28 Outubro 2025
Muitos religiosos e religiosas pertencem a congregações e ordens fundadas durante o regime de cristandade, baseadas naquela lógica e teologia, com um governo geral e com leis aprovadas pelo Vaticano e dependentes do Papa e da Cúria Romana.
O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro, publicado por “Adista” – Documenti – nº 37 de 25-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Muitos se perguntam como se explica o fato, hoje, em todos os continentes, da maioria das paróquias católicas ainda expressarem um catolicismo devocional, típico da época de nossas avós. Na América Latina, mesmo em paróquias e dioceses onde, há algumas décadas, eram realizadas reuniões de comunidades eclesiais de base e círculos bíblicos, hoje se celebram apenas novenas aos santos, seguidas do terço e da adoração ao Santíssimo Sacramento. Muitos padres, em sua maioria jovens, dão mais importância às vestes litúrgicas do que à missão de testemunhar o plano divino no mundo, recorrendo a um séquito de dez ou doze coroinhas, todos vestidos com túnicas vermelhas, para celebrar a missa.
Alguns atribuem tudo isso aos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que, na prática, fizeram de tudo para promover um retorno ao regime de cristandade ou dar vida a uma espécie de neocristandade.
Sem dúvida, essa tentativa de reviver a cristandade também beneficiou mudanças socioculturais que afetaram a sociedade internacional a partir da década de 1990, após a queda da Cortina de Ferro e o fim da União Soviética, com o advento da globalização neoliberal.
Desde a década de 1970, o governo dos Estados Unidos havia percebido a necessidade de apoiar grupos pentecostais na América Latina para contrabalançar a influência do cristianismo da libertação entre a população. Hoje, o presidente Donald Trump anuncia a criação de um Escritório da Fé na Casa Branca, chefiado pela reverenda Paula White, "conselheira religiosa" do presidente e "tele-evangelista".
Não pode deixar de chamar a atenção como, mais uma vez, movimentos políticos e religiosos se entrelaçam para exercer influência sobre a sociedade e controlar o poder político.
Atribuir a involução eclesiológica que estamos vivenciando aos papas que precederam Francisco pode eximir os atores mais próximos e diretos de qualquer responsabilidade. Se bispos, sacerdotes e grupos católicos locais, mesmo aqueles com uma visão eclesial mais aberta, não tivessem sido imbuídos de uma cultura religiosa derivada da cristandade, dificilmente as autoridades romanas das últimas décadas e seus embaixadores nas nunciaturas teriam tido tanto sucesso em dar ao mundo a impressão de que o Concílio Vaticano II foi inútil ou serviu apenas para dar nova demão de tinta nos muros da cristandade medieval.
Na Igreja Católica, nos tempos de João Paulo II e Bento XVI, a nomeação de bispos em sua maioria conservadores mudou a face do episcopado na América Latina e no mundo. No entanto, hoje, mesmo em dioceses onde os bispos são pastores esclarecidos que apoiam a pastoral social, algo mudou de maneira essencial. São precisamente o clero e os grupos católicos que estão optando por um catolicismo puramente devocional e cada vez mais romanocêntrico.
Convido-os a tentar compreender esse fenômeno, complexo em suas motivações e expressões, mas caracterizado pela tentativa de um retorno à cultura e à espiritualidade da cristandade.
Ao propor essa reflexão, entro em diálogo com vocês, companheiros e companheiras de caminho, como "irmão e companheiro de vocês no sofrimento" (algo que certamente não falta no momento atual), "no Reino" (a esperança de ver o plano divino realizado no mundo) e "na perseverança em Jesus" (Ap 1,9).
1 – A cristandade está morta, mas continua sendo uma referência eclesial
Em julho de 2025, realizou-se na Universidade Católica de Belo Horizonte o 40º Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências Religiosas (SOTER). Na manhã do penúltimo dia, Dom Joaquim Mol, bispo auxiliar da diocese de Santos, e a professora Maria Clara Bingemer, teóloga e professora da Universidade Católica do Rio de Janeiro, proferiram uma brilhante palestra sobre os 60 anos do Concílio Vaticano II e seu legado para a teologia contemporânea, mostrando as imensas mudanças que os documentos do Vaticano II e suas intuições teológicas e pastorais trouxeram para a Igreja Católica e outras Igrejas.
