10 Outubro 2025
"Todas as noites, meus colegas e eu nos despedíamos dizendo: 'Espero vê-los amanhã!'. Aquele 'espero' retrata toda a Gaza de hoje, a Gaza que sangra à medida que se aproxima da solução final desse genocídio que já dura há dois anos", escreve Martina Marchiò, coordenadora médica de Médicos Sem Fronteiras em Gaza, em artigo publicado por La Stampa, 09-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Ontem à noite sonhei com a guerra, sonhei que estava no meio dela, sem saída. Sonhei que queria rever um amigo e que estava bloqueada, impossibilitada de alcançá-lo. Gritava seu nome, mas ele não estava mais lá. Quando eu estava em Gaza poucos meses atrás, alguns dos meus colegas ficaram feridos, alguns de seus familiares morreram, lembrando-nos de que ninguém está imune nessa prisão a céu aberto onde não existe um lugar seguro.
Lembro-me do momento em que Ibrahim e sua família ficaram feridos; levados de urgência para o hospital e sobreviveram. Ele foi arremessado por uma explosão que atingiu o prédio ao lado do seu. Perdeu a consciência e acordou coberto de sangue, gritando pelos filhos e pela esposa grávida. Alaa, por sua vez, estava sentada à minha frente quando o telefone tocou e uma voz do outro lado da linha lhe disse que seu irmão havia morrido em uma explosão na rua.
Mohammed, Alaa, Ahmad, Mahmoud, Reem, Fadi, Nasser, Hasan, Bilal, Alaa, Hussam, Abdullah, Hussein, Omar, Abed. Esses são os nomes dos 15 colegas dos Médicos Sem Fronteiras mortos desde 7 de outubro de 2023. Omar e Abed morreram nos últimos dias devido aos ferimentos sofridos em um ataque na rua, enquanto estavam no ponto de ônibus, como faziam todos os dias naquele mesmo horário, vestindo suas camisetas com a logo vermelha. Hussein morreu em julho, sua tenda destruída enquanto o prédio ao lado se despedaçava e centenas de pedaços de detritos caíam sobre seu corpo inerme. Ele era um bom enfermeiro, marido e pai de três filhos. Ele tinha um sorriso largo; eu achava que nunca tinha visto tantos dentes.
Todas as noites, meus colegas e eu nos despedíamos dizendo: "Espero vê-los amanhã!". Aquele "espero" retrata toda a Gaza de hoje, a Gaza que sangra à medida que se aproxima da solução final desse genocídio que já dura há dois anos. O maior medo dos meus colegas palestinos era morrer como números em outra manchete de jornal, sem serem lembrados. Rewaa, uma colega minha, escreveu-me uma noite em pânico, enquanto os ataques já estavam sobre sua cabeça: "Se eu acabar morrendo como minha mãe e minha irmã, lembre-se do meu nome, que eu tinha dois filhos e adorava ser enfermeira!"
Outro medo era o de morrer sob os escombros, sozinhos, no meio da dor. Ser esmagados por toneladas de detritos, sem nunca ser retirados. Nas paredes desabadas de alguns prédios, são escritos os nomes das pessoas que ainda estão lá embaixo há meses, para não serem esquecidos. Enquanto eu estava em Gaza, minha colega Kholoud muitas vezes me pedia para beliscá-la: "Quero ter certeza de que estou viva e preciso controlar que esse não é apenas um pesadelo. Talvez eu possa acordar e me reencontrar na minha antiga vida!" Até o momento, 562 trabalhadores humanitários foram mortos, 1.670 profissionais de saúde perderam a vida, 254 jornalistas foram mortos enquanto tentavam testemunhar o horror de Gaza e mais de 800 professores morreram.
Meu coração estremece toda vez que ouço notícias de um ataque a um dos hospitais ou das clínicas onde os Médicos Sem Fronteiras trabalham. A saúde está sob constante ataque; a Cidade de Gaza está sob um pesado cerco, e fomos obrigados a suspender as atividades na cidade. A área central, onde continuamos operando e que deveria ser aquela segura, continua sendo bombardeada. Infraestrutura civil, instalações ligadas a serviços, água, alimentos e saúde estão sendo atingidas. Hospitais e clínicas estão em colapso por causa da fronteira quase completamente fechada e do afluxo maciço da população: 900.000 pessoas fugiram da Cidade de Gaza, outras centenas de milhares ainda estão presas lá. É angustiante saber que não há mais tempo para Gaza, enquanto o mundo finalmente está indo para as ruas, talvez tarde demais, porque na Faixa parecem tocar os acordes finais desse genocídio.
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