04 Novembro 2025
A santidade dos padres casados é hoje uma profecia silenciada dentro da Igreja, uma voz que o clericalismo tenta ocultar, mas que o Espírito mantém viva. Neles brilha a dupla sacramentalidade da Ordem e do Matrimônio, sinais de serviço e comunhão para uma Igreja mais humana e encarnada.
O artigo é de Guillermo Jesús Kowalski, teólogo e cientista social, mestre em Doutrina Social da Igreja pela Universidade de Salamanca, publicada por Religión Digital, 01-11-2025.
Eis o artigo.
Para Jesus, a santidade são as bem-aventuranças das vítimas diante daqueles que, como o fariseu do templo ou o rico da parábola, já têm sua recompensa. Ele veio para fazer felizes os que o mundo e a religião consideram perdedores e fracassados — e escolheu ser um deles. Filtra com sarcasmo as disciplinas religiosas, para ficar com o Amor e a Misericórdia pelos pobres e excluídos.
Neste 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, quero recordar uma classe de descartados pelas estruturas eclesiásticas: os sacerdotes casados, testemunhas silenciosas de uma santidade encarnada ainda não reconhecida. Neles brilha a graça santificante da dupla sacramentalidade, onde o amor conjugal e o serviço pastoral se entrelaçam como sinais do Reino. Embora marginalizados pelo clericalismo que lhes virou as costas, são peças indispensáveis de uma Igreja mais humana, reconciliada com a verdade do amor e do seguimento de Cristo na realidade.
Eles, como tantos outros, revelam que apenas as vítimas da Igreja podem emitir uma palavra nova que permita voltar a crer nela como instrumento do Reino de Deus.
Na Igreja Católica persiste uma tensão entre uma estrutura eclesial fechada no clericalismo celibatário e a realidade viva dos sacerdotes casados como outra forma de santidade. Esse conflito é disciplinar, teológico e antropológico: o celibato obrigatório, legislado tardiamente no século XII e regulamentado em Trento, não é dogma, mas uma construção institucional que confundiu fidelidade evangélica com obediência ao poder. Como disse Jesus: “No princípio não era assim” (Mt 19,8).
Nos primórdios cristãos era diferente: Pedro e a maioria dos apóstolos eram homens casados; Paulo exige que os bispos sejam “maridos de uma só mulher” (1Tm 3,2). Mas a identificação progressiva entre perfeição e celibato consolidou uma casta sagrada superior — uma deriva próxima a antigas mutilações religiosas (como as de Orígenes), que confundiam santidade com negação do corpo.
Essa distinção alimentou o clericalismo: a exaltação do clero como grupo separado e superior por não se casar, cujos membros gozam de privilégios e poder inquestionável.
Como advertiu Hans Küng, “a Igreja confundiu santidade com controle”, enquanto Umberto Eco ironiza: “prefere a castidade ao bom senso”. Diante dessa espiritualidade temerosa do desejo, Bruno Forte propõe uma visão trinitária: “o amor conjugal e o amor pastoral encontram sua raiz comum na Trindade, onde a comunhão é dom recíproco”.
O sacerdote casado não é um erro disciplinar a ser “ocultado”, mas um sinal profético do Reino: um testemunho de que o amor humano e o ministério pastoral são expressões inseparáveis da mesma graça divina.
A voz dos teólogos: questionando o fundamento
Numerosos teólogos católicos concluem — junto com estudos sobre a pedofilia em vários países — que o celibato obrigatório, imposição antinatural, é fonte de problemas pastorais, psicológicos e espirituais, além de gerar vidas duplas e abusos, como demonstram os meios de comunicação que hoje rompem o silêncio da omertã clericalista.
Hans Küng destaca sua desconexão com o Evangelho. Em Por que sou cristão?, afirma: “O celibato eclesiástico não é mandamento de Jesus, mas lei da Igreja. E as leis da Igreja podem ser mudadas pela Igreja.” Essa lei não garante maior disponibilidade para Deus; ao contrário, gera moralismo obsessivo com a sexualidade e afasta pessoas capazes do ministério ordenado.
