25 Setembro 2025
"A ideologia, dizia o judeu Freud, é um ponto cego que obstrui a visão, tornando-a parcial. O que significa viver sendo tratados como escudos humanos? É possível realmente ter uma ideia disso? E como é possível transformar um povo inteiro em escudo humano? Mas você acredita que isso explica, ou pior, justifica, a pilhagem de terras e o massacre de palestinos inermes pelo governo Netanyahu? Não, não acredito", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por publicado por La Repubblica, 24-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Você acredita que existe uma proporção justificável entre o horror de 7 de outubro e o massacre em Gaza? Não, não acredito. Você acredita que a exigência de Israel de se defender do terrorismo justifica a aniquilação de civis inermes? Não, não acredito.
Você acredita que existe alguma razão política que possa justificar a morte de milhares de crianças? Não, não acredito. Você acredita que é humano matar de fome e humilhar uma população? Não, não acredito. Você acredita que o governo Meloni pode fazer muito mais do que está fazendo para se dissociar do governo israelense? Sim, muito mais. Você acredita que foi correto mostrar solidariedade ao povo palestino por meio de uma greve geral? Sim, acredito.
Mas, caros companheiros e companheiras pró-Palestina, permitam-me fazer-lhes uma pergunta que não vi em nenhuma das suas comunicações políticas ou sindicais destes últimos dias: por que o Hamas não libertou e não liberta os reféns?
Vocês sabem, o meu trabalho, que é o mesmo do judeu Freud, sempre me leva a questionar o que permanece nas sombras. Quem viu os rostos dos reféns mantidos desde 7 de outubro? E quantos deles ainda estão vivos? E como viveram durante esses dois longos e intermináveis anos? Tornaram-se fantasmas? Espectros? Zumbis?
Enquanto somos assediados diariamente pelas terríveis imagens da destruição de Gaza, quem no mundo ainda se importa com eles? Já pensaram em reivindicar o seu direito à liberdade ou em criticar as condições do seu desumano aprisionamento? Mas, acima de tudo, por que o Hamas não os liberta?
Não é essa a exigência do belicista Netanyahu para o fim da guerra? A sua libertação não teria pelo menos obtido um cessar-fogo imediato? Não teria posto fim ao massacre? E, em todo caso, tudo teria sido diferente.
Mas esse não é o único ponto. O ponto é a ausência ensurdecedora, na esquerda, mas de forma mais geral no debate político público, dessa pergunta, porque não é uma pergunta secundária: por que o Hamas não liberta os reféns? Seu corpo, invisível aos olhos do mundo, não teria o pleno direito de reivindicar sua existência desrespeitada? O que significa viver como escudos humanos? Podemos ter alguma ideia disso? Existe uma escala do horror?
De fato, a escolha política do Hamas de não libertar os reféns transformou o povo de Gaza em um alvo militar. Mas você pode acreditar que isso realmente justifica a destruição de hospitais, o assassinato de jornalistas, a fome de uma população, o êxodo forçado? Não, não acredito. Mas a pergunta para mim reaparece de forma insistente: por que o Hamas não libertou e continua não libertando definitivamente os reféns? Se tentarmos interpretar a tragédia de Gaza a partir dos corpos dos inermes, a recusa em libertar os reféns revela a subordinação de todos aqueles corpos — tanto os dos reféns quanto os do povo palestino — à loucura da ideologia. Pois é a ideologia, por definição, que oculta os corpos e os torna sacrificáveis.
Um grande psicanalista como Elvio Fachinelli se questionava a esse respeito em outros tempos: "Para onde foi o corpo de Lin Biao?" — antagonista do regime comunista maoísta, desaparecido em um misterioso acidente de avião quando outros companheiros da época enfatizavam a irrelevância de seu desaparecimento diante das exigências imprescindíveis da luta de classes, o psicanalista colocava o dedo na ferida: para onde foi o corpo de Lin Biao? De fato, a pergunta sobre os corpos dos inermes é sempre antiideológica.
Especialmente quando se trata daqueles corpos que desaparecem do radar, aqueles destinados a se tornarem objetos de sacrifício do fanatismo ideológico, seja qual for sua orientação. Deveríamos então nos perguntar corajosamente por que nenhuma manifestação, nenhuma pressão internacional — comparável àquela em defesa do povo palestino — foi mobilizada para defender os reféns sequestrados pelo Hamas? Por que não houve uma ação política igualmente forte em prol de sua libertação e, consequentemente, do fim da guerra?
