“Já é muito visível nos Estados Unidos como a discussão da questão racial e de políticas de afirmação positiva não têm mais o mesmo impacto que tinham anteriormente”, afirma a historiadora e antropóloga
Dez anos após o lançamento de Brasil: Uma Biografia, livro que virou referência na interpretação do país ganhará um novo capítulo. Em conversa exclusiva, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz revela que está trabalhando com sua parceira de escrita, Heloisa Starling, em uma nova “conclusão” para o livro. A atualização, segundo ela, não será uma reescrita, mas um adendo necessário para decifrar os anos recentes. Este novo trecho abordará o impacto do governo de Jair Bolsonaro e, de forma central, analisará um fenômeno que a autora considera definidor do autoritarismo brasileiro contemporâneo: a ascensão das igrejas pentecostais.
O diálogo a seguir, baseado em uma troca de mensagens de áudio por WhatsApp, mergulha nos temas que Lilia Schwarcz tem dissecado em sua carreira: a persistência das nossas estruturas autoritárias, o mito da democracia racial e o papel do historiador em tempos de revisionismo digital.
Lilia Schwarcz (Foto: IEA|USP)
A entrevista é de Thiago Gama, doutorando em História Comparada (História da Igreja) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi enviada ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail.
Em seus trabalhos, a longa duração das nossas estruturas autoritárias é um tema central. Diante do trauma recente e da contínua tensão na nossa democracia, a senhora diria que vivemos um capítulo novo desse processo ou uma reencenação, com novas roupagens, de impasses que nunca resolvemos de fato?
Lilia Schwarcz – Sim, sempre penso que história é o que muda, mas é também o que reitera. Porém, não tenho a pretensão de fazer uma espécie de determinismo histórico. A minha inquietação vem a partir da ideia de que certos elementos da nossa estrutura ainda persistem, como a desigualdade, o racismo — que é um legado perverso da escravidão —, a grande propriedade, a concentração dos poderes. Esses são temas da nossa agenda do passado e da nossa agenda do presente.
Acabamos de passar por um episódio que mostrou como as instituições brasileiras funcionam. Se a nossa democracia não é frágil, como toda democracia, diria que é incompleta. Ela é incompleta porque, no Brasil, não temos uma universalidade de direitos. O Brasil é o país mais desigual da América Latina e o sétimo país mais desigual do mundo. Essas diferenças no acesso aos direitos civis, econômicos, políticos, torna a nossa democracia ainda mais frágil. Sobretudo, é uma democracia que está sempre em perigo, no sentido do crescimento dos discursos populistas, como nós temos visto agora em escala global.
Não dá para dizer que é a mesma coisa, porque cada momento, cada contexto apresenta novos desafios. Estamos nesse desafio de pensar o que é o mundo das redes sociais e o mundo em que novos autocratas — no masculino mesmo, brancos em geral — têm compartilhado essa maneira de governo. Um governo muito populista e muito autoritário, pautado na coerção e na censura.
Então, para repetir: sim, história é feita de reiteração, mas é também feita de mudança. Por outro lado, a história nunca se repete igualmente. É preciso também pensar nos desafios, tendo em vista os perfis mais contemporâneos.
A senhora dedicou parte fundamental de sua obra a desnudar o mito da democracia racial. Hoje, com o avanço dos debates e das políticas afirmativas, a senhora percebe uma fratura real no “pacto da branquitude” ou uma reacomodação de suas estruturas de poder, talvez de forma mais sutil?
Lilia Schwarcz – Essa sua pergunta é excelente, muito difícil. Tenho estudado, sim, o mito da democracia racial e, sobretudo, o papel da branquitude. Essa presença ausente é o tema do meu último livro, Imagens da Branquitude: a presença da ausência.
A branquitude é uma espécie de classificação em que aqueles que elaboram a classificação não se auto classificam — as populações brancas que se entendem como neutras e sem raça, quando têm raça, sim. A branquitude é uma espécie de norma que vale para os outros, mas não para aqueles que realizam essas normas e que não se nomeiam. Por isso, ela é um pacto silencioso. Um pacto narcísico, como diria a Cida Bento.
No entanto, desde os anos 1970, e graças aos movimentos negros, o tema tem aparecido de maneira mais frequente na nossa agenda contemporânea. Isso tem criado um processo muito importante na sociedade brasileira, em que não é mais tão fácil negar a existência de preconceito racial, como era comum até antes desse período. As pessoas simplesmente negavam o racismo. Agora, a questão das cotas e das ações afirmativas estão mais presentes no ambiente educacional, no ambiente do empreendedorismo. Mas essa é uma ferida profunda da sociedade brasileira.
