Karl Rahner: fidelidade e inovação teológica no século XX. Artigo de José F. Castillo Tapia

Karl Rahner (esquerda) | Foto: Jesromtel/Wikimedia Commons

11 Outubro 2025

"Por tudo isso, Karl Rahner permanece um teólogo de referência obrigatória. Suas intuições (...) representam um serviço criativo à Igreja, ajudando-a a proclamar com vigor renovado, ao homem do século XX e além, a perene novidade de Jesus Cristo, Salvador de todos", escreve José F. Castillo Tapia, SJ.

José F. Castillo Tapia é padre jesuíta. Nasceu em Granada. Trabalha na Amazônia brasileira apoiando povos indígenas. Graduado em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade Comillas e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) de Belo Horizonte (Brasil).

Eis o artigo.

Introdução

Karl Rahner (1904-1984) foi um dos teólogos católicos mais influentes do século XX, contribuindo de forma decisiva para a renovação teológica que culminou no Concílio Vaticano II. Contudo, sua obra não esteve imune a controvérsias. Setores mais tradicionalistas e tomistas o acusaram de se desviar da teologia clássica de Santo Tomás de Aquino e até de flertar com erros doutrinários. Críticos sustentam que Rahner teria substituído pilares da escolástica por abordagens antropológicas e filosóficas modernas, comprometendo a ortodoxia católica. Este artigo busca examinar essas críticas e, em diálogo com fontes primárias de Rahner e análises acadêmicas, demonstrar que suas inovações metodológicas não traíram o núcleo da fé cristã. Ao contrário, Rahner permanece fiel à Tradição, esforçando-se por expressar a fé perene em uma linguagem inteligível ao homem contemporâneo. Com base em sua antropologia transcendental, sua teologia do mistério e o conceito de “cristão anônimo”, defenderemos que Rahner atuou dentro da ortodoxia católica, enriquecendo-a com novas perspectivas sem romper com seus fundamentos.

1. Críticas à Teologia de Karl Rahner

As principais críticas dirigidas a Rahner podem ser resumidas em dois eixos: (1) alegado desvio em relação ao tomismo e (2) possível comprometimento de verdades doutrinárias tradicionais. No primeiro eixo, detratores afirmam que Rahner se afastou “absolutamente em tudo” do pensamento de Santo Tomás de Aquino [1]. Em uma análise representativa, o padre tomista Jaime Mercant Simó chega a dizer que Rahner, considerado “pai da ‘nova teologia’”, causou “muitíssimo dano à reta Doutrina Católica” com concepções teológicas e filosóficas “erradas” e “nas antípodas do Tomismo”, cuja influência perdura de modo danoso na Igreja [2]. Tais críticos veem em Rahner uma “metafísica deformada” de cunho transcendental e antropocêntrico, derivada da fusão entre teologia e filosofia moderna, o que caracterizariam como uma espécie de modernismo disfarçado. Em suma, acusa-se Rahner de substituir os fundamentos da filosofia tomista (como a analogia do ente) por novos paradigmas como a analogia do mistério, deslocando o foco de Deus enquanto Ser absoluto para Deus enquanto Mistério absoluto [3]. Essa mudança metodológica gerou suspeitas de que sua teologia teria abandonado o rigor metafísico tomista em favor de um existencialismo vago.

No segundo eixo de críticas, questiona-se a ortodoxia de certas teses rahnerianas, especialmente no tocante à graça e à salvação. O Cardeal Giuseppe Siri, por exemplo, resumiu “o núcleo do erro teológico de Karl Rahner” naquilo que chamou de “concepção do sobrenatural não gratuito” [4]. Segundo Siri, ao afirmar que o elemento sobrenatural (a graça) está necessariamente unido à natureza humana, Rahner eliminaria a gratuidade da graça divina – que deixaria de ser um dom livre de Deus – tornando-a praticamente automática e imposta ao homem. Desse ponto de vista, a noção rahneriana de um “existencial sobrenatural” em todo ser humano implicaria que a presença de Deus na alma independe da livre aceitação da fé, tornando supérfluo o ato de fé e esvaziando a necessidade de conversão pessoal para a salvação. Em termos incisivos, Siri alerta que, “se fosse verdadeiro o que sustenta Rahner”, chegar-se-ia “à inutilidade do ato de fé, porque ‘na minha essência Deus se faz presente’... Deus já faz parte de mim, queira eu ou não” [5]. Essa leitura crítica enxerga na teologia da graça de Rahner uma ameaça ao princípio da gratia gratis data, isto é, a graça dada livremente por Deus e que pode ser aceita ou rejeitada pela liberdade da criatura.