A ideologia, dizia o judeu Freud, é um ponto cego que obstrui a visão, tornando-a parcial. O que significa viver sendo tratados como escudos humanos? É possível realmente ter uma ideia disso? E como é possível transformar um povo inteiro em escudo humano? Mas você acredita que isso explica, ou pior, justifica, a pilhagem de terras e o massacre de palestinos inermes pelo governo Netanyahu? Não, não acredito. No entanto, acredito que defender a causa do povo palestino não obriga à detenção de reféns, exceto para fazer daquele mesmo povo o mártir sacrificial de uma ideologia de morte.
Leia mais
- Al Nakba, uma tragédia sem fim. Artigo de Arlene Clemesha
- Pela ruptura das relações comerciais com Israel. Artigo de Marilena Chaui, Paulo Sérgio Pinheiro, Leda Paulani, Carlo Augusto Calil, Arlene Clemesha, Vladimir Safatle e Paulo Casella
- Uma guerra ilegítima. Entrevista especial com Arlene Clemesha
- Os países do Grupo de Haia concordam em encerrar o fornecimento de armas a Israel
- Gaza: os negociantes do extermínio. Entrevista com Francesca Albanese
- “Todos os Estados devem suspender imediatamente todos os laços com Israel”. Artigo de Francesca Albanese
- Francesca Albanese responde às sanções de Trump: "Este é um aviso para qualquer um que defenda o direito internacional"
- Relatório Albanese: neutralizar a impunidade, reinterpretar a lei. Artigo de Pedro Ramiro e Juan Hernández Zubizarreta
- Francesca Albanese: a voz incômoda da legalidade internacional
- Gaza, ofensiva das Forças de Defesa de Israel em Deir al-Balah: refugiados e a ONU sob fogo
- Razan, de 4 anos, morreu de fome em Gaza. Outros dezoito palestinos morreram em 24 horas
- Gaza, Padre Romanelli: "Estamos chocados com o ataque à igreja"
- ‘Se for para morrer, que seja tentando sobreviver’, dizem pescadores de Gaza alvo de tiros de Israel
- O Papa ouve Abu Mazen: "A ajuda humanitária para Gaza é urgentemente necessária"
- Gaza, Padre Romanelli: "Estamos chocados com o ataque à igreja"
- ‘Se for para morrer, que seja tentando sobreviver’, dizem pescadores de Gaza alvo de tiros de Israel
- 28 países pedem cessar-fogo imediato em Gaza
- Israel sequestra Dr. Marwan Al-Hams, chefe dos hospitais de campanha de Gaza
- As vozes silenciosas do povo de Gaza: "Nós vagamos como zumbis famintos"
- Gaza: pessoas desabam nas ruas devido à fome. Artigo de Kholoud Jarada
- O "massacre sem sentido" em Gaza. A Santa Sé entre a diplomacia e a censura. Artigo de Daniele Menozzi
- O que é a Nakba palestina?
- Palestinos, judeus, armênios e mais: a limpeza étnica que mancha a história do mundo
- Mar-a-Gaza ou Nakba? Transformar a Faixa de Gaza em Riviera é uma indignação para os árabes. Mas há quem sinta o cheiro do negócio
- Israel está provocando a terceira intifada na Cisjordânia. Artigo de Gideon Levy
- Cisjordânia, ataques e outras colônias. “Palestina rumo à anexação”. Artigo de Nello Scavo
- Cisjordânia. Os ataques dos colonos devem cessar. O apelo dos Patriarcas e Líderes das Igrejas de Jerusalém
- Cisjordânia. O cerco dos colonos. Artigo de Francesca Mannocchi
- Gaza: Os campos de concentração biométricos. Artigo de Bruno Sgarzini
- Gaza: Objetivo de isolar o Hamas. Mas o exército de Israel mostra rachaduras
- Israel coloca a região à beira do abismo
- Israel dá mais um passo na desestabilização do Oriente Médio e ataca Damasco
- Israel planeja dobrar população nas Colinas de Golã
- Gaza: desumanização e genocídio. Artigo de Nathan Levi
- As complexas raízes religiosas do Estado judaico. Artigo de Elhanan Miller e Maurizio Camerini
- A memória curta do Ocidente. Quando Israel inventou o Hamas para criar obstáculos e desacreditar Yasser Arafat