“Criticar a violência não significa advogar por um pacifismo ingênuo, mas sim recusar toda violência que reduz a existência humana a objeto de dominação. É aqui que os direitos humanos, quando criticamente examinados, mostram sua potência. Eles não se resumem a declarações universais abstratas — podem funcionar como dispositivos de contraconduta, a partir de Foucault, bem como ferramentas de disputa por reconhecimento e redistribuição, segundo Nancy Fraser.” A afirmação é de William Costa Filho, coordenador do GT Filosofia Política Contemporânea da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e Márcia Rosane Junges, vice-coordenadora do GT, em artigo no qual problematizam a temática em discussão no V Encontro, sediado pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, de 17 a 19 de setembro.
Márcia Rosane Junges é graduada em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e licenciada em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. É especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova (UNIPD), na Itália, onde realizou cotutela com dupla titulação. É professora permanente do PPG Filosofia da Unisinos e do curso de graduação em Filosofia e uma das jornalistas da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU. Coordena o grupo de estudos "A Filosofia Política Pensada pelas Mulheres: Vozes, Ressonâncias e Insurgências", ligado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento no PPG Filosofia "Os Dilemas das Democracias Ocidentais: Espetacularização da Política e Recrudescimento do Neofascismo – Diálogos a Partir de Nietzsche e Agamben".
Dentre suas publicações, destacamos: A transvaloração dos valores em Nietzsche e a profanação em Agamben (Cadernos de Filosofia Política da USP, Especial II Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, nº 28, 2016, p. 97-108), bem como os capítulos de livros Potência-do-não e potência destituinte: uma política como forma-de-vida (ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro (org.), Política, direito e economia no século XXI, Rio de Janeiro: Via Verita, 2019, v. 1, p. 203-214) e A potência em Nietzsche e Agamben: aberturas da política e críticas à democracia liberal (VIESENTEINER, Jorge L.; MÜLLER, Maria Cristina; NETO, Rodrigo Ribeiro Alves (org.), Filosofia política contemporânea, São Paulo: ANPOF, 2019, v. 1, p. 68-75).
William Costa Filho é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceara (UECE), assessor de planejamento e avaliação do Escritório de Cooperação Internacional da UECE, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa Ética, Política e Justiça, e do Laboratório de Estudos sobre Direitos Humanos e Violência. Membro do núcleo de sustentação e atual coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia Política Contemporânea da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
É graduado em Filosofia (UFU), mestre em Filosofia (UFU) e doutor em Filosofia (Unisinos), e possui como eixos principais de trabalho as questões da subjetividade e da alteridade na ética, a genealogia crítica do poder, da (bio)política, da economia e da tecnologia, a questão da fundamentação do direito e dos direitos humanos, a filosofia da história desde a perspectiva da relação tempo-experiência, tempo-memória-justiça, história-sociedade, e debates sobre sexualidade e gênero. Possui como autores centrais de pesquisa e ensino: Michel Foucault, Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Primo Levi, Hannah Arendt e Roberto Esposito.
Dentre suas publicações, destacamos os artigos O capitalismo como culto secularizado em Franz Hinkelammert (Veritas, Porto Alegre, v. 69, p. e 45342-11, 2024) e A constituição de si como singularidade qualquer na forma-de-vida: uma proposta ética de Giorgio Agamben (Dois Pontos Digital: UFPR, v. 19, p. 177-187, 2023) e as obras Inconfidências do agora (Vitória: Milfontes, 2022) e Políticas da exceção: da potência soberana ao terrorismo de Estado (Vitória: Milfontes, 2020).
O V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea da ANPOF, com apoio da Universidade Estadual do Ceará (UECE), que o sediou de 17 a 19 de setembro, coloca em pauta dois conceitos urgentes e profundamente interligados: a crítica da violência e os direitos humanos. Em um contexto global e brasileiro marcado pelo recrudescimento de autoritarismos sobretudo no registro da extrema-direita, pela judicialização da vida, pela persistência de violências estruturais e pela erosão de pactos democráticos, a reflexão filosófica sobre esses temas não é apenas atual, mas vital. Nesse sentido, alguns pontos merecem destaque e aprofundamento.
