Ministério da Agricultura tenta remover menção a agrotóxicos do Plano Clima

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10 Dezembro 2025

Documento com o pedido inclui críticas a trechos sobre desmatamento e conflitos socioambientais e teria sido redigido em conjunto com a Frente Parlamentar da Agropecuária e o Instituto Pensar Agro, braço da bancada ruralista; texto foi enviado aos responsáveis pelo Plano Clima semanas antes de o governo adiar seu anúncio durante a COP30 após pressão do próprio ministério.

A reportagem é de Hélen Freitas, publicada por Repórter Brasil, 10-12-2025.

O Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) pediu a retirada de referências a agrotóxicos, desmatamento e conflitos socioambientais do Plano Clima, documento-guia das ações de enfrentamento à crise climática no Brasil até 2035.

As menções no texto questionadas pela pasta são listadas como fatores que agravam a insegurança alimentar. Para o ministério, elas seriam “ideológicas” e “nocivas à imagem do agro”.

O pedido, obtido com exclusividade pela Repórter Brasil, foi enviado ao grupo responsável pelo capítulo de adaptação do plano em meados de outubro, semanas antes de o governo adiar seu anúncio durante a COP30 após pressão do próprio Mapa. O texto original foi submetido à consulta pública em abril deste ano.

A reportagem apurou, ainda, que a solicitação teria sido redigida “a seis mãos”: Mapa, FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) e IPA (Instituto Pensar Agro). Braço ideológico, técnico e financeiro da bancada ruralista, o IPA é financiado por grandes entidades empresariais, como a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), e pela Croplife, associação que representa multinacionais fabricantes de agrotóxicos.

No pedido, o Ministério da Agricultura afirma que a agropecuária é é retratada no Plano Clima como “atividade próxima a práticas ilícitas” e, por isso, pede a supressão ou reescrita de ao menos oito trechos que mencionam problemas ligados à produção de alimentos em larga escala — do uso de agrotóxicos ao desmatamento, passando por conflitos com comunidades tradicionais e pela crítica aos sistemas alimentares hegemônicos e à produção de ultraprocessados.

“O documento necessita de ajustes substanciais em seu Capítulo 2, sob pena de configurar instrumento institucionalizado de ataque infundado à produção agropecuária nacional, caracterizando desvio de finalidade e tentativa de difusão de ideologias”, afirma a pasta na solicitação.

Governo não informa se sugestões do Mapa foram incorporadas

Para Inês Rugani, coordenadora do ObservaCOI (Observatório Brasileiro de Conflitos de Interesse em Alimentação e Nutrição), a pressão do Mapa deixa explícita uma tentativa de controlar o conteúdo das políticas públicas que possam impactar o setor que representa. “O Ministério da Agricultura tem sido porta-voz do setor produtivo hegemônico, e não um defensor do interesse público”, afirma.

Procurados, o Ministério da Agricultura, o IPA e a FPA não haviam retornado até a publicação desta reportagem.

Questionado se as observações do Mapa foram incorporadas, total ou parcialmente, o MMA (Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima) afirmou que a parte de adaptação do Plano Clima e seus 16 planos setoriais “já foram avaliados e aprovados pelo Subcomitê-Executivo do Conselho Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), que deverá referendar o conteúdo integral dessa política nas próximas semanas”.

Disse, também, que a elaboração dos 16 eixos temáticos do capítulo de adaptação do plano está sob responsabilidade dos ministérios “pertinentes a cada tema, cabendo a cada um deles acolher, total ou parcialmente, as sugestões advindas da sociedade e de colaborações interministeriais”. Segundo a pasta, no caso do plano setorial de segurança alimentar e nutricional, “essa tarefa coube exclusivamente ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)” (leia a resposta na íntegra).

Também procurado pela Repórter Brasil, o MDS não retornou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.

Agronegócio pede remoção de menções a agrotóxicos, desmatamento e conflitos socioambientais

Um dos trechos que o Mapa exige remover do Plano Clima é a afirmação de que “o uso de agrotóxicos no Brasil é extremamente alarmante, sendo o Brasil um dos maiores consumidores de pesticidas do mundo”. Para a pasta, essa formulação levaria a “conclusões de grave impacto reputacional” e repetiria “discurso do Norte global”, concorrente à agricultura brasileira.

“O texto é impreciso, não agrega, gera interpretações erradas que maculam a atividade agropecuária nacional, faz uma comunicação de risco completamente rasa e errada e, portanto, deve ser excluído de um programa oficial do governo brasileiro”, afirma o ministério no pedido enviado ao grupo responsável pelo capítulo de adaptação do plano.

O Mapa contesta o uso de números absolutos e argumenta que a análise deveria considerar o consumo por hectare cultivado. “Se isso tivesse sido feito, o Brasil não configuraria entre os países com o maior uso por hectare”, diz a solicitação.

Dados recentes da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), no entanto, revelam que o Brasil foi o maior consumidor mundial de agrotóxicos em 2023, com 801 mil toneladas de ingredientes ativos aplicados na agricultura — 86% a mais que os Estados Unidos, segundo colocado. No ranking por área cultivada, o Brasil aparece em segundo lugar, atrás apenas do Vietnã.