Outra frente de críticas recai sobre o célebre conceito rahneriano do “cristão anônimo”. Alguns teólogos temem que ao afirmar a possibilidade de pessoas não batizadas viverem na graça de Cristo de forma implícita (como “cristãos anônimos”), Rahner minimize a necessidade da fé explícita e da Igreja para a salvação. Argumenta-se que essa teoria acabaria por “minusvalorizar a divina revelação” e a própria necessidade do batismo para a salvação [6]. Críticos como Mercant Simó sustentam que as ideias de “cristianismo anônimo” e “existencial sobrenatural”, ao ampliarem excessivamente o alcance da graça, tornariam dispensável a proclamação do Evangelho, desestimulando a missão da Igreja [7]. Nesse sentido, autores vinculados a correntes mais tradicionalistas veem Rahner como responsável por certo indiferentismo religioso pós-conciliar, no qual a pertença visível à Igreja e a adesão explícita a Cristo seriam relativizadas. O padre Julio Meinvielle, por exemplo, intitulou um de seus textos “A pregação missionária da Igreja desalentada em Karl Rahner”, sugerindo que sua teologia reduziria o ímpeto missionário, já que todos estariam de algum modo já evangelizados pela graça interior.

Por fim, críticos apontam uma ambiguidade doutrinária nos escritos rahnerianos. Sua ênfase na experiência transcendental de Deus e na dimensão histórica da compreensão da fé levaria a uma atitude de menor apreço por definições dogmáticas precisas. Mons. Giampaolo Crepaldi chegou a listar consequências negativas atribuídas à influência de Rahner:

A dogmática se converte em história dos dogmas; a pastoral precede a doutrina; o pecado é substituído por níveis de bem; a relação Igreja-mundo é pensada em termos de igualdade... os dogmas são desmitificados para torná-los compreensíveis ao homem secularizado; a secularização é vista como positiva... a metafísica é substituída pela hermenêutica e a doutrina é historicizada [8].

Essa série de críticas reflete o receio de que Rahner teria inaugurado um horizontalismo teológico, excessivamente focado no homem e na história, em detrimento da transcendência de Deus e da imutabilidade dos ensinamentos da Igreja.

Resumindo, os detratores de Rahner o acusam de: (a) trair o tomismo pela adoção de filosofias modernas (Kant, Heidegger) e um giro antropocêntrico; (b) diluir verdades dogmáticas ao privilegiar a experiência subjetiva do “Mistério” sobre definições objetivas; (c) tornar quase automática a presença da graça (eliminando sua gratuidade) e (d) relativizar a necessidade da fé e da Igreja para a salvação através do conceito de “cristão anônimo”. Resta averiguar, porém, se essas acusações se sustentam frente a uma leitura rigorosa das obras de Rahner e de seus comentadores autorizados. A seguir, confrontaremos tais críticas com os argumentos teológicos e filosóficos do próprio Rahner e de estudiosos de sua teologia.

2. A Antropologia Transcendental de Rahner: Natureza, Graça e Mistério

Antropologia transcendental é o termo com que se descreve o núcleo do método rahneriano. Trata-se de uma abordagem que parte da condição humana para falar de Deus: o ser humano, para Rahner, possui uma abertura inata ao Mistério transcendente. Em outras palavras, nosso espírito é estruturalmente orientado para Deus. Rahner afirma que o ser humano é, em sua essência, “ouvinte da Palavra” divina (Hörer des Wortes) – um ser criado com capacidade receptiva para a Revelação. Essa orientação fundamental não deriva de uma necessidade da natureza por si mesma, mas decorre de um dom divino: a graça presente em todo homem e mulher como oferta sobrenatural permanente. Rahner denomina essa disposição de existencial sobrenatural, indicando que há um elemento sobrenatural constitutivo na existência humana, fruto da livre autocomunicação de Deus. Segundo ele, “a graça... está ligada estruturalmente ao ser humano e, por natureza, é inerente e inseparável a cada ser humano” (MONDIN, 1979, p. 109). Em síntese, a graça de Deus, para Rahner, não é algo exterior ou acrescentado ocasionalmente à natureza, mas um presente contínuo que funda no próprio ser do homem uma capacidade de conhecer e amar a Deus.

