fiéis.
A professora Viganò mencionou a questão central em torno da qual gira todo o debate conciliar e pós-conciliar: a Igreja como povo de Deus. Um conceito que se transformou mais em um slogan fascinante, uma mera exortação espiritual, mas que talvez não tenha sido verdadeiramente traduzido em prática. O que vocês acham?
Dianich: A iniciativa do Papa Francisco de abrir um caminho sinodal indica a necessidade de ir além da proclamação de princípio da Lumen Gentium 8: o povo de Deus é o sujeito da Igreja responsável pela missão. Passar da proclamação do princípio para um estilo de vida cristão no qual tudo isso deveria se concretizar, ou seja, uma sensibilidade de que cada cristão, como tal, é responsável pela vida da Igreja, cada um por sua parte. Durante os longos anos em que fui pároco, mantive uma atitude bastante questionável: quando recebia ofertas para a Igreja, eu não agradecia. E de vez em quando me explicava: 'Não agradeço porque vocês não estão fazendo a oferta para mim, mas para vocês mesmos. Vocês são a Igreja, então uma oferta para a Igreja não é um ato de caridade. Um ato de caridade é um dom para os outros. Este, ao contrário, é para nós, para a nossa vida cristã, para a vida da comunidade’. Hoje, existem muitos casos de comunidades que ficaram sem pároco, onde pequenos grupos de leigos tomaram a iniciativa e estão conduzindo uma vida paroquial respeitável. Bem, sem o Concílio, isso certamente nunca teria sido possível. Portanto, bons passos foram dados. Porém, certamente, ainda há muito a ser feito.
Menozzi: O Concílio quis derrubar uma eclesiologia que era essencialmente interpretada como hierarcologia. O problema é como essa inversão se traduz na vida da Igreja. O Vaticano II forneceu algumas diretrizes tanto em nível de governo da Igreja universal quanto da Igreja local. O Conselho Presbiteral e o Conselho Pastoral Diocesano foram concebidos como instrumentos dessa inversão eclesiológica no governo das Igrejas locais. Mas eles se mostraram bastante fracos devido à sua natureza consultiva e também porque, devido às mudanças gerais na sociedade, tornou-se difícil implementar instrumentos de participação. No entanto, o Concílio também havia indicado outro caminho: a retomada do que o Concílio de Trento prescrevia como forma de governo das Igrejas locais, ou seja, os sínodos. Aqui também, porém, o instrumento sinodal se mostrou muito limitado por ser ainda pensado segundo os limites tridentinos, isto é, não como forma de participação do povo de Deus. Desse ponto de vista, é bastante significativo o que Francisco fez ao tentar reativar uma forma geral de participação de todos os batizados na Igreja universal. Podemos depois discutir sobre os efetivos resultados obtidos, sobre as modalidades como o Sínodo foi conduzido, mas o princípio é coerente com as indicações conciliares: usar o instrumento sinodal, com uma atualização adicional para adequá-lo a uma eclesiologia do povo de Deus.
Uma das principais objeções feitas nos últimos anos ao Papa Francisco é que ele iniciou muitos processos, incluindo este do Sínodo, mas concretizou — e estabeleceu com normas canônicas precisas — poucas coisas. Em sua opinião, a situação pode realmente ser mudada na Igreja sem reformas jurídicas?
