O imigrante como inimigo. A retórica anti-imigrante nos EUA e no mundo. Artigo de Márcia Rosane Junges

Foto: Marcello Casal Jr. | Agência Brasil

20 Agosto 2025

A partir de problematizações levantadas pela filosofia política da pensadora italiana Donatella Di Cesare, “a nação se constrói definindo quem não pertence, criando um ‘inimigo interno’ – o estrangeiro. A cidadania, nesse modelo, funciona como um dispositivo de exclusão que concede direitos apenas a um grupo seleto, baseado frequentemente em critérios étnicos, culturais ou sanguíneos (ius sanguinis). O estrangeiro residente expõe a falácia desse sistema. Ele está fisicamente presente no território, contribuindo para a sociedade (trabalhando, pagando impostos, criando filhos), mas é politicamente ausente, privado de direitos fundamentais e de voz política”, observa Márcia Rosane Junges, professora da graduação e pós-graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, jornalista da equipe de comunicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

A concepção que restringe os direitos humanos aos cidadãos nativos é equivocada por várias razões, observa Junges. Reconhecer que os direitos humanos são para todas as pessoas não significa abolir fronteiras, mas sim afirmar que dentro delas, ou em suas portas, existe uma obrigação moral e legal mínima que não pode ser negada a ninguém.

Eis o artigo. 

Uma onda de intolerância aos imigrantes varre os cinco continentes, fenômeno que não é de hoje e que, de algum modo, existe nas sociedades com variações de contextos sócio-epocais. Entretanto, com o recrudescimento de governos de extrema-direita em inúmeros países do globo e sua retórica calcada na xenofobia e no ódio ao estrangeiro como culpado por boa parte das mazelas da sociedade, a estigmatização, o endurecimento de regras para a imigração e inclusive a perseguição e deportação de pessoas estrangeiras economicamente vulneráveis, aquele Outro que surge em busca de uma vida melhor passa a ser mal vindo, mal visto e indesejável.

Dentro de um paradigma civilizacional calcado em ideias persecutórias, construídas sobre o solo da soberania e da cidadania como fundamento dos direitos humanos, bem como do referencial amigo-inimigo cujas raízes remontam à filosofia política de Carl Schmitt, o imigrante se torna um bode expiatório conveniente. A decadência econômica dos impérios ditos civilizados é atribuída às pessoas que fogem de desastres climáticos, guerras, miséria e falta de oportunidades gestadas justamente por nações desenvolvidas que predaram os territórios hoje conflagrados pelos mais variados motivos. Sua presença física é indesejada porque não possuem recursos financeiros próprios suficientes, isto é, não são imigrantes que injetam dinheiro nas economias combalidas dos países europeus ou nos Estados Unidos da América - EUA em seu processo decadencial explícito e impossível de determos. Entretanto, são trabalhadores que, se antes eram convenientes por sua força de trabalho barata, hoje são indesejados, perseguidos e expulsos, como todos os dias vemos nas notícias distópicas de deportações, aprisionamentos e da vigilância que os EUA interpõem ao cotidiano de uma população assustada e incrédula quanto aos retrocessos humanitários que experimenta.

Ao colocarem seus corpos em movimento, ao submeterem-se aos coiotes atravessadores e seu altíssimo preço a pagar em dólares, ao rasgarem mares em embarcações precárias, muitas vezes transportando mulheres grávidas, crianças e até idosos, arriscando perderem a vida, esses imigrantes sonham em aportar em terra firme, onde possam reconstruir suas vidas, trabalhar, sustentar suas famílias, projetar um futuro. Querem paz, um teto para se abrigar, alimento digno, um senso de comunidade. Mas o que encontram na maioria das vezes é o desprezo, os olhares de soslaio, a indiferença ou até a deportação sumária, ainda que possuam documentos em dia. Na melhor das hipóteses, conseguem trabalhos precarizados, exploratórios, que os fazem receber o mínimo para sobreviver. Mesmo assim, voltar, nesses casos, não é uma opção.

E é justamente sobre a temática O imigrante como inimigo. A retórica anti-imigrante dos EUA e no mundo, que a Profa. Dra. Sueli Siqueira, docente na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), em Governador Valadares, Minas Gerais, irá ministrar conferência nesta quinta-feira, 21 de agosto, das 17h30min às 19h, dentro da programação do IHU Ideias. Um tema inconveniente, duro, incontornável e necessário, que deve ser enfrentado com coragem. Doutora em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sueli defendeu a tese Migrantes e empreendedorismo na microrregião de Governador – sonhos e frustrações no retorno (Governador Valadares: Editora Univale, 2007) e, entre outras obras, é autora de Ligações migratórias contemporâneas. Brasil, Estados Unidos e Portugal (Governador Valadares: Editora da Univale, 2018). A temática das migrações e imigrações compõe o panorama de suas pesquisas desde meados da década de 1990 até os dias de hoje.