É crucial salientar que, ao formular essa tese, Rahner não nega a gratuidade da graça – pelo contrário, a enfatiza de forma radical. Ele redefine a compreensão de graça como autocomunicação do próprio Deus. Nas palavras do teólogo: “a graça não é a comunicação de uma realidade sobrenatural diversa de Deus. ... A graça incriada é a autocomunicação do próprio Deus” (RAHNER, 1989, p. 87). Ou seja, o dom que Deus concede não é algo diferente d’Ele mesmo; é o próprio Deus que Se dá à criatura. Nessa perspectiva, a presença universal da graça significa que Deus Se oferece intimamente a todo ser humano, embora essa oferta possa permanecer “escondida e em processo de desenvolvimento”(MONDIN, 1979, p. 110). Longe de tornar a graça uma propriedade automática da natureza, Rahner insiste tratar-se de uma oferta livre e amorosa de Deus a todos, fundamentada na vontade salvífica universal (cf. 1Tm 2,4). Desse modo, o existencial sobrenatural evidencia o desejo divino de salvar a todos, mas não elimina a resposta livre do homem. De fato, Rahner afirma que a salvação não acontece sem a cooperação da liberdade humana: na visão rahneriana, “a única maneira da pessoa não ser salva é abjurando obstinadamente a oferta da graça” (RAHNER, 1979, p. 203). A graça está sempre presente como possibilidade de salvação, mas permanece possível ao indivíduo resistir-lhe culpavelmente – o que mantém a importância do ato de fé e de conversão pessoal. Assim, a acusação de que Rahner aboliu a gratuidade da graça se revela um equívoco de compreensão: ele apenas assegurou que nenhum ser humano está excluído a priori do alcance da graça, sem com isso negar que a acolhida dessa graça exija uma decisão livre e responsiva (aceitação que, em última instância, se expressa plenamente na fé explícita, quando possível).

Esta antropologia teológica de Rahner carrega também uma dimensão fortemente misteriológica. Influenciado por pensadores como Heidegger, ele descreve o ser humano como “o ser de perguntas”, sempre em busca de um horizonte infinito de sentido. Deus, o objeto último dessa busca, aparece em Rahner sobretudo como Mistério Absoluto – inefável, transcendente, e ao mesmo tempo próximo porque Se comunica a nós. Diferentemente de tomistas clássicos que falam de Deus prioritariamente em termos de ipsum Esse (o Ser em si), Rahner prefere a linguagem do Mystérion. Em sua teologia desenvolvida, “Deus não é tanto o esse absolutum quanto o mysterium absolutum” [9]. Isso representa uma mudança de ênfase: do discurso metafísico sobre o Ser para uma abordagem existencial sobre o Mistério. Essa mudança, contudo, não implica rejeição da metafísica tomista, mas sim sua complementação. A analogia entis medieval (que postulava uma semelhança proporcional entre o ser criado e o Ser divino) cede lugar, em Rahner, a uma “analogia do mistério” (analogia mysterii) [10]. Ou seja, assim como há uma correspondência analógica entre o ser finito e o Ser infinito em Tomás, em Rahner há uma correspondência entre o caráter misterioso da realidade humana (limitada, interrogativa, aberta) e o Mistério infinito de Deus. A teologia do mistério reconhece que “nosso falar de Deus” é sempre parcial e simbólico diante da transcendência divina. Como diz um comentarista, em Rahner “o mistério de Deus e o mistério do espírito humano estão em continuidade”, dado que o homem traz em si a marca daquela Interrogação infinita que aponta para Deus [11]. Tudo o que conhecemos de verdade, conhecemos “através de um espelho, em enigma” (1Cor 13,12); portanto, para Rahner, o Mistério torna-se um critério de verdade teológica – nossos enunciados doutrinários são verdadeiros, mas sempre inadequados frente à plenitude do inefável Mistério divino [12]. Essa humildade epistemológica está plenamente em linha com a tradição apofática da Igreja, que desde os Padres ensina que Deus ultrapassa infinitamente nossos conceitos. Rahner apenas sistematizou essa perspectiva, recordando que a consciência humana possui intrinsecamente essa abertura ao incompreensível. O ser humano é, nas palavras de Renato Machado, “ser de abertura ao Mistério de Deus” (MACHADO, 2013, p. 35). Essa abertura transcendental fundamenta tanto a possibilidade da Revelação (Deus pode se comunicar ao homem porque este foi criado para recebê-Lo) quanto a necessidade de reconhecer limites em qualquer formulação teológica.