Membros do GT presentes em Fortaleza | Foto: GT Filosofia Política Contemporânea/Divulgação
A conjuntura política mundial, e particularmente a brasileira, demanda uma reflexão que vá além da condenação moral da violência, buscando compreender suas lógicas fundantes e suas formas de manifestação. Inspirando-se em Walter Benjamin, para quem a crítica da violência exige distinguir entre a violência que funda o direito (rechtsetzende) e a violência que o conserva (rechterhaltende), o evento possibilita analisar como o próprio ordenamento jurídico e estatal pode perpetuar violências sistêmicas — seja através do policiamento brutal de periferias, da criminalização de movimentos sociais ou de políticas de exceção que suspendem garantias fundamentais.
Neste sentido, os direitos humanos surgem não como um ideal abstrato, mas como um campo de luta contínua contra a violência de Estado e a redução da vida a “vida nua”, como propõe Giorgio Agamben, isto é, uma vida desprovida de valor político e exposta à morte. No Brasil, onde o passado autoritário da ditadura militar segue sem plena operatividade e onde discursos de ódio e negacionismo ganharam novo fôlego, debater os direitos humanos é confrontar as forças que buscam esvaziar seu potencial emancipatório e transformá-los em meros instrumentos de uma governabilidade excludente.
Os debates propostos pelo evento oferecem ferramentas conceituais precisas para um diagnóstico do presente. Ao articular pensadores como Benjamin, Agamben, Arendt, Derrida, Butler, Hobbes, entre outros, o encontro permite:
Tais aportes teóricos, junto de vários outros abordados no V Encontro, são indispensáveis para decifrar fenômenos atuais como o avanço de extremismos, a crise migratória, a violência de gênero e racial, e o uso da lei como instrumento de perseguição política.
Campos concentracionários do Ceará inspiram a arte do V Encontro | Foto: GT Filosofia Política Contemporânea/Divulgação
Criticar a violência não significa advogar por um pacifismo ingênuo, mas sim recusar toda violência que reduz a existência humana a objeto de dominação. É aqui que os direitos humanos, quando criticamente examinados, mostram sua potência. Eles não se resumem a declarações universais abstratas — podem funcionar como dispositivos de contraconduta, a partir de Foucault, bem como ferramentas de disputa por reconhecimento e redistribuição, segundo Nancy Fraser.
Em chave agambeniana, os direitos humanos podem ser o contraponto à "vida nua", ao afirmarem o valor incondicional de toda vida e ao demandarem formas de inclusão política que não dependam de exclusões prévias. Eles abrem a possibilidade para outras formas-de-vida, ou seja, para modos de existência nos quais a vida não seja separável de sua forma política e comunitária, e onde a violência não seja o princípio organizador do social.
Portanto, o V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea se coloca como um espaço crucial de resistência pensante. Ao invés de aceitar a violência como destino ou a exceção como norma, ele convida a repensar as bases de uma comunidade verdadeiramente justa — onde os direitos humanos não sejam um limite à ação política, mas sim a expressão de seu compromisso máximo com a liberdade e a dignidade de todas e todos.
A imagem do cartaz de divulgação do V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea faz menção a uma concretização histórica da exceção em solo brasileiro. O sítio histórico conhecido como Campo de Concentração do Patu, em Senador Pompeu (CE), foi tombado pelo Estado do Ceará em 2019. Este local foi um dos sete campos de concentração instalados no Ceará entre 1915 e 1932, durante períodos de seca extrema, com o objetivo oficial de "controlar" o fluxo de retirantes que buscavam sobreviver nas grandes cidades. Na prática, esses campos funcionavam como espaços de confinamento coercitivo onde milhares de flagelados — em sua maioria pobres, negros e sertanejos — eram aprisionados sob vigilância armada, separados de suas famílias e submetidos a condições desumanas, incluindo fome, doenças e trabalhos forçados. O tombamento busca preservar a memória dessa violência estatal muitas vezes apagada da história oficial.