As análises de Sueli voltam os olhos para as migrações dentro do Brasil, mas também para fora de nosso país, ajudando-nos a entender um fenômeno complexo, multifacetado e que expõe o desafio que representa para o poder público e para a sociedade civil, em larga medida despreparados para receber e conviver de modo digno com pessoas que tensionam o referencial da cidadania como norteador de reconhecimento de direitos humanos. Uma discussão que toca no cerne do debate sobre ética, política e direito internacional. 

Estrangeiros residentes e uma nova democracia

Se migrar é um direito humano e no fundo somos todos imigrantes e, por isso, guardamos em nós a semente de uma outra forma de se fazer política, como propõe a filosofa italiana Donatella Di Cesare, há algo muito errado na concepção dos direitos humanos que são destinados somente àqueles que são cidadãos e por isso têm garantido o direito à nacionalidade, uma vez que o binômio sangue-solo (blud und bode, em alemão) continua operativo dentro dos estados-nação.

A concepção de Donatella Di Cesare sobre os estrangeiros residentes (ou stranieri residenti) é central em sua obra e representa uma crítica profunda ao modelo tradicional de Estado-nação e à própria ideia de cidadania. A pensadora argumenta que o estrangeiro residente não é uma figura temporária ou anômala, mas sim a figura política fundamental da contemporaneidade. Ele é o sintoma de uma condição humana universal – a de ser sempre, em algum sentido, um estrangeiro – e a chave para repensar a comunidade política de forma mais aberta e justa.

Um dos pilares centrais da concepção de estrangeiros residentes consiste justamente na crítica ao Estado-Nação e ao mito da cidadania. Di Cesare parte de uma crítica contundente ao modelo de Estado-Nação, que ela vê como fundado em uma exclusão violenta. A nação, segundo ela, se constrói definindo quem não pertence, criando um "inimigo interno" – o estrangeiro. A cidadania, nesse modelo, funciona como um dispositivo de exclusão que concede direitos apenas a um grupo seleto, baseado frequentemente em critérios étnicos, culturais ou sanguíneos (ius sanguinis). O estrangeiro residente expõe a falácia desse sistema. Ele está fisicamente presente no território, contribuindo para a sociedade (trabalhando, pagando impostos, criando filhos), mas é politicamente ausente, privado de direitos fundamentais e de voz política.

Outro aspecto da problematização estabelecida por Di Cesare é que o estrangeiro opera como um "hóspede” inoportuno. Para essa metáfora, recorre à figura filosófica do hóspede (em italiano, ospite, palavra que significa tanto anfitrião quanto hóspede, carregando uma ambiguidade fundamental). O estrangeiro residente é o hóspede inoportuno, aquele que chega sem ser convidado e desafia a lógica da hospitalidade condicional (aquela que o anfitrião oferece e pode retirar a qualquer momento). Sua presença permanente e não solicitada questiona a soberania absoluta do Estado sobre seu território e suas fronteiras. Ele força a comunidade a enfrentar a pergunta: "O que me deve quem chegou?".

Em terceiro lugar, Di Cesare faz referência à "soberania da estranheza" ou à "soberania do estrangeiro". A soberania da estranheza refere-se a uma condição ontológica, na qual a filósofa defende que a "estranheza" (o ser estrangeiro) não é uma exceção, mas a regra. Todos somos, em essência, estrangeiros. Ninguém escolhe completamente onde nasce, e todos podem se encontrar em um lugar onde são estranhos. O estrangeiro residente torna visível essa condição universal que o Estado-Nação tenta negar. Já a soberania do estrangeiro diz respeito ao direito inalienável de migrar, de não ser enraizado, de buscar um lugar para viver. É um direito que precede e desafia a soberania dos Estados.

Por fim, Di Cesare não propõe simplesmente a abolição das fronteiras, mas a sua radical reconfiguração política. Ela defende a dissociação entre residência e cidadania. Sua proposta é a de uma "cidadania de residência" (cittadinanza di residenza), onde o direito pleno à participação política e aos direitos sociais seja concedido com base na presença factual no território e na contribuição para a comunidade, e não na origem ou na herança nacional. Nesse modelo, o estrangeiro residente deixa de ser um problema a ser resolvido (por assimilação ou expulsão) e se torna o sujeito político a partir do qual se constrói uma nova ideia de democracia – uma democracia aberta, plural e verdadeiramente inclusiva.