Importante frisar que, apesar de pôr em relevo a dimensão de mistério e a situação histórica do conhecimento de fé, Rahner nunca propôs a negação de dogmas ou relativização da doutrina. Pelo contrário, ele afirmou que toda a herança doutrinal da Igreja forma um conjunto harmônico em torno do centro da Revelação. “Toda a estrutura do Cristianismo... pode ser entendida à luz da essência última da cristandade”, escreveu Rahner, identificando essa essência com a autocomunicação de Deus em Cristo (LOWERRY, 1991). Significa que todos os dogmas particulares nada mais são do que explicitações diversas da única verdade fundamental da fé (a saber, que Deus se dá ao homem por graça, em Jesus Cristo). Se mantivermos esse núcleo, diz Rahner, nenhum ensinamento eclesial precisará ser rejeitado – ao contrário, cada doutrina será vista como concretização desse mesmo núcleo (Ibid.). Alguns críticos interpretaram essa posição como se Rahner advogasse uma “indiferença justificada” a respeito de doutrinas específicas de menor apelo existencial (Ibid.). Entretanto, o próprio Rahner se declarava fiel a “toda a doutrina oficial da Igreja” enquanto verdadeiro crente católico (Ibid.). O que ele diferenciava era o grau de centralidade das verdades (antecipando a ideia de “hierarquia das verdades” depois assumida no Concílio Vaticano II). Ou seja, há verdades nucleares da fé e há ensinamentos que delas decorrem; um cristão pode, por motivos de dificuldade pessoal ou cultura, não ver o sentido imediato de um ponto doutrinal secundário, sem com isso negar a fé – contanto que permaneça ancorado no essencial do depósito da fé. Rahner jamais advogou que se abandonasse qualquer dogma, mas sim que se tivesse paciência pedagógica com aqueles que lutam para compreender certas formulações tradicionais. Trata-se mais de uma orientação pastoral e epistemológica do que de qualquer heterodoxia. Aliás, ele próprio, como jesuíta de espiritualidade inaciana, tinha grande respeito à obediência e ao Magistério e se manteve dentro dos limites da ortodoxia católica ao longo de sua vida.

3. “Cristão Anônimo”: Salvação e Revelação para Além das Fronteiras Visíveis

Com os elementos acima, podemos entender melhor o conceito de “cristão anônimo”, frequentemente mal compreendido. Rahner cunhou essa expressão para articular uma tese inclusivista: a de que a salvação em Cristo está potencialmente aberta a todos os seres humanos, mesmo àqueles que nunca ouviram o Evangelho ou não se identificam explicitamente como cristãos. A base dessa ideia está na presença universal do existencial sobrenatural (graça) e na vontade salvífica universal de Deus. No fundo, Rahner pergunta-se: como conciliar a doutrina tradicional extra Ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação) com a realidade de bilhões de pessoas que, sem culpa própria, não conheceram Cristo ou a Igreja? A resposta de Rahner é que Cristo, Verbo encarnado, ilumina todo homem (cf. Jo 1,9) de maneira misteriosa. Quem, “ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, procura a Deus de coração sincero e se esforça por cumprir Sua vontade pela graça”, pode alcançar a salvação eterna. Essa fórmula do Concílio Vaticano II (Lumen Gentium 16) expressa oficialmente o princípio que Rahner desenvolve teologicamente: se um não-cristão corresponde à graça interior e busca sinceramente o Bem, vivendo segundo a reta consciência, ele está de fato aceitando a Cristo, embora não o saiba. Em linguagem rahneriana, tal pessoa seria um “cristão anônimo”, isto é, alguém que, sem ser cristão nominalmente, segue e vive segundo a vontade de Deus, quer o saiba ou não. Note-se que essa noção não pretende negar a unicidade de Cristo ou a necessidade da graça: ao contrário, afirma que toda salvação vem de Cristo e da graça, mas que Cristo pode atuar fora dos canais visíveis da Igreja. Não há salvação fora de Cristo, porém pode haver salvação fora da visibilidade da instituição Igreja, pois a graça de Cristo pode tocar os corações diretamente.