Horak: O Código de Direito Canônico, introduzido em 1917 (porque até então a Igreja havia prescindido de um Código), infelizmente, alterou a relação da Igreja com o seu direito. Adotar o modelo do Código significou copiar o direito dos Estados e ter a pretensão de possuir um instrumento totalmente abrangente que já de saída define todas as questões, em vez de ser um ponto de partida para o discernimento. No último século, o direito canônico perdeu aquele espírito sapiencial e prático que sempre teve ao longo da história. Por exemplo, o Sínodo sobre a sinodalidade ultrapassou as disposições contidas no Código sobre o Sínodo dos Bispos, e não há nada de ilegítimo nisso: esse é o direito canônico, um direito vivo que acompanha a evolução do discernimento da comunidade, a evolução da história. A codificação é sempre tardia e eu creio que deve ser superada no próximo século, porque a pretensão de ter um Código universal, na minha opinião, não será mais viável. Como o Código de Direito Canônico recebeu o Concílio? Incorporou algumas de suas contradições ou problemas não resolvidos e os engessou. Por exemplo, o Código contém normas contraditórias a respeito do poder (potestas), pois a Lumen Gentium já contempla a ideia da Igreja fundada nos tria munera, e, portanto, sobre a participação de todos os batizados e batizadas que são investidos de um munus regendi (e, consequentemente, possuem a habilitação fundamental também para governar a Igreja).
Contudo, por outro lado, afirma-se que essa ‘communio’ é sempre hierárquica e que, em todo caso, existe um poder que deriva do sacramento da Ordem, o qual tende a absorver também todo o poder de jurisdição. Essa questão, não perfeitamente resolvida pelos documentos conciliares, é incorporada ao Código, tornando-se, assim, mais rígida. Nesse ponto, temos cânones contraditórios. Isso leva a que todos os órgãos sinodais sejam meramente consultivos, mesmo que compostos por bispos. Trata-se de uma ruptura com a tradição, pois no Oriente, um sínodo composto por bispos delibera. O atual Sínodo dos Bispos, da forma como é regulamentado pelo Código, possui apenas função consultiva. Portanto, temos que enfrentar a questão da relação entre consultivo e deliberativo: não devemos cair numa democratização do ‘um vale um’ (pois isso não seria pertinente numa sociedade como a Igreja), mas sim devemos revitalizar os órgãos intermediários entre a Santa Sé e as Igrejas locais, ou seja, os órgãos sinodais, que deveriam ser investidos de maior autonomia.
Damilano: O Vaticano II representa a reconciliação com a tríade da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), que no século anterior havia sido a grande inimiga da Igreja. É o ponto de chegada de um pensamento teológico e democrático que também estava se agitando dentro da Igreja, não sem dificuldades. No entanto, os documentos conciliares hoje sentem o peso dos anos: a questão do ‘povo de Deus’, posta há sessenta anos, soava muito diferente de como soa hoje. A própria democracia em 1965 — e ainda mais em 1989 — parecia um modelo expansivo, enquanto hoje está recuando em todo o mundo. Assim, o Papa Leão, desde sua eleição, mobilizou o termo ‘sinodalidade’. Um termo, porém, que, como outros processos participativos — vamos chamá-los de democráticos — neste momento corre o risco de se tornar obsoleto, por ser associado à lentidão, à paralisia, ao imobilismo... enquanto o que é rápido, ágil, autocrático e forte está ligado ao que deve ser usado hoje.
Dianich: Acredito que a experiência do Sínodo e a retomada da sinodalidade deixarão sua marca e darão muitos frutos nos anos vindouros. O Sínodo dos Bispos (pois esse é o seu título oficial) foi, pela primeira vez na história da Igreja, um sínodo de bispos e não bispos juntos, com as mesmas qualificações de padres e madres sinodais, com o mesmo direito de palavra e de voto. Esse é um ganho que não está destinado a ficar guardado em um cofre. É uma virada que coloca o antigo problema do poder consultivo ou deliberativo em um plano completamente novo. Bispos e não bispos deliberaram juntos. O papel da autoridade dos bispos não constitui o terreno de base da sinodalidade, mas desponta quando a res de qua agitur o exige, isto é, quando se trata de questões relativas à ortodoxia da fé, à disciplina dos sacramentos e à salvaguarda da unidade da Igreja. Em outros âmbitos, não resulta que os bispos sejam dotados de carismas particulares superiores aos carismas dos fiéis. Quando a questão não exige a intervenção de uma autoridade, é óbvio que a decisão deve ser em comum, elaborada sinodalmente, submetida à votação e verificada como um ato colegiado com base no princípio majoritário. A regra na Igreja deveria se basear nos carismas. Anos atrás, suscitou ironias divertidas o Sínodo dos Bispos sobre a família, ou seja, uma assembleia composta apenas por homens celibatários, em sua maioria bastante idosos, que assumiam para si a tarefa de ensinar os cônjuges como viver a vida de família e como educar os filhos. Não que os bispos não tenham nada a dizer sobre isso, mas é verdade que têm pouco a dizer, ou seja, apenas uma coisa: o juízo ético sobre os comportamentos. Por essa razão, a inovação de um Sínodo dos Bispos com a inclusão de não-bispos deverá se tornar a regra, de forma que, dependendo do assunto em discussão, participem aqueles que possuem os carismas pertinentes para o tema.