Nós costumamos falar de traumas no sentido mais individual: o trauma produz silêncios se não for tratado, veiculado, vocalizado. Mas penso em traumas também no sentido coletivo. A questão racial no Brasil é um tema que durante muito tempo ganhou o nosso silêncio. E o silêncio não é bom para lidar com traumas e grandes contradições.
O Brasil, nós sabemos, foi o último país a abolir a escravidão mercantil. Existem ainda outras formas de escravidão no Brasil, porque a escravidão virou uma linguagem no país. O Brasil teve escravizados e escravizadas em todo seu território e foi o país que recebeu o maior contingente de pessoas negras sequestradas do seu continente africano e provenientes de várias nações. Isso tudo criou uma naturalização da desigualdade e o racismo virou uma linguagem no Brasil. É preciso que enfrentemos essa grande contradição. Como? Tratando dela, falando dela.
Diferentemente dos Estados Unidos, que tem uma minoria da população autodeclarada de African-American – corresponde de 13 a 17% a depender do censo –, no Brasil estamos falando de uma população que é maioria. 56.4, segundo o último censo, se nós colocarmos junto o critério de pessoas pretas e pardas, conforme a classificação do IBGE.
Então, como diz Richard Santos – e eu também trabalho muito com esse conceito –, estamos nos referindo a maiorias minorizadas. Minorizadas aonde? Minorizadas na representação.
Então, lhe diria que não é verdade que superamos essa questão. Claro que não. Mas, pelo menos, estamos veiculando, falando dela.
Agora, eu temo o futuro. Por que que eu temo o futuro? Porque, esses mesmos governos autocráticos, aos quais me referi, têm produzido uma espécie de backlash. Já é muito visível nos Estados Unidos como a questão racial, a discussão da questão racial e de políticas de afirmação positiva não têm mais o mesmo impacto que tinham anteriormente, haja visto empresas como a Google, que tinha práticas de ação afirmativa e as têm retirado crescentemente. E esse discurso tem ganhado também impacto no Brasil.
Então, será preciso avaliar o que vem por aí, mas é preciso que a sociedade civil brasileira se mobilize por direitos. E nessa mobilização, não podem estar só e tão somente as populações discriminadas, as populações negras. É preciso que a branquitude assuma o seu lugar. Não uso branquitude como categoria de acusação. A branquitude precisa se converter numa ferramenta de análise para que possamos, de fato, enfrentar essa que é uma das grandes contradições da sociedade brasileira e que está na base da nossa desigualdade social.
Como uma das intelectuais públicas mais importantes do país, como a senhora enxerga o papel do historiador hoje? Em uma era de revisionismos instantâneos e da velocidade das redes sociais, como podemos disputar a narrativa do passado de forma eficaz, mas sem abrir mão do rigor?
Lilia Schwarcz – Essa definição de “mais importantes intelectuais públicas do país”, com certeza não sou, mas posso responder à questão, sim.
Eu não tinha redes sociais. Entrei por conta do contexto do governo de Jair Bolsonaro, do revisionismo que ele praticou e como ele usou a história como uma espécie de player mesmo. Essa era a história que ele recontava: tanto a ideia de que nós tivemos não uma invasão, mas um descobrimento, e o papel da Igreja, mas sobretudo o revisionismo no que se refere à ditadura militar. Ele fez um grande elogio à ditadura. Tentou apagar a máquina, como diz Heloisa Starling, de morte produzida pela ditadura.
E eu fui às redes justamente para combater esse tipo de discurso. Como fazer isso? Eu acho que durante muito tempo os setores progressistas agiram com muito preconceito com as redes sociais. A primeira eleição no Brasil ganha pelas redes sociais foi a de Jair Bolsonaro. E os setores progressistas não estavam preparados para isso. Como não estão. Ainda, eu venho e devo tudo à academia, à USP, sou uma pessoa formada pela universidade pública de qualidade, mas durante muito tempo a universidade teve muito preconceito com relação a esse tipo de produção de boa informação.
Eu sou uma pessoa que acredito na boa informação. E essa boa informação precisa ganhar o tamanho, o local, a plataforma que for necessária. Eu trabalho muito com releituras, com essa ideia de contra memórias, e trabalho muito com imagens também. E como as imagens têm sido profundamente manipuladas sem uma leitura crítica das mesmas.
Então, enfim, penso que é possível manter o rigor. Continuo publicando meus livros, publicando ensaios em revistas acadêmicas, participando de núcleos de pesquisa do CNPq, dou aulas na USP, dou aula em Princeton, mas acho que nós precisamos disputar esse espaço das mídias sociais com qualidade, com boa informação. Não só os excelentes jornalistas investigativos, mas também historiadores, cientistas sociais de uma forma geral, no sentido de dar informações avalizadas para a população.