No início, o bispo citou o Papa Francisco, afirmando: "Não estamos mais na cristandade. Não mais!". E continuou: "A cristandade acabou, ainda que alguns insistam, provocando amargura e desorientação, em querer reavivá-la, como se tenta reanimar um cadáver em decomposição."
A cristandade como religião civil pode até mesmo estar obsoleta, embora no Brasil e em outros países a própria Conferência Episcopal esteja empenhada em defender documentos como a Concordata, segundo a qual a hierarquia católica se sente no direito de desfrutar de certos privilégios civis em setores importantes como a educação e a isenção fiscal. Mas, embora a sociedade tenha mudado e as Igrejas tenham sido forçadas a isso, a cultura da cristandade permanece viva.
Paróquias e dioceses continuam a ser organizadas segundo o modelo da cristandade. Até mesmo irmãos e irmãs que atuam em um campo teológico novo e mais crítico, na realidade, consciente ou inconscientemente, vivem dentro de um modelo de Igreja que está, pelo menos simbolicamente, ligado à cristandade. Talvez não tenham alternativa. Eles acreditam que a única Igreja existente é a tradicional, baseada no poder sagrado e organizada de acordo com a eclesiologia da cristandade.
Na década de 1990, tornou-se público um debate entre o Cardeal Joseph Ratzinger e o Cardeal Walter Kasper, no qual Ratzinger argumentava que a Igreja universal precede as Igrejas locais, que dela dependem, enquanto o Cardeal Kasper defendia a posição mais fiel do Concílio Vaticano II: isto é, que a Igreja é essencialmente local. A Igreja universal é a comunhão das Igrejas locais e, portanto, depende das Igrejas locais. A Igreja de Roma desfruta da primazia nessa comunhão, mas deveria exercê-la não em termos de poder, mas sim a serviço à unidade de todas as Igrejas.
Nesse diálogo entre os dois cardeais, emergiram duas visões opostas. O Cardeal Ratzinger defendia um modo de ser Igreja que, embora consciente da impossibilidade de reconstituir o regime teocrático da cristandade, visasse manter a organização interna da Igreja, sua missão e sua espiritualidade, próprias daquele modelo. O Cardeal Walter Kasper estava ciente de que sua visão da Igreja ainda era um projeto em construção e uma esperança, vivida por pequenos grupos eclesiais e minorias abraâmicas.
O Concílio Vaticano II definiu a Igreja como povo de Deus e colocou os ministérios ordenados a seu serviço. No entanto, a cultura não muda simplesmente porque a teologia mudou.
Antes do Concílio Vaticano II, o teólogo Yves Congar argumentava que, durante o período da cristandade, a eclesiologia havia sido reduzida à hierarcologia, entendendo na prática a Igreja como sinônimo de hierarquia, uma pirâmide no topo da qual se encontra o Papa. Nesse modelo eclesiástico, o ministério se confunde com a hierarquia, e a sinodalidade é aceita apenas na medida em que o poder hierárquico do Papa, dos bispos e dos sacerdotes permanece intocável. Assim, o clericalismo necessariamente persiste, não como um abuso do sistema eclesiástico, como o Papa Francisco frequentemente denunciou, mas, infelizmente, como expressão normal do próprio sistema.
Em 1975, foi realizado em Vitória, no estado do Espírito Santo, o primeiro encontro intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). O tema do encontro foi "A Igreja que nasce do povo, pela força do Espírito". Hoje, passados 50 anos, quem olha para a realidade da Igreja Católica e de outras Igrejas, no Brasil e no mundo, pode pensar que se tratou apenas de um projeto utópico, experimentado por aquelas minorias que Dom Hélder Câmara definia de abraâmicas, por serem fecundas apesar de sua fragilidade e aspecto minoritário. Hoje, porém, percebemos que talvez não eram tão abraâmicas quanto suposto, considerando que esse projeto parece não ter sobrevivido ao inverno eclesial das últimas décadas.