Rahner, assim, propõe uma teologia inclusivista das religiões: outras tradições podem servir como mediadoras da graça de Cristo de modo oculto. Ele não afirma que todas as religiões são igualmente verdadeiras (sua posição não é relativista), mas que nelas o Espírito de Deus pode estar operando. O conceito de cristão anônimo visava justamente manter a tensão entre a centralidade de Cristo – único Mediador – e a possibilidade de salvação dos não cristãos sem que Deus precise realizar um milagre extraordinário em cada caso. Em lugar de presumir que todos os não batizados estão automaticamente condenados (o que feria a justiça e misericórdia divinas), ou de adotar a visão pluralista de que cada religião salva por si mesma (o que negaria a mediação única de Cristo), Rahner delineou um caminho médio: Cristo salva a todos, mas nem todos O conhecem explicitamente; alguns O acolhem implicitamente ao seguirem a voz da graça em suas consciências. Nesse sentido, ele mesmo reconhece que a noção de “cristão anônimo” é uma interpretação da máxima “fora da Igreja não há salvação” à luz da graça onipresente de Deus. O Concílio Vaticano II ecoou essa visão ao ensinar que elementos de verdade e santidade existem nas outras religiões (Nostra Aetate 2) e que o Espírito Santo pode empregar essas sementes da Palavra para conduzir as pessoas a Cristo (Ad Gentes 3, LG 16).

As críticas de que o cristão anônimo desestimula a missão se mostram infundadas quando se compreende bem o pensamento de Rahner. Ele não disse que anunciar o Evangelho seria desnecessário. Ao contrário, Rahner participava ativamente do impulso missionário da Igreja; seu intuito era ressaltar que, se alguém de boa fé se salva sem o anúncio explícito, é apesar da ausência do anúncio, não por desprezo a ele. Rahner considerava o ateísmo e a secularização grandes desafios, e via na missão não apenas a conversão individual, mas também o enriquecimento da própria fé cristã mediante o encontro com as culturas. Ademais, chamar alguém de “cristão anônimo” não significa que esteja tudo bem em permanecer anônimo: antes, é um convite para que esse anônimo se torne cristão de nome e de fato ao ouvir a Boa Nova. Tanto que Rahner escreveu que a Igreja deve ser “manifestação explícita da graça já presente” na humanidade – ou seja, a missão é tornar consciente e plena a realidade salvífica que Deus já semeou secretamente no coração das pessoas. Não há, pois, contradição entre a teologia de Rahner e a urgência missionária: ele mesmo contribuiu para documentos conciliares sobre missão (como Ad Gentes), insistindo na responsabilidade da Igreja em ser sacramento universal de salvação.

Em suma, o cristão anônimo de Rahner não é um “meio-cristão” ou um atalho relativista, mas a forma de explicar que Deus não nega a salvação a quem, sem culpa, não conheceu a pregação da Igreja, desde que acolha interiormente o chamado da graça. Essa tese está solidamente ancorada na tradição católica recente – basta lembrar que já em 1944 o Papa Pio XII ensinara, acerca dos que ignoram a fé sem culpa, que “Deus... também não nega os auxílios necessários à salvação” e pode uni-los misticamente à Igreja (carta Quanto conficiamur, DS 3870). Portanto, Rahner foi fiel ao desenvolvimento orgânico da doutrina, oferecendo uma linguagem nova (e algo audaciosa) para uma verdade que a Igreja gradualmente reconheceu de forma oficial no Vaticano II.