Menozzi: Eu acrescentaria que, pela primeira vez, houve um sínodo em que o Papa fez suas as decisões da assembleia sem passar por uma exortação sinodal que as modificasse. Creio que isso também deva ser enfatizado.
Viganò: E eu gostaria de lembrar que um fruto do Sínodo para a região Pan-Amazônica foi a criação da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, ao lado da Conferência Episcopal. É um órgão estabelecido para a participação não só de bispos, mas também de todos os outros membros do Povo de Deus. O Papa Francisco iniciou um processo de conscientização entre as pessoas, que vejo refletido nos programas de formação propostos nas paróquias e associações laicais. Vejo que as ideias estão circulando e não há como pará-las. Claro que as ideias não bastam; ainda precisamos de muita prática, porque carregamos conosco o antigo modelo de Igreja que sempre tivemos em mente. Cito Hervé Legrand, um teólogo dominicano, que, a respeito do Sínodo, diz: ‘É uma questão de aprendizado’. Penso que isso também se aplique para a construção de uma identidade de povo de Deus.
Horak: O direito canônico medieval contém o princípio de que o que afeta a todos deve ser discutido e deliberado por todos; o que afeta alguma pessoa deve ser deliberado por tal pessoa. Devemos, portanto, imaginar maneiras de equilibrar consultivo e deliberativo, entre órgãos que decidem e órgãos que simplesmente dão seu conselho. Com base na matéria, como bem dizia o Padre Dianich, centros de competência interministeriais com base na vocação, no carisma, diversificados até mesmo por região do mundo. A Igreja Católica a essas alturas está demonstrando diferenças realmente notáveis entre um continente e outro: as reformas não podem ser interrompidas em continentes inteiros em nome da uniformidade, nem reformas podem ser impostas de cima válidas universalmente quando geram confusão em algumas partes do mundo. Essa diferenciação precisará ser governada, buscando preservar a comunhão, estabelecendo critérios e também criando instituições que possam garantir a comunhão com o Bispo de Roma. Nesse sentido, uma decisão tomada pelo Papa Leão em relação ao Sínodo me dá esperança. Existem esses dez grupos deviam produzir algo até junho, mas depois tudo foi adiado para o final do ano. No entanto, Leão acrescentou mais dois grupos. Um que tratará da liturgia numa perspectiva sinodal e outro que abordará os órgãos intermediários. Acredito que existe uma real necessidade de repensar as Conferências Episcopais, em primeiro lugar, e também os agrupamentos de Igrejas, pelo menos em nível continental. O fato de ter sido adicionado um grupo de estudo de canonistas para trabalhar nos órgãos intermediários parece-me apontar na direção da valorização de um método realmente sinodal, que vai além da democracia delegada, tão em crise em todo o mundo hoje em dia, mas que talvez possa também indicar ao mundo um caminho alternativo, verdadeiramente democrático, mas mais profundo.
O raciocínio de Marco Damilano deveria nos fazer refletir sobre uma questão: enquanto durante vários séculos a Igreja Católica foi um fator de contenção e de oposição à democracia liberal, hoje, por uma dessas tortuosas reviravoltas da história, encontra-se na vanguarda da defesa de valores que noutros lugares (veja-se os Estados Unidos) parecem estar hoje em profunda crise. E isso implica uma responsabilidade para os fiéis...