Em essência, para Donatella Di Cesare, o "estrangeiro residente" é o espelho que reflete as contradições e violências do nosso sistema político atual e, ao mesmo tempo, a chave para imaginar um futuro político mais justo e livre. 

Direitos humanos e cidadania: uma equação equivocada

A concepção de que os direitos humanos são destinados somente aos cidadãos nascidos em um país é considerada errada e profundamente limitada por uma série de razões fundamentais, que podem ser resumidas em alguns pontos centrais.

Primeiramente, essa concepção viola o princípio filosófico fundamental dos Direitos Humanos. A ideia central dos direitos humanos, tal como consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), é a de que eles são universais, inalienáveis e inerentes a toda a pessoa humana. Portanto, os direitos humanos não são um privilégio de um grupo específico. Eles aplicam-se a todas as pessoas, simplesmente em razão de sua humanidade, independentemente de nacionalidade, origem, etnia, religião ou status legal. O Artigo 1º da Declaração afirma: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos."

Esses direitos não são concedidos pelo Estado, que tem o dever de reconhecê-los e protegê-los. Se os direitos dependessem da cidadania, o Estado teria o poder de revogar a própria humanidade de uma pessoa, o que é uma contradição lógica e ética. Portanto, limitar os direitos humanos aos cidadãos nativos é um erro categorial. É confundir direitos de cidadania (que são específicos de um vínculo político com um Estado, como votar) com direitos humanos (que são o piso ético mínimo devido a qualquer pessoa).

Atribuir direitos humanos somente a quem for nascido em determinado território é restringir os direitos básicos à cidadania, concepção que cria automaticamente uma categoria de pessoas dentro do território que são desprovidas de proteção legal básica. Essas pessoas (imigrantes, refugiados, apátridas) tornam-se "seres humanos de segunda categoria", expostos a exploração, abuso e arbitrariedade. Isso abre espaço para práticas como trabalho análogo à escravidão (pois sem direitos trabalhistas o imigrante pode ser explorado), violência e discriminação (já que sem acesso pleno à Justiça tornam-se alvos fáceis) e condições de vida desumanas (uma vez que sem direito à saúde, educação e moradia adequados a vulnerabilidade é exponencializada).

Outro problema da concepção de atribuir direitos humanos somente àqueles nascidos em certo território é que se trata de uma interpretação contrária ao Direito Internacional. O arcabouço jurídico internacional é claro ao dissociar direitos humanos de nacionalidade. Vários tratados ratificados pela maioria dos países do mundo reforçam isso, como a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), que garante proteção específica a pessoas que fogem de perseguição, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990), que estende explicitamente direitos humanos fundamentais a todos os trabalhadores migrantes, independentemente de seu status, além da  Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), que afirma que todos os direitos se aplicam a todas as crianças, sem discriminação de qualquer tipo. Um país que nega direitos humanos básicos com base na nacionalidade está, portanto, em violação direta às suas obrigações internacionais.

Além disso, conceber um nexo decisivo entre a concessão de direitos humanos e a cidadania ignora a realidade global interconectada, visto que o mundo de hoje é marcado pela mobilidade humana em massa (por motivos inúmeros como guerras, crises climáticas, desigualdade econômica). A partir disso, uma visão que ancora direitos a um pedaço de terra específico onde se nasceu é falha em pelo menos três aspectos, sendo 1) anacrônica, pois não responde aos desafios do século XXI; 2) impraticável, tendo em vista que cria sociedades disfuncionais com bolsões de marginalização e conflito social e 3) cínica, porque ignora que a riqueza e a estabilidade dos países desenvolvidos estão frequentemente ligadas a dinâmicas globais que produzem migração (ex.: exploração de recursos, colonialismo, mudanças climáticas). 

Contradição e violência do Estado-Nação moderno

Retomando a proposição filosófica de Donatella Di Cesare, está em xeque diretamente a concepção limitada de entender os direitos humanos como atrelados à cidadania, ou seja, ao paradigma do nascimento como justificativa para conferir proteção à vida das pessoas humanas. Para ela, o "estrangeiro residente" é justamente a figura que expõe a contradição e a violência do Estado-Nação moderno.

O estrangeiro, por sua mera presença, nos interpela com a incômoda pergunta: "Se os direitos são humanos, por que me são negados?" Ele revela que a cidadania nacional muitas vezes funciona como um dispositivo de exclusão que nega a universalidade dos direitos. A luta pelo direito de ter direitos para os estrangeiros é, na verdade, uma luta para reafirmar o princípio mais básico de todos: o valor igual de cada vida humana.