4. Rahner e o Concílio Vaticano II: Influência e Contribuições

A figura de Karl Rahner está intimamente ligada ao Concílio Vaticano II (1962-65). Embora não tão midiático quanto outros teólogos da época, sua influência nos bastidores do Concílio foi notável. Inicialmente, Rahner enfrentou resistência: por sua associação com ideias “novas”, não fora nomeado perito no primeiro momento. Entretanto, o próprio Papa João XXIII interveio para assegurar sua participação, conferindo-lhe o status de consultor teológico oficial do Concílio. A partir de então, Rahner colaborou ativamente com diversos padres conciliares – especialmente do episcopado alemão e austríaco – na redação e revisão de esquemas dos documentos.

Rahner integrou comissões conciliares, notadamente a que elaborou o esquema intitulado A Igreja no Mundo Moderno (que resultaria na Constituição Pastoral Gaudium et Spes). Junto com outros peritos, como Joseph Ratzinger, ele ajudou a articular uma visão de Igreja dialogante com as angústias e esperanças da humanidade contemporânea. Seus escritos sobre antropologia teológica contribuíram para o tom positivo e aberto de Gaudium et Spes, documento que afirma a dignidade da pessoa humana, a autonomia das realidades terrenas e a necessidade de ler “os sinais dos tempos” à luz do Evangelho. Em particular, a afirmação conciliar de que “o mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo encarnado” (GS 22) ecoa a preocupação central de Rahner de relacionar a transcendência de Deus com a existência humana concreta.

Outro campo de influência de Rahner foi a eclesiologia e a teologia da revelação. Na Constituição Dogmática Lumen Gentium, pode-se perceber reflexos de suas ideias inclusivistas: o já citado número 16 de LG, que reconhece a possibilidade de salvação para não cristãos, está em continuidade com o conceito de cristianismo anônimo que Rahner vinha desenvolvendo. Do mesmo modo, a visão de Igreja como “sacramento universal de salvação” (LG 48) – sinal e instrumento da graça de Deus para o mundo inteiro – se harmoniza com a noção rahneriana de Igreja como manifestação explícita da graça presente em toda parte. Rahner também valorizava a hierarquia das verdades e o ecumenismo; não por acaso, Unitatis Redintegratio (decreto sobre ecumenismo) e Dignitatis Humanae (declaração sobre liberdade religiosa) vão ao encontro de muitas de suas preocupações em inserir a Igreja num relacionamento positivo com as outras confissões e com o mundo.

Na elaboração da constituição Dei Verbum (sobre a Revelação divina), as contribuições de Rahner são menos diretas porém perceptíveis. DV apresenta a Revelação não apenas como um conjunto de proposições, mas primariamente como a automanifestação de Deus na história – linguagem muito próxima da categoria de “autocomunicação de Deus” usada por Rahner. Ele defendia que Deus Se revela em atos e palavras, culminando em Cristo, de modo que toda a história sagrada é encontro pessoal entre Deus e a humanidade. Essa ênfase personalista e existencial, diversa do tom mais escolástico anterior, é marca registrada do ambiente teológico de Rahner e seus contemporâneos (inspirados em Teilhard, de Lubac, etc.), e acabou incorporada nos documentos.

Vários historiadores do Concílio consideram Karl Rahner, ao lado de nomes como Yves Congar, Henri de Lubac e Joseph Ratzinger, um dos arquitetos intelectuais da virada conciliar. Ele mesmo reconheceria, posteriormente, que o Vaticano II representou “o início de uma nova época” para a Igreja, uma espécie de aggiornamento profundo que ele apoiou integralmente [13]. Após o Concílio, Paulo VI nomeou Rahner como membro da Comissão Teológica Internacional (órgão consultivo da Santa Sé criado em 1969), evidenciando a confiança da Igreja em sua ortodoxia e saber teológico. Nesse contexto, é difícil sustentar que Rahner fosse um “desviante”: suas ideias influíram precisamente nas declarações magisteriais do Concílio – aprovadas pelo Papa e quase todos os bispos do mundo. Longe de ser condenado, Rahner teve seu pensamento, por assim dizer, absorvido e validado em muitos pontos pela autoridade eclesial máxima em Vaticano II.