Dianich: A Igreja hoje (que é, basicamente, a voz do Papa) tem uma voz que é ouvida, respeitada, até mesmo solicitada. É uma voz muito elogiada, mas em nada posta em prática. Se quisermos buscar nisso o ponto para uma reflexão sobre a vida interna da Igreja, talvez seja porque há muito Papa e poucos fiéis para falar em nome da Igreja. Um pouco menos Papa e um pouco mais bispos já seria um ganho. Um pouco menos bispo e mais fiéis seria o ideal.
Menozzi: O Vaticano II vê a democracia, os direitos humanos e as liberdades modernas como um sinal dos tempos, que exigem uma compreensão mais profunda da mensagem evangélica. No período pós-conciliar, esse tipo de conquista não foi uma aquisição totalmente pacífica, pelo menos por parte do papado. Se não fosse pela voz dos fiéis leigos e também por uma tendência da história que mostrava como as diretrizes pastorais vindas do papado eram completamente ineficazes, não teria havido o Papa Francisco.
Até agora, falamos do povo de Deus, portanto, dos fiéis leigos, mas pouco falamos do padre, que, após o Concílio, não é mais concebido como "sacerdote", único administrador do sagrado, mas se prefere concebê-lo como "presbítero". No entanto, ainda nos encontramos no meio de uma situação difícil. Possivelmente ele não será mais ser o sacerdote de matriz bíblica, mas continua sendo o único fulcro da vida comunitária, sem o qual não se pode sequer decidir trocar a caldeira da paróquia. Que direção tomar para enfrentar essa questão?
Dianich: Retornando ao que o Professor Horak dizia: o problema do papado não pode ser resolvido sem resolver o problema do episcopado. Os bispos precisam estar mais conscientes de sua posição central na vida da Igreja e expressá-la. Daí, se passa ao tema do padre. Bem, é claro: hoje, a questão da dessacralização do padre é uma operação concluída (exceto por alguns retrocessos, especialmente entre os padres mais jovens). A mudança na concepção do ministério realizada pelo Concílio, no que diz respeito à centralidade da Palavra sobre o sacramento, continua sendo fundamental: o padre é, antes de tudo, o ministro da Palavra, enquanto toda a concepção sagrada anterior se baseava na função sacerdotal de tipo clássico, até mesmo antigo-testamentária.
Menozzi: Parece-me que o Vaticano II fez um discurso muito significativo sobre os bispos, particularmente quando levantou a questão do colégio episcopal como forma de governo da Igreja universal. Se os bispos realmente internalizassem o fato de que, como colégio, detêm o poder de governo da Igreja universal, creio que a função episcopal resultaria muito mais valorizada do que é normalmente exercida. Por outro lado, o Concílio valorizou o laicato. Pela primeira vez, na Gaudium et Spes, embora limitando seu alcance ao acrescentar o adjetivo ‘relativa’ ao termo ‘autonomia’, reconheceu-se a autonomia do laicato nas realidades terrenas. Diante de um bispo valorizado e de um leigo valorizado, o Concílio disse bem pouco sobre o padre: a Presbiterorum or para as dificuldades do padre no pós-concílio. Não é por acaso que, durante seu pontificado, Francisco tenha denunciado tantas vezes o clericalismo, ou seja, o uso do poder sacramental como poder e não como serviço.
Viganò: Há sempre uma certa tensão nos textos do Concílio: por exemplo, sobre o papel do colégio episcopal, reitera-se que é o Papa quem comanda o colégio. E concordo que, em relação aos presbíteros, não se foi muito além de Trento. O próprio Papa Francisco, em Querida Amazonia, apresenta uma descrição dos padres que eu acreditava já superada. É por isso também que penso que os padres hoje atravessam uma séria crise de identidade, e considero que, para ajudá-los, se deveria colocar no centro primeiro sua relação com o 'nós' eclesial, com os leigos e as leigas, com os outros carismas e ministérios.