A existência desses campos revela uma faceta brutal da formação do Estado brasileiro: a violência como instrumento de gestão política e social. Sob a justificativa de "ordem" e "assistência", o Estado não apenas falhou em proteger sua população vulnerável, mas ativamente a confinou e invisibilizou, criando zonas de exceção onde direitos básicos eram suspensos. Essa prática ecoa o conceito de "estado de exceção" de Giorgio Agamben, no qual o poder soberano suspende a ordem jurídica para criar um espaço onde a vida humana é reduzida à "vida nua" (zoé) — vida desprovida de valor político e exposta à morte. Os retirantes não eram vistos como cidadãos, mas como corpos a serem controlados, um excedente indesejável que ameaçava a ordem urbana.
A conexão com o cartaz do V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea — que traz a representação de duas pessoas empurrando um barco como se prestes a fugirem dessa realidade da exceção — é direta e profundamente significativa. A imagem evoca não apenas a dor individual, mas a memória coletiva de corpos historicamente confinados e subjugados pelo poder estatal. Ela funciona como um lembrete visual de que a violência constitutiva do Estado não é uma abstração, mas uma prática concreta que marcou a história do Brasil, especialmente no Nordeste. O cartaz, ao associar essa iconografia ao tema "Crítica da Violência e Direitos Humanos", convida a refletir sobre como mecanismos de exceção e exclusão do passado continuam a ressoar no presente, seja nas operações policiais em periferias, nos centros de detenção de imigrantes ou na violência contra populações marginalizadas.
Assim, o tombamento do Campo do Patu e sua discussão no contexto do evento filosófico reforçam a urgência de se confrontar a memória para interromper a repetição da violência. A crítica da violência proposta pelo evento não se limita à denúncia, mas busca compreender as estruturas que permitem que o Estado classifique certas vidas como descartáveis. Os direitos humanos, neste contexto, emergem como um contraponto ético e político que exige o reconhecimento dessa história de exclusão e a defesa intransigente de que nenhuma vida é "nua" — toda vida deve ser reconhecida em sua dignidade e integridade política. A imagem do cartaz, portanto, é um convite a não esquecer: lembra que o chão sobre o qual se ergue o Estado está marcado pelas lágrimas e pelo sangue daqueles que foram confinados à exceção.
A programação do V Encontro, conforme sua temática indica, se estrutura em torno de conferências que articulam o pensamento de filósofos como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Hannah Arendt e vários outros teóricos para analisar as dimensões da violência de Estado, os limites e possibilidades dos direitos humanos e os mecanismos de exceção na atualidade.
Os principais desafios para concretizar um evento desta natureza em 2025 são multifacetados. O desafio político reside no próprio contexto do recrudescimento de ataques às humanidades e às ameaças autoritárias que se delineiam no contexto político brasileiro e internacional. O desafio epistemológico está em garantir que o debate não se restrinja a um universalismo europeizante, mas inclua vozes periféricas que pensam a violência e os direitos a partir da experiência latino-americana e brasileira, confrontando a violência do Estado com as resistências plurais que emergem desde as margens. Superar esses obstáculos é, em si, um ato de resistência que espelha a luta pela manutenção de espaços de pensamento livre e crítico em tempos de crescente autoritarismo.
O Encontro Nacional de Filosofia Política Contemporânea nasceu da iniciativa de pesquisadores com reconhecida produção e qualificada atuação nessa relevante área de estudos, após a criação, em outubro de 2010, do Grupo de Trabalho "Filosofia Política Contemporânea", vinculado à ANPOF. Os encontros foram fixados como eventos itinerantes para reunir os membros do grupo de trabalho e eventuais convidados nos intervalos do Encontro Nacional da ANPOF.
