04 Outubro 2025
"Por que essas duas passagens do Prêmio Nobel da Paz me vieram à mente ao ouvir Netanyahu na ONU? Acho que porque mostram que — pelo menos no caso dele — uma vítima pode acabar se tornando um carrasco atormentado; mas um carrasco, ainda assim", escreve Jesús Martínez Gordo, doutor em Teologia Fundamental e sacerdote da Diocese de Bilbao, professor da Faculdade de Teologia de Vitoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, publicado por Settimana News, 01-10-2025.
Eis o artigo.
Em 26 de setembro, ouvi o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu na ONU acusar líderes mundiais que reconheceram o Estado palestino de enviar uma mensagem antissemita ao mundo de que "matar judeus tem uma recompensa". Não foi a primeira vez que ouvi algo semelhante: há pouco mais de um ano, ouvi Fleur Hassan-Nahoum, ex-vice-prefeita de Jerusalém pelo Likud — o partido do atual primeiro-ministro israelense — dizer que criticar o extermínio de judeus na Faixa de Gaza era "propaganda do Hamas e dos islâmicos".
Mas a declaração de Netanyahu foi seguida por uma pergunta, que me pareceu estúpida e fora de lugar, dirigida àqueles que acusavam Israel de cometer genocídio: "Os nazistas pediram educadamente aos judeus que deixassem as cidades?" Parecia fora de lugar porque – se entendi corretamente – ele estava comparando o comportamento de Israel ao dos nazistas. E não pude deixar de lembrar e parafrasear o famoso ditado: "Se você não pode se justificar de outra forma, não se justifique"; pelo menos não o faça comparando-se a essas pessoas. E a verdade é que, ouvindo sua pergunta, não pude deixar de me lembrar de dois contos do escritor judeu Elie Wiesel (1928-2016) – um sobrevivente de Auschwitz e ganhador do Prêmio Nobel da Paz (1986) – de sua trilogia Noite, Madrugada e Dia (1958). Dois contos em que Wiesel descreve como uma vítima pode se tornar um perpetrador.
Esta trilogia é mais conhecida pelas páginas em que Wiesel relata — em "Noite " — o enforcamento de dois adultos e uma criança no pátio de Auschwitz, a obrigação de testemunhar as execuções e o desfile de todos os prisioneiros diante dos enforcados, olhando-os fixamente nos olhos. Igualmente famosas são as páginas em que Wiesel registra a pergunta que brota em sua alma — em vários momentos — diante daquele espetáculo macabro: "Onde está Deus?" E como, ao passar pela criança que, ao contrário dos dois adultos, ainda está morrendo, a pergunta ressurge, mas desta vez com uma resposta: "Onde está Deus? Ele está lá, pendurado naquela forca... Naquela noite, a sopa tinha gosto de cadáver."
Acredito que menos conhecidas sejam as duas passagens de Dawn nas quais ele relata como a vítima que ele havia sido, uma vez libertado e alistado na luta pela libertação da Palestina sob o Mandato Britânico, acaba se tornando o carrasco.
No primeiro desses trechos, Wiesel relata sua participação em um ataque a um comboio militar. Após plantar minas na estrada e tomar posições, o comboio chega e o primeiro veículo explode. Os soldados nos outros dois veículos saltam para o chão sob fogo cruzado, correndo em todas as direções com a cabeça baixa. "Nossas balas cortaram suas pernas como uma grande foice, e eles caíram gritando de dor. A cena durou apenas sessenta segundos. Recuamos em ordem. Tudo ocorreu sem o menor obstáculo."
A operação havia sido bem-sucedida. Mas, ao retornar à base e receber elogios, Wiesel notou uma repentina "náusea" apertando seu estômago. Começou a sentir "horror de si mesmo", lembrando-se de como os soldados da SS nos guetos poloneses massacravam judeus de maneira semelhante ao que tinham acabado de fazer com eles: "algumas metralhadoras aqui e ali; um oficial que, rindo ou comendo, dava um breve comando: 'Feuer'. E a foice de fogo começava a cortar cabeças e pernas." Alguns judeus tentavam escapar, mas "a morte subitamente cortava suas pernas também..." Enquanto mergulhava nessas memórias amargas, um camarada se aproximou dele e disse: "Não se atormente. É guerra."
Esta primeira história sempre me pareceu um exemplo claro de como a vítima começa a se tornar o carrasco, e o faz, surpreendentemente, ao encobrir essa transição — como um judeu ortodoxo como Wiesel — com um manto religioso questionável: daquele dia em diante, Deus não era mais enforcado. Ele era "um combatente da Resistência".
Na segunda passagem, ele relata como recebeu a ordem de executar — em retaliação — um oficial britânico capturado. E como, após atirar em seu coração, "me aproximei da janela" e olhei para a noite. Ela "tinha um rosto. Olhei para ele e compreendi meu terror. Aquele rosto era meu". A aurora retornara à noite mais escura, e a noite mais escura retornara para envolver a aurora.
Por que essas duas passagens do Prêmio Nobel da Paz me vieram à mente ao ouvir Netanyahu na ONU? Acho que porque mostram que — pelo menos no caso dele — uma vítima pode acabar se tornando um carrasco atormentado; mas um carrasco, ainda assim. Deixo o leitor imaginar o que Wiesel teria feito se ele também tivesse que executar as políticas que Netanyahu vem adotando há mais de dois anos na Faixa de Gaza. Teria ele se oposto à sua política de extermínio e genocídio? Confesso: tenho algumas dúvidas.
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