Dianich: Nos primeiros 10 a 15 anos após o Concílio, apareceu uma abundante literatura teológica sobre a figura do padre, levando em conta, entre outras coisas, que não se pode começar uma teologia do ministério do padre partindo da distinção do padre em relação ao bispo e ao diácono. Uma reflexão que colocou o ministério da Palavra no centro, porque eu posso ir ao altar partir o pão como símbolo e figura de Cristo somente graças ao fato de ter pregado o Evangelho. Lembremos a riqueza de pensamento que agitava o debate teológico em torno das propostas de Hans Küng e Edward Schillebeeckx. Posteriormente, porém, o magistério de João Paulo II e, em parte, o de Bento XVI, trouxeram um retorno a uma concepção mais sagrada do ministério.
Horak: A unidade do ministério ordenado sofreu um golpe gravíssimo em 2006 com a Omnium in mentem de Bento XVI. Esse documento também levou a uma reescrita dos cânones n. 1008-1009, de forma que agora os diáconos estão, eu diria, em uma terra de ninguém. Perdeu-se a linguagem que via os três graus da Ordem como uma expressão do único sacramento, e agora se diz que os diáconos não podem representar Cristo Cabeça, mas representam Cristo Servidor. Quanto ao sacerdote, acho que ele é realmente o elo mais fraco da corrente, em crise mais que nunca. O sacerdote é um homem muito sozinho, frequentemente deixado sozinho por seus bispos. Se ele é pároco, é responsável por tudo, por todos os aspectos da vida paroquial. Ele é o único representante legal nas esferas civil, criminal, administrativa e canônica. E, além disso, sejamos francos: a reserva masculina torna os ministérios incompreensíveis. O diaconato não se desenvolveu porque foi reinstaurado apenas para os homens, e isso o tornou um ministério que imita os presbíteros, em uma chave clerical.
Chegamos assim a outra das grandes questões: o papel da mulher na Igreja. Talvez o Concílio, em 1965, a tenha subestimado, mas hoje é central. O que vocês pensam?
Menozzi: Na Pacem in Terris de João XXIII, a emancipação feminina era considerada um dos sinais dos tempos que ajudaram a compreender melhor o Evangelho. E não está ausente do Concílio: a Gaudium et Spes a lê em termos de emancipação e superação das disparidades nas esferas civis, políticas e sociais. Mas nunca é mencionada do ponto de vista eclesial. Depois do Concílio, porém, a Bíblia começou a ser lida levando-se em conta que foi escrita com um condicionamento histórico no qual o gênero desempenhava um determinado papel. E a partir daí a história da Igreja começou a ser revista, e emergiram funções eclesiais que antigamente também eram exercidas pelas mulheres. Dessa perspectiva, uma das limitações evidentes do trabalho sinodal é a falta de reconhecimento de que às mulheres cabe uma função diaconal. Nem mesmo o governo sinodal leva em consideração os resultados alcançados pelo discernimento eclesial do povo de Deus.
Dianich: Olhando para o futuro, acredito que pode passar uma década, talvez duas, mas também teremos mulheres presidindo a Eucaristia. É um caminho irreversível porque o não à ordenação feminina não tem fundamentos suficientes nas Sagradas Escrituras. Não pode ser apenas o fato de Jesus não ter feito uma determinada coisa para estabelecer que a Igreja não possa fazê-la. O Padre Legrand, em seus estudos sobre esse tema, destaca que se Paulo disse não à mulher oficiando uma reunião cristã, é para salvaguardar a comunidade das acusações que poderiam advir de um ambiente cultural que não entenderia essa posição. Mas as mesmas razões de Paulo hoje nos empurram exatamente na direção oposta, porque hoje é a proibição à mulher de oficiar que é incompreensível na nossa cultura.