Dessa forma, a concepção que restringe os direitos humanos aos cidadãos nativos é

1) filosoficamente errada, porque trai o princípio da universalidade;

2) eticamente indefensável, pois cria hierarquias de humanidade;

3) juridicamente insustentável, já que viola o direito internacional e

4) politicamente míope ao gerar instabilidade e injustiça social.

Ela confunde a gestão da imigração (um desafio político complexo) com a negação da humanidade (uma violação ética grave). Reconhecer que os direitos humanos são para todas as pessoas não significa abolir fronteiras, mas sim afirmar que dentro delas, ou em suas portas, existe uma obrigação moral e legal mínima que não pode ser negada a ninguém.

Em 04-11-2025 Donatella Di Cesaredocente na Università La Sapienza, em Roma, Itália, ministrará a conferência Estrangeiros residentes, refugiados e o imperativo da desumanização, dentro da programação do XXII Simpósio Internacional “A extrema-direita e os novos autoritarismos. Ameaças à democracia liberal”, promovido em parceria pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU e o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos. O evento ocorrerá em modalidade híbrida, ou seja, presencialmente no campus da Unisinos em São Leopoldo, com transmissão das conferências via Microsoft Teams para todos que estiverem inscritos. 

O desafio da hospitalidade

Sem reconhecer a alteridade não há diálogo, nem a própria singularidade. Esse é um motivo a mais para que se pratique a acolhida, “lá onde o mercado ainda não se apropriou da hospitalidade, arrancando-a da gratuidade e forçando-a a entrar na lógica comercial”, menciona o frade dominicano Claudio Monge na entrevista concedida por e-mail à Revista IHU On-Line Edição 499, de 19 de dezembro de 2016. “Nós existimos e a humanidade existe porque originalmente cada um de nós foi, primeiramente, hospedado, acolhido. ‘Mãe’ é o nome da hospitalidade ativa, da hospitalidade primordial”, afirma o italiano radicado na Turquia.

Vivendo no Oriente, “descobri uma hospitalidade que é arte: uma atitude de atenção que não faz exceção com ninguém, mas que é também capacidade de tomar e dar o tempo”, frisa o teólogo que desde 1997 vive sua experiência teológica e pastoral em Istambul, Turquia, como Superior da comunidade e responsável pelo Centro Dominicano para o Diálogo Inter-religioso e Cultural - DOST-I no diálogo-encontro com a tradição muçulmana.

A hospitalidade pressupõe um tensionamento entre a possibilidade de um Outro, pois como a própria etimologia da palavra ensina, o termo em latim hospes (hóspede) provém de hostis (inimigo), pressupondo, em termos genéricos, o estrangeiro, o forasteiro e um potencial perigo. Para os europeus, hoje, a temática da hospitalidade os coloca diante de sua incapacidade cultural e política de serem hospitaleiros, reconhece Placido Sgroi em outra entrevista concedida por e-mail a essa mesma edição da Revista IHU On-Line que discute a temática da hospitalidade. Membro de um grupo na Itália que trabalha especificamente o tema da hospitalidade, junto de Marco dal Corso e Brunetto Salvarani, Sgroi leciona Filosofia e História na Universidade de Verona e Teologia Ecumênica em Veneza. 

Para o pesquisador, o desafio para a Europa é justamente praticar a hospitalidade: “isso significa reconhecer o débito que temos em relação aos povos do Sul do mundo que batem à nossa porta e para os quais, acolhendo-os, nada mais fazemos do que restituir aquilo que a nossa civilização euro-norte-ocidental lhes tomou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitalidade mostra o lado frágil da nossa civilização e corre o risco de ser um sinal de perigosa esterilidade antropológica e cultural, antes mesmo que ética.” 

Anote e participe!

O imigrante como inimigo. A retórica anti-imigrante nos EUA e no mundo

 Profa. Dra. Sueli Siqueira – Univale  

⏰ 21/08 | 17h30min às 19h

🎥Transmissão ao vivo 

YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=7KRz15YHrcA

Facebook: https://www.facebook.com/InstitutoHumanitasUnisinos/events

Página inicial do IHU: https://www.ihu.unisinos.br/ 

📌 A atividade é gratuita. Será fornecido certificado a quem se inscrever e, no dia do evento, assinar a presença por meio do formulário disponibilizado durante a transmissão. 

📌O evento ficará gravado no YouTube e Facebook e pode ser acessado a qualquer momento. 

Inscrições e mais informações: https://www.ihu.unisinos.br/evento/ihu-ideias