29 Outubro 2025
"Em síntese, a mística e a espiritualidade na pastoral de moradia são o coração de uma fé encarnada, que não se contenta com palavras, mas se faz tijolo, canto e comunidade. Revelam que a luta por moradia é também uma busca por sentido, dignidade e transcendência. No gesto simples de erguer uma casa ou conquistar um teto, o povo constrói também um altar de vida, onde Deus habita entre os pobres e faz de sua presença promessa de libertação".
O artigo é de Frei Betto, escritor e autor de Cartas da Prisão (Companhia das Letras), entre outros livros.
Eis o artigo.
A pastoral de moradia no Brasil nasceu e se fortaleceu em meio às contradições urbanas de um país que cresceu sem garantir o direito à habitação. Nos morros, nas periferias e nas ocupações, o povo pobre construiu sua casa, sua comunidade e também sua fé. É nesse chão concreto de lutas e esperanças que a mística e a espiritualidade se tornam forças vitais, sustentando a ação pastoral que busca unir fé e justiça social.
A mística, no sentido mais profundo, é a experiência do encontro com o Mistério que habita todas as coisas. Não se trata de algo etéreo ou distante, mas de uma energia interior que move a ação transformadora. Nas pastorais de moradia, essa mística se expressa na partilha, na solidariedade e na convicção de que “Deus habita com seu povo” — especialmente com os que não têm onde morar. Cada mutirão de construção, cada assembleia em barraco improvisado, cada oração feita sobre o chão batido é sinal da presença divina que se encarna na vida dos pobres.
A espiritualidade, por sua vez, dá forma e profundidade a essa experiência. É o modo como o povo traduz sua fé em gestos concretos. Para muitos agentes da pastoral, a espiritualidade não se restringe a ritos ou dogmas, mas é um jeito de caminhar com o povo, escutar suas dores e esperanças, rezar a partir da realidade.
Essa espiritualidade libertadora, inspirada na teologia da libertação, entende que a fé cristã se torna plena quando se compromete com a dignidade humana e a transformação das estruturas injustas.
No Brasil, a pastoral de moradia surgiu na década de 1970, em diálogo com as comunidades eclesiais de base e os movimentos populares urbanos. Sua mística foi forjada nas ocupações de terrenos, nos despejos, nos enfrentamentos com a polícia, na defesa dos direitos humanos, nas reuniões noturnas em capelas e centros comunitários.
É a mística dos que acreditam que Deus não quer ninguém sem casa, dos que oram e, ao mesmo tempo, levantavam paredes. Uma espiritualidade que se alimenta da Bíblia, mas também da enxada, do cimento e da esperança.
Essa dimensão mística é o que mantém viva a pastoral diante das dificuldades políticas e institucionais.
Em tempos de avanço da especulação imobiliária, de criminalização dos movimentos sociais e de enfraquecimento das políticas públicas de habitação, a espiritualidade torna-se resistência, lembra que o sonho de uma casa própria é mais do que um projeto econômico: é o desejo de um lugar de pertencimento, de segurança e de vida digna.
Quando a pastoral ajuda uma família a conquistar sua moradia, ajuda também a reconstruir a confiança no futuro.
É importante notar que a mística da pastoral de moradia não é isolada nem exclusivamente cristã. Ela se abre ao diálogo com outras tradições religiosas, com sabedoria popular e os valores culturais das comunidades. Rezar juntos antes de uma reunião, cantar músicas que falam de luta e fé, demonstrar solidariedade a quem foi despejado. Tudo isso forma uma teia espiritual que une as pessoas em torno de um mesmo ideal. A espiritualidade da moradia é, portanto, comunitária e plural, marcada pela convivência, partilha e resistência.
A mística pastoral tem uma dimensão profundamente política. Não se trata apenas de uma fé privada, mas de uma espiritualidade que se encarna na ação coletiva. Ao reivindicar políticas públicas de habitação, ao denunciar a exclusão urbana, ao exigir terra para morar, a pastoral afirma que a justiça social é parte essencial do Evangelho. Como dizia Dom Helder Câmara, “a mística é o motor da profecia”: sem espiritualidade, a luta se torna árida; sem luta, a espiritualidade corre o risco de ser alienante.
Nos últimos anos, a pastoral de moradia tem buscado resgatar essa dimensão mística diante dos novos desafios urbanos. A crise habitacional, o aumento do aluguel e a elitização dos espaços urbanos colocam milhões de famílias em situação precária. Diante disso, é preciso renovar a esperança e reafirmar que a fé cristã não pode se conformar com a desigualdade. A espiritualidade pastoral convida à comunhão e à solidariedade, lembrando que todos somos peregrinos em busca de uma morada nessa nossa Casa Comum, símbolo do Reino de Deus.
Em síntese, a mística e a espiritualidade na pastoral de moradia são o coração de uma fé encarnada, que não se contenta com palavras, mas se faz tijolo, canto e comunidade. Revelam que a luta por moradia é também uma busca por sentido, dignidade e transcendência. No gesto simples de erguer uma casa ou conquistar um teto, o povo constrói também um altar de vida, onde Deus habita entre os pobres e faz de sua presença promessa de libertação.
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