Viganò: O otimismo do professor Dianich me tranquiliza. Porque a mim parece que ainda estamos muito longe, não só na questão do acesso aos ministérios ordenados, mas também, por exemplo, sobre a antropologia. Quando as questões são muito controversas e se procuram compromissos para evitar divisões, os prejudicados são geralmente os mais fracos, que podem ser as mulheres ou outros membros frágeis do corpo eclesial...
Dianich: Não podemos esquecer que, há poucos meses, uma mulher foi eleita Arcebispa de Canterbury, chefe da Igreja da Inglaterra e de toda a Comunhão Anglicana...
Viganò: Sim, tudo isso ajuda. Mas se olharmos para o panorama global e pensarmos, talvez, nas Igrejas Orientais, vejo posições conservadoras muito fortes, e não só em relação às mulheres. Em suma, sinto que ainda há muito por fazer. No entanto, estou confiante de que, se prosseguirmos com as práticas sinodais, esse também poderá tornar-se um tema mais maduro na opinião pública eclesial.
Vamos passar para uma última questão: a unidade dos cristãos. Após vários anos de grande fervor ecumênico, o diálogo entre as confissões cristãs perdeu a sua força motriz. E hoje a comunhão eucarística entre as Igrejas continua muito distante. O que na opinião de vocês deveria ser feito?
Dianich: Não creio que o primeiro passo útil seja aquele da comunhão eucarística, no sentido do sacramento, mas sim na linha da pregação comum, da palavra comum. O que eu gostaria é que no futuro fosse publicada, por exemplo, uma encíclica sobre o tema da paz assinada pelo Papa da Igreja Católica, pela Arcebispa de Canterbury, pelo presidente da Federação Luterana Mundial, etc. Porque se chega à Eucaristia através da palavra. E, portanto, a comunhão da pregação em um sentido público e oficial seria um passo adiante em comparação com os muitos casos em que já existe extraoficialmente.
Menozzi: Concordo. Sobre o ecumenismo, na minha opinião, o Concílio abriu um caminho que nem sempre foi adequadamente trilhado: refiro-me à visão eclesiológica inerente à expressão 'subsistit in'. A Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica, mas isso não significa que a Igreja Católica tenha a plenitude da Igreja de Cristo. Creio que este é o cerne fundamental do ecumenismo, ou seja, o fato de que o diálogo com as outras Igrejas, nas quais existem elementos de verdade, pode ajudar a alcançar a plenitude da Igreja desejada por Cristo. A 'Ut unum sint' de João Paulo II tem um certo significado para o diálogo ecumênico porque demonstra uma disposição para questionar a primazia papal. Isso não é pouca coisa. Contudo, paralelamente a essa abertura em termos de governança da Igreja, com João Paulo II e Bento XVI houve um endurecimento no plano doutrinal: a Igreja Católica tornou-se a Igreja de Cristo. Essas são questões que Francisco não abordou em profundidade, estando mais preocupado com o diálogo inter-religioso do que com o diálogo ecumênico entre cristãos.
Horak: O que faltou foi a formação ecumênica de toda uma geração. Podemos ver os efeitos disso também na Itália: o Mês da Criação, em muitas dioceses, terminou com uma bela celebração eucarística católica para a qual foram simplesmente convidados os padres ortodoxos e o pastor ou a pastora protestante da cidade.
Dianich: Gostaria de concluir, no entanto, com um pouco de otimismo. Vocês notaram que o anticlericalismo parece ter desaparecido da opinião pública nos últimos anos? Parece-me que hoje a Igreja desfruta de uma boa estima, e isso é um sinal de que está testemunhando o Evangelho, que é, afinal, a única coisa que importa para a Igreja, porque é a razão de sua existência. A Igreja efetivamente representa a graça de Deus em um mundo tão desorientado e tão sombrio é como o de hoje. Portanto, as nossas observações críticas são valiosas e também demonstram um bom senso de Igreja, um senso realista de humildade evangélica diante da dimensão da tarefa que Jesus nos confiou.
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