Mesmo com o clima de abertura permitido pelo ministério do Papa Francisco, não há um clima de abertura nas Igrejas locais. O novo modo de ser Igreja persiste teimosa e profeticamente em pequenos cenáculos de resistência, praticamente ignorados pela maior parte do clero e da hierarquia, justamente nas frestas e brechas do atual projeto de reconstrução da cristandade. Embora frágil, como uma flor em meio a um campo árido, esse projeto carrega consigo a profecia de um novo modo de ser Igreja.
O Papa Francisco conseguiu oferecer ao mundo uma nova perspectiva para a missão das Igrejas. Reafirmou a centralidade da opção pelos pobres, que deveria ser a missão das Igrejas cristãs.
Foi o primeiro papa a condenar claramente o capitalismo (afirmando que "esse sistema mata"). Apresentando-se, em primeiro lugar, como Bispo de Roma, valorizou o significado da Igreja local como modelo de Igreja, em comunhão com as outras. Alertou o mundo para a prioridade da questão ecológica e propôs a Ecologia Integral como elemento essencial da missão da Igreja. Evitou afirmar que o mais importante é o anúncio explícito de Jesus Cristo e que a missão da Igreja é salvar as almas.
No entanto, no que diz respeito à organização interna da Igreja Católica, particularmente no que diz respeito ao clero, à hierarquia e a alguns movimentos religiosos, não parece ter obtido praticamente nada.
E a primeira dificuldade é dada precisamente pelo fato de que a maioria das instituições eclesiásticas, às quais muitos de nós estão ligados, continuam a ser organizadas segundo a lógica da cristandade.
Hoje, em quase todo o mundo, qualquer um pode usar meios de transporte públicos e, em pouco tempo, atravessar a cidade e participar da vida da paróquia ou da comunidade onde se sente mais à vontade. No entanto, até que a ordem venha de Roma, as paróquias católicas ao redor do mundo continuarão a ser territoriais.
Muitos religiosos e religiosas pertencem a congregações e ordens fundadas durante o regime de cristandade, baseadas naquela lógica e teologia, com um governo geral e com leis aprovadas pelo Vaticano e dependentes do Papa e da Cúria Romana. Teólogos e teólogas trabalham diariamente com universidades que se chamam PUC (Pontifícia Universidade Católica). Como podemos entender tudo isso, se não dentro da lógica da cristandade? Muitas congregações administram escolas dedicadas a seus santos e santas fundadores e se atêm a uma educação religiosa com base no pressuposto de que celebrar missas nas escolas e promover a Primeira Comunhão e as festas dos santos padroeiros garantirá a fé cristã dos estudantes.
É essa mesma mentalidade que explica como, em maio de 2025, em pleno século XXI, grande parte da humanidade retornou à Idade Média pela televisão e pela internet para acompanhar o conclave por ocasião da eleição do Papa Leão XIV, quando Cardeais de todo o mundo revitalizaram a pompa pagã, repetindo sem nenhum embaraço o ritual do fechamento das portas da Capela Sistina e o Extra omnes, um ritual decididamente anacrônico no mundo da comunicação virtual e contrário ao Evangelho de Jesus e a tudo o que o Papa Francisco ensinou sobre a natureza e a missão da Igreja: um retorno ao passado até o século XI, quando o mundo católico se identificava com a Europa Ocidental e o papa era escolhido para ser soberano dos Estados Pontifícios e coroar o Imperador do Sacro Império Romano.
Tudo isso me faz lembrar como, em 1966, portanto logo após o Concílio Vaticano II, Dom Hélder Câmara, então Arcebispo de Olinda e Recife, propôs ao Papa Paulo VI que renunciasse ao cargo de chefe de Estado, entregasse o Vaticano à ONU e fosse morar em São João de Latrão, antiga sede do Bispo de Roma. O bispo nunca recebeu resposta do Papa, mas teve a confirmação de que havia recebido sua proposta por meio de uma carta oficial do Cardeal Villot, Secretário de Estado, que afirmava: "Excelência, o Santo Padre recebeu a sua carta e agradece, mas lembra a Vossa Excelência que não vivemos mais nos tempos do Evangelho".
O que motivava Hélder Câmara, e mais recentemente o Papa Francisco, no entanto, não era propriamente um retorno aos tempos do Evangelho, mas o esforço de recuperar o seu Espírito.
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