5. Fidelidade Doutrinária e Legado na Teologia Contemporânea

Passadas algumas décadas de sua morte, o legado de Karl Rahner permanece profundamente enraizado na teologia católica. Muitos conceitos por ele explorados tornaram-se lugar-comum no pensamento teológico posterior ao Concílio. Sua tentativa de “inculturação” da Teologia no mundo moderno – dialogando com a filosofia contemporânea para explicar verdades antigas – abriu veredas frutíferas. Hoje se reconhece que Rahner ajudou a “fazer a transição da teologia tradicional para perspectivas mais atuais”, apresentando a posição clássica e, ao mesmo tempo, apontando novos ângulos de reflexão (PINHO, 2004, p. 385). Sem abandonar a escolástica (na qual era profundamente formado), ele lançou perguntas que impulsionaram desenvolvimentos em campos como a teologia da graça, a escatologia (v.g., sua reflexão sobre o destino universal em Cristo), a teologia das religiões e a própria espiritualidade cristã.

Um aspecto notável de sua postura foi a fidelidade na inovação. Rahner demonstrou que é possível inovar permanecendo ortodoxo – seguindo, nesse ponto, o exemplo do próprio Tomás de Aquino, que no século XIII ousou empregar Aristóteles (um filósofo pagão então recém-“descoberto”) para aprofundar a inteligência da fé. Analogamente, Rahner empregou ferramentas de Kant, Hegel e Heidegger para servir ao Evangelho, sem abdicar dos princípios essenciais da fé tomista. Ele mesmo fazia questão de afirmar sua submissão ao ensinamento da Igreja. Observadores atentos notam que Karl Rahner é um defensor da tradição e tem um profundo sentido da ortodoxia e da fidelidade ao sentir da Igreja” (LAVALL, 2004, p. 97). Padre Alfredo Marranzini, S.J., analisando a obra rahneriana, salientou como Rahner investigava “as fontes bíblicas e patrísticas com atenção e técnica atualizada” e interpretava “as declarações do Magistério... sempre animado pelo amor e pela submissão” (Ibid., p. 85). Essa é uma característica fundamental de Rahner: longe de desprezar a tradição, ele a mergulhou ainda mais profundamente, buscando suas riquezas ocultas, e procurou traduzir seu conteúdo perene em categorias acessíveis ao homem secularizado.

É verdade que a linguagem de Rahner por vezes é complexa e suas ideias exigem cuidadosa interpretação (até por isso alguns as distorceram). Contudo, quando corretamente entendidas, verifica-se que “sua teologia nunca foi seriamente contestada depois do Concílio”, conforme observou o Cardeal Joseph Ratzinger (Ibid., p. 95). – que conviveu de perto com Rahner no Vaticano II – reconheceu explicitamente “a ortodoxia da teologia rahneriana”, fruto da contínua meditação de Rahner na tradição patrística e escolástica, aliada à abertura aos sinais dos tempos (Ibid., p. 86). Esse testemunho é significativo: Ratzinger/Bento XVI, conhecido guardião da doutrina, via Rahner como um colaborador leal da fé, ainda que não concordasse com ele em tudo no plano teológico especulativo. De fato, mesmo os críticos de Rahner normalmente reconhecem sua integridade de fé. Mark Lowery, um teólogo de linha mais conservadora, admite que “Rahner’s stature is beyond dispute” e que qualquer teólogo sério deve se engajar com o pensamento dele, dado o modo profundo como tratou do cerne da teologia, isto é, o significado da graça[14]. Esse consenso de que Rahner tocou o coração da mensagem cristã – a oferta gratuita da vida divina ao homem – mostra que suas intenções estavam centradas no Evangelho.

Na teologia contemporânea, várias correntes trazem influência rahneriana. A teologia da libertação na América Latina, por exemplo, bebeu da fonte conciliar que Rahner ajudou a moldar (especialmente em Gaudium et Spes) ao unir fé e história concreta. A teologia do pluralismo religioso, que discute os destinos das religiões não cristãs, frequentemente dialoga (a favor ou contra) com as categorias de cristão anônimo e de revelação transcendental propostas por Rahner. Também a renovação da catequese e da pastoral, preocupadas em falar ao homem secularizado, realiza em parte o ideal rahneriano de apresentar a fé como resposta ao anseio existencial humano.