O Ministério da Agricultura também pede a exclusão de trechos que associam a expansão de monocultivos a conflitos ambientais, alegando que a relação apresentada no Plano Clima é “desconexa”, ignora outras causas e prejudica a imagem do país.

Em relação ao desmatamento, a pasta critica a recomendação de acabar com qualquer tipo de supressão vegetal — legal ou ilegal — para fins de produção de alimentos. Para o Mapa, essa é uma “polêmica desnecessária”, já que o Código Florestal autoriza desmates legais: “Se o governo constituído entende que não deva haver mais desmatamento legal, deve trabalhar para mudança da lei do País e não se manifestar em plano oficial”.

Estudos demonstram papel da produção industrial de alimentos na crise climática

Na avaliação de Rugani, do ObservaCOI, caso os pedidos do Mapa sejam acatados e o Plano Clima não descreva com clareza a contribuição dos sistemas alimentares para a crise climática, o governo corre o risco de entregar um documento apenas paliativo, comprometendo seu objetivo. “Um plano mais recuado significa não efetividade. A gente não tem tempo para respostas frágeis diante do colapso climático.”

Estudos científicos têm demonstrado o papel dos sistemas alimentares na crise climática. No Brasil, a agropecuária respondeu por 70% das emissões de gases de efeito estufa em 2024, segundo o Seeg, plataforma do Observatório do Clima.

Globalmente, a produção de alimentos em larga escala é responsável por cerca de 30% das emissões e pressiona cinco dos nove limites planetários, segundo relatório da Comissão EAT-Lancet. O estudo alerta que, mesmo se o mundo zerar as emissões do setor energético, a forma atual de produzir e consumir comida já seria suficiente para ultrapassar a meta de 1,5°C do Acordo de Paris.

Mesmo diante dessa realidade, o setor agropecuário brasileiro demonstrou seu peso político ao conseguir adiar o anúncio do Plano Clima, previsto para acontecer durante a COP30.

O documento é a principal ferramenta para tirar do papel as metas climáticas assumidas pelo Brasil na sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) apresentada em novembro de 2024 na COP29, em Baku, no Azerbaijão. Ele define as ações de mitigação e adaptação necessárias para a redução substancial das emissões de gases de efeito estufa até 2035 e para a preparação diante dos impactos da crise climática.

“O Plano Clima vai detalhar como o Brasil pretende cumprir essa trajetória”, explica Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa. Para ela, aprovar o plano é essencial para garantir uma política climática funcional: “Qual é o risco de não ter? Impediria o Brasil de ter uma política detalhada como raríssimos países têm”.

Agronegócio quer ‘consenso’ entre setor produtivo e governo

Representantes do agronegócio deixaram a conferência do clima da ONU, em Belém (PA), comemorando o adiamento do anúncio do plano. “Depois de uma análise técnica, vimos que houve avanços, mas ainda tínhamos muitos problemas. O IPA [Instituto Pensar Agro] formalizou aos ministérios um apelo para que não houvesse nenhum anúncio do plano durante a COP30”, afirmou a presidente do instituto, Tânia Zanella, em reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária em 25 de novembro, poucos dias depois do fim do evento.

No mesmo encontro, ela disse que o Mapa sinalizou a criação de um grupo de trabalho com participação do setor para revisar o plano antes de sua publicação final.

Em entrevista coletiva durante a conferência, o ministro da Agricultura Carlos Fávaro minimizou a necessidade de anunciar o documento em Belém: “Não chegamos ainda a um consenso entre o setor produtivo e o governo, mas também não há necessidade alguma de que seja anunciado dentro da COP”. Questionado pela Repórter Brasil sobre um possível risco de o plano ficar para 2026, ano eleitoral, ele afirmou: “O tempo de acontecer é o tempo do consenso, e eu posso lhe garantir que não está longe”.

A posição foi reforçada por Roberto Rodrigues, enviado especial da agricultura para a conferência e ex-ministro da Agricultura do primeiro governo Lula. “Tem que haver um acerto de opiniões entre o governo e o setor privado para que todo mundo fique satisfeito, e por enquanto não há essa felicidade ainda. Falta esse acerto”, disse.

Para especialistas, a reação do setor tenta deslocar a agropecuária da posição de principal emissora para a de injustiçada. “Evitar dizer que a agropecuária é vilã do clima é uma mentira. É o setor que mais emite gases de efeito estufa e também o mais vulnerável às mudanças climáticas”, afirma Salomon, do Instituto Talanoa. “Não reconhecer a fonte do problema impede qualquer solução.”

Samantha Fabris, pesquisadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores), alerta para os riscos de se eventualmente incorporar os pedidos do setor agropecuário na versão final do Plano Clima: “Quando se cede um plano tão importante aos interesses de um setor, desbalanceia-se tudo. A gente desmerece a urgência da crise climática, especialmente na adaptação, que chega na vida real de pequenos agricultores, povos tradicionais e populações periféricas”, diz.

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