O teólogo australiano Paul Collins, autor de Papal Power, liga o celibato diretamente ao clericalismo e ao abuso de poder: “O celibato obrigatório é o cimento que mantém unida a estrutura clerical. Cria uma mentalidade de ‘nós contra eles’, separando os sacerdotes do povo que devem servir. Essa separação é o terreno ideal para o clericalismo, a arrogância e, nos casos mais trágicos, o abuso.”
De modo semelhante, o teólogo alemão David Berger, que deixou o ministério para se casar, denuncia “a hipocrisia de um sistema que, enquanto prega a castidade, empurra muitos a uma vida clandestina, gerando profundo sofrimento pessoal e crise de integridade”. Milhares de sacerdotes tiveram que escolher dolorosamente entre vocações ao amor conjugal e ao ministério, como se fossem excludentes.
A condenação e a discriminação: o alto preço da escolha
Os que “ousam sair” e viver o matrimônio enfrentam discriminação jurídica e perseguição social. Já não podem exercer publicamente os sacramentos, privando a comunidade de algo essencial. Mas a punição vai além do legal: é um castigo sem prescrição.
Homens que continuam amando a Igreja são estigmatizados, transformados em fantasmas dentro das comunidades que um dia pastorearam. São caluniados como fracassados, doentes ou hereges, e seus matrimônios são vistos como causa de sua “queda”.
A teóloga feminista espanhola Isabel Corpas, autora de A revolução silenciosa das mulheres na Igreja, denuncia essa injustiça: “Ao condenar o sacerdote que se casa, a Igreja está desvalorizando simbolicamente o matrimônio e, sobretudo, a mulher.”
O desafio: rumo a uma Igreja sinodal e não clerical
O movimento a favor do celibato opcional e do reconhecimento da santidade dos sacerdotes casados é anticlericalista, não anti-Igreja. Não busca destruir o sacerdócio, mas reintegrá-lo na comunidade dos batizados, ordenando-o à comunhão, não à segregação.
A Igreja Católica é composta por 24 Igrejas — uma ocidental e 23 orientais. Nessas últimas, há padres casados (como nos ritos maronita, greco-católico melquita, ucraniano e armênio), testemunhando que o celibato não é requisito ontológico para o sacerdócio. A santidade não reside no estado civil, mas na fidelidade ao amor de Deus — seja na entrega celibatária, seja no amor conjugal.
O sacerdote casado é chamado à santidade em seu estado. Longe de ser um problema, ele é ponte entre o clero e os leigos, duas realidades que o clericalismo separou artificialmente. Negar isso é resistir à obra do Espírito.
A santidade do sacerdote casado, negada pelos arquitetos do clericalismo, é uma profecia fundamental do Reino. A dupla sacramentalidade da Ordem e do Matrimônio é sinal de que a santidade não está na mutilação, mas na integração do amor. “O futuro da Igreja passará pela recuperação do comunitário diante do clerical, e nesse caminho, o reconhecimento do sacerdócio casado será um sinal profético de que o Espírito sopra onde quer — e não apenas nos atuais seminários” (Leonardo Boff).
Para Betina, minha esposa e companheira no caminho de santidade da ordem sagrada.