O debate global sobre a ressignificação de monumentos e da memória pública tem sido intenso no Brasil. Como a senhora, que estudou a fundo a construção dos nossos símbolos nacionais, analisa esse processo? Trata-se de um necessário acerto de contas com o passado ou corremos o risco de cair em anacronismos que mais apagam do que iluminam a história?
Lilia Schwarcz – Penso que a história sempre foi feita a partir de novas perguntas. Então, nós vivemos, sim, um novo momento. Um momento em que consideramos que a nossa historiografia, durante muito tempo, foi uma historiografia muito ocidental, muito pautada por modelos ocidentais de produção do passado. Uma historiografia que usava de fontes muito coloniais. Uma historiografia também muito masculina e muito branca.
Acho que há todo um movimento historiográfico da maior importância nesse sentido. Não se trata de destruir nada, mas se trata de acrescentar muito.
Então, por exemplo, no que se refere à história da nossa Independência. Não vamos negar que existiu o 7 de setembro de 1822. Mas é preciso dizer que no contexto em que o evento aconteceu, ele não teve significação alguma. Que essa significação só foi crescentemente construída, primeiro por Pedro I, em 1823, que foi o primeiro a mencionar o “grande evento às margens do Ipiranga”, e depois em 1922, quando São Paulo, de alguma maneira, sequestra a independência para um universo paulista, aventuroso e progressista.
Hoje, nós sabemos também que o 7 de Setembro foi começo de conversa, não final. Se a gente for pensar o processo de independência na Bahia, foi um processo muito mais popular, com mais lutas. Então, esse mito da nossa independência pacífica, palaciana, precisa ser revisto.
Como nós faremos isso? Aí, vamos estudar. Particularmente, não me parece que vamos destruir monumentos, não é dessa maneira. Nós precisamos questionar esses monumentos. Precisamos entender por que, 97% – num levantamento que fizemos há pouco tempo na USP – dos monumentos são eminentemente de homens e homens brancos. Por que é que nomes de avenidas ainda mantêm homenagens a ditadores?
Então, a minha perspectiva não é de eliminar nada, mas é de tornar a nossa visão muito mais crítica. E, no que se refere aos monumentos, produzir monumentos alternativos. Monumentos que tenham mais mulheres, pessoas negras, pessoas indígenas, outros eventos históricos. Assim como devemos questionar, sim, figuras como os Bandeirantes, que foram, de fato, apresadores de negros e apresadores de indígenas.
Então, não vale contar a história pela metade, né? É melhor que a gente conte a história a partir desses vários ângulos. Só assim teremos uma história de braços dados com a democracia.
Se Brasil: Uma Biografia ganhasse um novo capítulo, não sobre o passado, mas como uma prospecção para as próximas décadas, qual seria o conflito central, o principal enredo, que a historiadora Lilia Schwarcz identificaria como definidor para o futuro do país?
Lilia Schwarcz – Heloisa e eu vamos fazer um novo capítulo. Conversávamos sobre isso ontem – e tu vês a coincidência. Não vamos reescrever o livro, mas vamos incluir bastante. Vamos incluir mais a importância de personagens femininas, e não só numa perspectiva de transformá-las em heroínas, mas de incluir mais diversidade, de tornar a nossa história mais interessante nesse sentido.
Nesses dez anos depois da publicação de Brasil: Uma Biografia, nós passamos por muitos processos. O processo do governo Jair Bolsonaro foi muito significativo para o Brasil. Talvez a grande questão seja: de que democracia nós estamos falando? Que democracia nós queremos, uma vez que conceitos como democracia e livre arbítrio passaram a fazer parte de um grupo de extrema-direita que os maquiou de forma muito clara e muito séria?
Então, acho que se formos escrever, a questão será perguntar de que democracia nós falamos agora, em 2025, e que projeto temos de democracia para os anos futuros, pensando que democracia é sempre um projeto inconcluso.
Essa é a falácia e essa é a beleza desse regime. Beleza porque na democracia sempre cabem mais direitos. Falácia porque é preciso lutar por direitos, conquistar direitos.
Como adendo à sua resposta sobre o futuro capítulo de Brasil: Uma Biografia, a professora Lilia Schwarcz acrescentou, por mensagem de texto, um ponto que considera definidor para o enredo do país nas próximas décadas.
Além da complexa redefinição do conceito de democracia, Schwarcz destacou um elemento que, segundo ela, é indissociável do autoritarismo recente: “a questão das religiões pentecostais é central ao autoritarismo brasileiro”.
Ela confirmou que o tema “também entrará nessa nova ‘conclusão’ de Brasil uma biografia. A historiadora justificou a necessidade da inclusão como uma atualização à análise original, explicando que, à época da primeira publicação do livro, ela e Heloisa Starling “não tínhamos visto o fenômeno crescer dessa maneira”.