11 Outubro 2025
"O século XXI pede não uma recusa da técnica, mas uma pedagogia da tecnologia. É preciso ensinar o uso ético das ferramentas, não apenas sua operação. Formar consciência, não apenas competência. A máquina não erra; quando falha, apenas comete um cálculo incorreto. O ser humano, por outro lado, ao errar, revela o drama e a beleza de sua liberdade", escreve Marcos Aurélio Trindade, mestre em Bioética (PUCPR), mestre em Antropologia Social (UBA), discente de Medicina Afya e membro da Sociedade Brasileira de Bioética.
Eis o artigo.
Entre as sombras das chaminés da Revolução Industrial e as luzes pulsantes das telas digitais, há um mesmo grito humano: o medo de desaparecer dentro daquilo que cria. Quando Leão XIII publicou, em 1891, a Rerum Novarum, não se tratava apenas de uma encíclica social, mas de um clamor espiritual diante de uma humanidade reduzida a engrenagem. O Papa olhava o operário sujo de fuligem e via nele uma alma aprisionada pela lógica da máquina. Hoje, mais de um século depois, a paisagem mudou, mas a inquietação persiste: diante da inteligência artificial, o risco já não é a servidão física, e sim a perda silenciosa do sentido de ser.
O vapor das fábricas deu lugar ao silício dos processadores, mas a mesma lógica atravessa os séculos: a substituição do humano pelo eficiente, do pensamento pela performance, da sabedoria pela informação. Se antes a máquina ameaçava o corpo, agora ela ameaça a consciência. A revolução não acontece mais nas ruas industriais, mas nas camadas invisíveis do código. E, assim como Leão XIII pressentiu a urgência de uma ética social diante da Revolução Industrial, talvez Leão XIV seja chamado a erguer uma ética da consciência diante da Revolução Digital. Afinal, como refletem os filósofos contemporâneos, vivemos plugados no cibermundo, quem sabe uma nova “Rerum Novarum digital” inspiradas nas encíclicas, que clama por discernimento ético e humano na técnica?
Não se trata de temer a técnica, mas de compreendê-la criticamente. Como refleti certa vez, em um de meus seminários dados de filosofia e bioética, que: “não podemos satanizar a ciência e sua tecnologia, mas conscientizar criticamente do benefício dela para o bem”. Essa frase expressa um princípio moral urgente: a técnica é um espelho que reflete o que somos e o que desejamos ser. Ela pode curar ou controlar, educar ou manipular, libertar ou vigiar, tudo depende do espírito que a anima. “Se, para o marxista Marshall Berman, em seu livro vivemos na Idade Moderna e ele enaltece essa fase em “tudo que é sólido se desmancha no ar”, penso de forma diferente: Na Idade Contemporânea digital, tudo que é humano se dissolve no código e na velocidade do milênio atual, uns usam para o bem e outros para o mal”.
A filosofia da linguagem pode ajudar-nos a perceber o que está em jogo. Wittgenstein dizia que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Hoje, a máquina fala, traduz, compõe, escreve mas o que ela diz quando fala? Diz algo ou apenas imita? A inteligência artificial, em sua essência, é uma linguagem sem alma: conjuga, mas não significa; responde, mas não compreende. É um vasto espelho sintático onde o humano se contempla e se confunde. E talvez o perigo mais profundo não esteja na máquina, mas em nós mesmos quando aceitamos trocar sentido por desempenho, diálogo por resposta imediata.
A Escola de Frankfurt alertou que a modernidade técnica transforma a razão em instrumento de dominação. Adorno e Horkheimer chamaram isso de “razão instrumental”: o saber convertido em poder. Na era digital, esse poder se reinventa algoritmos decidem trajetórias, emoções são mensuradas, e a atenção humana tornou-se recurso econômico. É um novo tipo de fábrica, mais criativa e mais eficaz, em que cada gesto é dado e cada dado, mercadoria. O trabalhador do século XIX era explorado em sua força; o usuário do século XXI é explorado em sua atenção e saúde mental.
Thomas Kuhn, ao discutir as revoluções científicas, falava em “mudanças de paradigma” momentos em que o mundo muda de linguagem. Estamos precisamente nesse limiar. O paradigma técnico digital substitui o paradigma humano como referência de verdade e produtividade. A ciência já não é apenas explicação do mundo, mas engenharia de mundos possíveis. O desafio ético é relembrar que nem tudo o que é possível é bom e que o critério último da ciência deve continuar sendo a vida, não o lucro.
O cérebro humano, estudado pela neurociência e imitado pela IA, continua sendo um território de mistério. A máquina pode aprender padrões, mas não pode sofrer. Pode processar linguagem, mas não pode amar. Há um abismo entre a inteligência que calcula e a consciência que contempla. O homem moderno, contudo, parece preferir o cálculo e, com isso, corre o risco de abdicar daquilo que o torna humano.
Entre Leão XIII e o Leão XIV estende-se o arco de uma mesma preocupação: a dignidade do ser humano diante das forças que ele mesmo desencadeia. O primeiro e o segundo viu o corpo e a consciência de seres pensantes ameaçados e violentados. E a Igreja tem ainda um papel profético, talvez seja o de recordar que o progresso sem responsabilidade é regressão disfarçada de triunfo.
O século XXI pede não uma recusa da técnica, mas uma pedagogia da tecnologia. É preciso ensinar o uso ético das ferramentas, não apenas sua operação. Formar consciência, não apenas competência. A máquina não erra; quando falha, apenas comete um cálculo incorreto. O ser humano, por outro lado, ao errar, revela o drama e a beleza de sua liberdade. Entre os componentes químicos do vapor e o silício, há o mesmo dilema: o de uma criatura fascinada por seu próprio poder. Cabe a nós, herdeiros de ambos os mundos, lembrar que o futuro não está nos circuitos, mas nas escolhas. E que talvez o verdadeiro avanço não esteja em criar máquinas cada vez mais humanas, mas em tornar-nos humanos em meio às máquinas.
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