Leia mais
- A hipocrisia do celibato
- Porque o celibato dos padres é um eterno debate dentro da Igreja. Artigo de Gaétan Supertino
- Celibato dos padres: novas perspectivas
- “O relatório da Conferência Episcopal Italiana - CEI sobre abuso não é suficiente. Um celibato mal vivenciado pelos padres pode se tornar um fator de risco”. Entrevista com Hans Zollner
- D. Norberto, bispo de Ji-Paraná, Rondônia: “Se a Igreja tornasse o celibato opcional, talvez mais padres o vivessem por convicção”
- O Sínodo discernirá sobre o celibato facultativo, o diaconato das mulheres e o acolhimento de divorciados e LGTBQ+
- Reabre-se o debate sobre o celibato sacerdotal
- Sobre o celibato na Igreja Católica nunca se deixa de discutir. Artigo de Giovanni Maria Vian
- Balanço provisório do pontificado. Os dez problemas não resolvidos do Papa Francisco
- Suíça: Bispo de Saint Gallen diz que “o celibato pode ser abolido amanhã”
- França: celibato e viri probati
- “O celibato deve ser voluntário”. Entrevista com Katharina Kluitmann
- “O celibato dos padres não é um dogma”. Entrevista com Reinhard Marx, cardeal-arcebispo de Munique
- Celibato, mulher e ministério eclesial. Artigo de José I. González Faus
- “O celibato e o sacerdócio masculino são práticas tardias na Igreja”. Entrevista com Juan José Tamayo
- O celibato dos padres: uma proposta
- A Igreja Católica alemã aprova a abertura a padres casados por grande maioria
- El Pastor, o livro que revela o lado mais íntimo de Francisco: “Nunca fui filiado ao partido peronista”
- Papa autoriza padres casados orientais no Ocidente. Eis como
- Abusos, celibato, família, liberdade religiosa... Os temas tratados pelo Papa na viagem de retorno a Roma
- Em novo livro, papa emérito Bento XVI quebra o silêncio para falar sobre o celibato sacerdotal
- "Estão faltando padres". A questão dos 'viri probati'. Entrevista com Alphonse Borras, canonista belga - Parte 2
- “Estão faltando padres”. Entrevista com Alphonse Borras, teólogo belga - Parte 1
- Por um novo modelo de presbíteros para as comunidades
- Caso Abbé Pierre: por que precisamos falar sobre isso
- "Imagem de Abbé Pierre será, a partir de agora, a de um predador sexual", diz diretor de sua fundação
- Abbé Pierre: a sombra do abuso. Artigo de Lorenzo Prezzi
- O escândalo do Abbé Pierre: "o que importa é que as vítimas falem". Entrevista com Véronique Margron
- O affaire Abbé Pierre, a idolatria do Deus prevaricador. Artigo de Paolo Rodari
- Carta aberta de René Poujol ao seu meu amigo Henri, conhecido como Abbé Pierre
- França. Abbé Pierre é acusado de abuso sexual: a denúncia de sete mulheres
- Memória de Abbé Pierre no centenário de seu nascimento (1912-2007)
- Abusos na Igreja: o massacre francês
- França. Abuso sexual na Igreja: dois anos depois de seu relatório, as dúvidas de Jean-Marc Sauvé
- O que há por trás dos abusos na Igreja? Artigo de Marcelo Neri
- Ordens religiosas na França reforçam a luta contra os abusos sexuais
- França: religiosos denunciam "a cultura eclesial, pastoral e teológica" que fomentou a cultura do abuso
- França-abusos: clareza e reparação. Artigo de Lorenzo Prezzi
- Abusos na França, dor e vergonha. De Moulins-Beaufort: verdade, única forma
- O Papa apoia o 'relatório Sauvé' e a venda de bens da Igreja francesa para indenizar as vítimas de pedofilia
- O Relatório Sauvé, de acordo com o padre Hans Zollner, é metodologicamente válido
- Dois em cada três católicos franceses não confiam na Igreja após o escândalo do 'Relatório Sauvé'
- O Apocalipse francês: a investigação do relatório Sauvé
- França. Violência sexual: Jean-Marc Sauvé mobiliza deputados ante "um desastre social e de saúde"
- “Fomos confrontados com o mistério do mal”. Entrevista com Jean-Marc Sauvé, presidente da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na França
- França: o Relatório da Ciase em questão
- “O termo ‘sistêmico’, que aparece no relatório da Ciase, nos deixou pasmos”. Entrevista com Luc Ravel, arcebispo francês
- França: o magistério das vítimas