No âmbito espiritual, Rahner influenciou a ideia de que a experiência de Deus não é privilégio de místicos isolados, mas está latente em cada pessoa como experiência transcendental do Mistério. Frases suas – como a célebre previsão de que “o cristão do futuro será um místico, ou não será cristão” – inspiraram gerações a buscar uma fé mais vivenciada profundamente. Seu enfoque no “ouvinte da Palavra” destaca a atitude fundamental de escuta a Deus presente no cotidiano. E sua teologia do símbolo e do sacramento enriqueceu a compreensão de como o divino se comunica através do mundo sensível e comunitário.

Em conclusão, Karl Rahner provê um exemplo notável de fidelidade dinâmica: fiel ao núcleo da fé cristã, mas dinâmico na maneira de expô-la e aprofundá-la. Suas propostas teológicas – antropologia transcendental, teologia do mistério, cristão anônimo – quando lidas no contexto integral de sua obra, se mostram alinhadas com o depósito da fé, embora exprimam esse depósito em novidade de linguagem e perspectiva. “Continuamente se entrelaçam, no seu pensamento, a abertura ao mundo moderno e a contínua meditação da tradição cristã patrística e escolástica” (LAVALL, 2004, p.94). Essa síntese difícil é o grande mérito de Rahner. Nem todos os teólogos pós-conciliares conseguiram manter tal equilíbrio, e de fato houve quem extrapolasse ideias de Rahner para posições menos ortodoxas. Mas isso não desmerece o autor em si. Sua obra permanece, nas palavras de Luciano Lavall, apoiada em “pilares fundamentais que justificam sua ortodoxia a serviço da fé cristã e católica” (Ibid.). Se houve “desvios” após o Concílio, não foi Rahner quem deles deu causa intencional – ao contrário, ele mesmo preocupou-se com os rumos da Igreja e defendeu estratégias pastorais enraizadas no cerne do Evangelho (Ibid., p. 96-97).

Em suma, defender Karl Rahner das críticas de desvio doutrinário é, na verdade, reafirmar o espírito do Vaticano II: um espírito de ressourcement (retorno às fontes) unido a aggiornamento (atualização). Rahner encarnou esse duplo movimento. Sua teologia não é um rompimento com Santo Tomás, mas um desdobramento legítimo em novo contexto – “profundamente enraizado no pensamento de Santo Tomás”, mas dialogando com Kant e Heidegger (Ibid., p. 83). E sua ortodoxia brilha exatamente nesse esforço de mostrar que a verdade revelada de sempre continua a iluminar as questões de hoje. Por tudo isso, Karl Rahner permanece um teólogo de referência obrigatória. Suas intuições – longe de um “desvio” – representam um serviço criativo à Igreja, ajudando-a a proclamar com vigor renovado, ao homem do século XX e além, a perene novidade de Jesus Cristo, Salvador de todos.

Notas

[1] Disponível aqui.

[2] Disponível aqui.

[3] Disponível aqui.

[4] Disponível aqui.

[5] Ibid.

[6] Disponível aqui.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Disponível aqui.

[10] Ibid.

[11] Ibid.

[12] Ibid.

[13] Disponível aqui.

[14] Disponível aqui.

Referências

LAVALL, Luciano Campos. Rahner na berlinda pós-conciliar. Perspectiva Teológica, v. 36, p. 75–97, 2004.

LOWERY, Mark. Retrieving Rahner for Orthodox Catholicism. Faith & Reason, v. 17, n. 3, 1991.

MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.

PINHO, J. Eduardo Borges de. Karl Rahner: elementos biográficos de um grande teólogo do século XX. Theologica, 2.ª série, v. 39, n. 2, p. 379–397, 2004.

RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulus, 1989.

RENATO MACHADO. O ser humano e o mistério amoroso de Deus – contribuição de Rahner para a experiência de Deus. Revista de Cultura Teológica, n. 81, 2013.

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