26 Setembro 2025
Renúncia coletiva é protesto contra medida do ministro Luiz Marinho de puxar para si próprio decisão final sobre a entrada da JBS Aves na Lista Suja do trabalho escravo.
A reportagem é de Carlos Juliano Barros, publicada por Repórter Brasil, 25-09-2025.
Ao menos nove auditores fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) deixaram cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo em todo o país, nesta quinta-feira (25). O anúncio foi feito durante reunião da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo), espaço que reúne autoridades públicas e entidades da sociedade civil.
A renúncia coletiva é um protesto contra a medida do titular da pasta, Luiz Marinho, de puxar para si próprio a decisão final sobre a entrada da JBS Aves, empresa da maior processadora de proteína animal do mundo, na chamada Lista Suja do trabalho escravo. O cadastro oficial do governo federal torna públicos os dados de empregadores responsabilizados por auditores fiscais do MTE por essa prática.
A falta de um coordenador regional não inviabiliza, mas prejudica e atrasa o planejamento de operações de resgate de trabalhadores e a articulação com outros órgãos públicos envolvidos nessas ações, como PF (Polícia Federal) e MPT (Ministério Público do Trabalho). Existem 22 regionais no Brasil.
Em nota, a assessoria de imprensa do MTE afirmou que ainda não recebeu os pedidos oficiais de entrega dos cargos. O posicionamento diz que o ministro “exerceu sua prerrogativa legal”. Segundo o texto, “a JBS alega que não foram considerados os recursos apresentados e aponta inconsistências no auto de infração”. Diante disso, o ministro “encaminhou o processo à Consultoria Jurídica do Ministério, responsável por avaliar juridicamente as alegações”.
Medida de Marinho foi alvo de críticas por risco de ‘politização’ de decisão técnica
No dia 18 de setembro, o ministro Luiz Marinho “avocou” (chamou) para si próprio a competência de decidir sobre uma autuação à JBS Aves por condições análogas às de escravo em granjas fornecedoras da empresa — a fiscalização ocorreu em dezembro do ano passado, no Rio Grande do Sul.
Pessoas físicas e jurídicas autuadas pelos servidores da pasta podem se defender em duas instâncias administrativas, antes de terem seus nomes incluídos na Lista Suja. A decisão do ministro, no entanto, barra a entrada da companhia no cadastro até que Marinho emita um parecer final. A medida foi alvo de críticas de autoridades e entidades dedicadas ao combate ao trabalho escravo.
“Estamos diante de um precedente extremamente perigoso: empresas com grande porte econômico podem ter seus casos de trabalho escravo retirados da esfera técnica e transferidos para negociação política. Isso institucionaliza a impunidade seletiva e corrói toda a credibilidade do sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil”, afirmou em entrevista à Repórter Brasil na semana passada Luciano Aragão, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho). O MPT é um órgão independente, sem subordinação ao governo federal.
Na reunião nesta quinta-feira (25) da Conatrae, Luciano Aragão afirmou que pretende judicializar a questão.
Desde novembro de 2003, quando a Lista Suja foi criada, uma “avocação” por um ministro do Trabalho nunca havia acontecido. O período inclui os dois primeiros governos de Lula e as duas gestões de Dilma Rousseff, além das presidências de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
O artigo 648 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) permite que o titular do Ministério do Trabalho tenha a palavra final sobre o assunto, mas isso bate de frente com tratados internacionais que o Brasil já ratificou, segundo Luciano Aragão.
“A avocação pelo ministro do Trabalho do processo administrativo contra a JBS por trabalho escravo representa grave violação à Convenção 81 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que garante a independência técnica da fiscalização trabalhista”, afirmou o procurador do MPT.
Em nota, o MTE sustenta que “a avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa”. Ainda de acordo com o posicionamento, “trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los”.
JBS foi autuada por trabalho escravo na produção de frangos no RS
A JBS Aves foi responsabilizada por submeter dez pessoas a condições análogas à escravidão, no Rio Grande do Sul, em inspeção realizada em dezembro do ano passado. Segundo os auditores fiscais do Ministério do Trabalho, os resgatados atuavam na coleta de frangos em granjas fornecedoras da empresa e tinham jornadas de até 16 horas diárias.
A operação também identificou trabalho forçado e condições degradantes, elementos caracterizadores do crime, segundo o artigo 149 do Código Penal. Os auditores fiscais apontaram que as despesas de transporte e alimentação do grupo, desde seus municípios de origem até o local de trabalho, eram ilegalmente abatidas da remuneração, o que configuraria servidão por dívida.
Originalmente, os trabalhadores foram contratados por uma terceirizada, a MRJ Prestadora de Serviços. No entanto, a Inspeção do Trabalho classificou a unidade da JBS Aves de Passo Fundo (RS) como a principal responsável pelas infrações. Segundo os auditores fiscais, a JBS Aves seria a responsável por estabelecer locais e horários da apanha do frango nas granjas fornecedoras.
Questionada especificamente sobre a possibilidade de avocação por parte do ministro Luiz Marinho, a JBS não se manifestou. A nota emitida pela assessoria de imprensa afirmou que a Seara (marca do grupo empresarial) “suspendeu imediatamente o prestador de serviços em Passo Fundo, encerrou o contrato e bloqueou esta empresa assim que tomou conhecimento das denúncias”. O posicionamento informa ainda que “a companhia tem tolerância zero com violações de práticas trabalhistas e de direitos humanos”.
“Todos os fornecedores estão submetidos aos nossos Código de Conduta de Parceiros e à nossa Política Global de Direitos Humanos, que veda explicitamente qualquer prática de trabalho como as descritas na denúncia”, acrescentou a nota.
Nota
O texto foi atualizado às 16h55 para acrescentar o posicionamento oficial do Ministério do Trabalho e Emprego. Inicialmente, a matéria afirmava que a fiscalização que autuou a JBS havia acontecido em abril de 2025. Porém, ela ocorreu em dezembro de 2024.
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