O I Encontro, organizado por Edson Teles (UNIFESP), aconteceu nos dias 18 a 20 de abril de 2012 na Universidade Federal de São Paulo. As reflexões concentraram-se no tema "Democracia e Revolução" e a memória do evento concretizada com a publicação dos trabalhos na edição 23 do periódico especializado "Cadernos de Ética e Filosofia Política" (USP) em julho de 2014. No núcleo de sustentação do início do GT estavam Adriana Delbó (UFG), Adriano Correia (UFG), Alexandre Carrasco (UNIFESP), Bethânia Assy (UERJ/PUC-RJ), Georgia Amitrano (UFU), Miroslav Milovic (UnB), Odilio Aguiar (UFC) e Rodnei Nascimento (UNIFESP). Outros integrantes nessa ocasião eram Cláudio Boeira Garcia (UNIJUÍ), Edson Teles (UNIBAN) e Yara Frateschi (UNICAMP).
Em outubro de 2012, o GT reuniu-se no XV Encontro Nacional da ANPOF e, em outubro de 2014, no XVI Encontro Nacional da ANPOF. O II Encontro foi realizado por Daniel Arruda Nascimento (UFF) nos dias 8 a 10 de abril de 2015 na UFF, Campus Gragoatá, Niterói-RJ. As discussões foram motivadas pela temática "Política e Governo" e os resultados dos trabalhos foram publicados na edição número 28 da Revista "Cadernos de Ética e Filosofia Política" (USP) em junho de 2016.
Após o XVII Encontro Nacional da ANPOF, em outubro de 2016, a coordenadora Maria Cristina Müller ficou responsável pela organização do III Encontro. O evento aconteceu na UEL, Londrina-PR, em torno do tema "A Crise da Democracia e do Estado de Direito", nos dias 23, 24 e 25 de agosto de 2017, com a publicação de parte dos trabalhos na Revista Philósophos (UFG).
Após as atividades do XVIII Nacional da ANPOF, em outubro de 2018, surgiu a ideia de realizar o IV Encontro de Filosofia Política Contemporânea na UFRN, Campus Natal, com organização dos professores Sérgio Dela-Sávia (UFRN) e Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UNIRIO), ambos docentes do PPGFIL-UFRN, o que se concretizou em 26, 27 e 28 de junho de 2019. A publicação que recolhe trabalhos apresentados é a coletânea organizada por Rodrigo Ribeiro, intitulada Política, Direito e Economia no Século XXI (Rio de Janeiro: Via Verita, 2019).
Os anos de pandemia impuseram um hiato dos encontros do GT, retomados agora com a realização da quinta edição, organizada por William Costa Filho, docente na Universidade Estadual do Ceará – UECE, e por Márcia Rosane Junges, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Está previsto um dossiê especial a ser publicado em agosto e 2026 na Revista Filosofia UNISINOS, recolhendo as reflexões compartilhadas em Fortaleza. Entre vários aspectos positivos dessa edição do Encontro, merecem destaque o empenho dos estudantes da UECE na organização, bem como as menções honrosas na abertura a dois dos membros fundadores do GT: Odílio de Aguiar (UFC) e Sonia Schio (UFPel). Marcela Gutierrez Quevedo, da Universidad de Externado, na Colômbia, ministrou a conferência da primeira noite, partilhando suas investigações sobre justiças indígenas em seu país de origem.
O encerramento teve lugar na Biblioteca Estadual do Ceará (BECE) com o lançamento das obras A violência, o poder e o outro. Critica ética da violência biopolítica (Porto Alegre: Fundação Fênix, 2025), de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz, e A banalidade do mal (Rio de Janeiro: Edições 70, 2025), de Adriano Correia. Ambos os autores refletiram sobre suas publicações, cujas temáticas são diretamente ligadas à crítica à violência e aos direitos humanos. Uma sessão de autógrafos e confraternização entre membros do GT e os estudantes de Filosofia da UECE selou o V Encontro.
Castor e Adriano lançam suas obras | Fonte da foto: GT Filosofia Política Contemporânea/Divulgação