Em 11 de setembro de 1973, o presidente socialista do Chile, Salvador Allende, foi deposto por um golpe militar apoiado pela CIA. Nesta entrevista de 1971, publicada pela primeira vez em português, Allende expressou seus temores sobre a desestabilização interna e a interferência estadunidense.
O artigo é de Rossana Rossanda, cofundadora do il manifesto, política italiana de esquerda, jornalista e feminista, publicado por Jacobin, 10-09-2025. A tradução é de Pedro Silva.
Quase cinco décadas após sua eleição, Salvador Allende permanece um ícone do socialismo. Vencendo por uma margem estreita as eleições presidenciais de 1970 como líder da coalizão Unidad Popular, ele lançou um ambicioso programa de nacionalizações para colocar os trabalhadores no comando da economia. A reação foi feroz, desde a fuga de capitais até a sabotagem total. Apontando Allende como um inimigo implacável, o presidente dos EUA, Richard Nixon, disse em uma reunião com o Conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, que seu objetivo era “fazer a economia gritar”.
Nixon e Kissinger conseguiram o que queriam em 11 de setembro de 1973, quando Allende, eleito democraticamente, foi deposto por um golpe militar apoiado pela CIA. Após a morte de Allende, milhares de socialistas, comunistas e ativistas trabalhistas foram assassinados pelo regime do general Augusto Pinochet, que logo se tornou um campo de testes para a terapia de choque neoliberal. No entanto, antes de se tornar um exemplo sombrio da disposição das elites em destruir a democracia, o experimento de Allende foi, em si, um farol para a esquerda internacional.
Um ano após a chegada de Allende à presidência, em outubro de 1971, Rossana Rossanda o entrevistou para o diário comunista italiano Il Manifesto. Essa entrevista reflete a esperança da esquerda internacional na experiência chilena, mas também a percepção de quão frágil ela era diante da oposição do exército. Como dizia um subtítulo sombriamente agourento no Il Manifesto na época: “Se os oficiais vencerem, não será uma troca da guarda palaciana, mas um banho de sangue.”
Exceto por certos floreios nos comícios eleitorais, a maneira como se fala de política em Santiago não se parece em nada com a visão clichê da América Latina. Não há muita retórica, os epítetos são usados com parcimônia e há uma tendência notável a não fazer promessas exageradas. O Chile parece estar à espera, cauteloso como um gato, mas certamente não como um gato adormecido. Você pode perguntar a qualquer um — um intelectual, um trabalhador, um taxista ou uma balconista — por que todos são “politizados”, e ninguém pode lhe dar uma resposta definitiva. Mas isso não ocorre porque, como alguns gostam de afirmar, os chilenos possuam naturalmente uma “mentalidade institucional” e, portanto, sejam plácidos. Em vez disso, é que eles sabem que a situação é instável — e não escondem isso. A resposta mais categórica que recebi foi do maior chileno de todos, Salvador Allende Gossens. Ele, como todos os seus compatriotas, mede suas palavras, mas fala com crescente segurança. Pois ele precisa jogar suas cartas com convicção — e com pressa.
Conversei longamente com Allende durante o café da manhã no palácio presidencial. Eu havia sido convidada para lá, juntamente com Paul Sweezy e Michel Gutelman, que as duas universidades de Santiago haviam convidado para participar de um seminário sobre “sociedades em transição”. Nossa presença irritou os comunistas chilenos, que desertaram do seminário e nos atacaram de forma extraordinariamente crua em seu jornal não oficial… nos chamaram de “gringos ignorantes” e renegados “pró-Pequim”. Assim, quando o presidente nos convidou — apesar de seus sólidos vínculos com o Partido Comunista —, isso lhes ensinou uma grande lição. Ele sabia que nenhum de nós havia minimizado nossas dúvidas ou distorcido nossas posições apenas por causa do convite. Poucos minutos depois de nos sentarmos, ele me perguntou: “Há algo neste país que você considere convincente, camarada?”
“O que o senhor está tentando fazer aqui é importante, senhor Presidente” (e ele me interrompe imediatamente — “‘Sr. Presidente’, não! Me chame de ‘camarada’. Sou um camarada como você”). “Mas acho que há um longo caminho daqui até o socialismo.” Não é uma resposta que o agrade particularmente, mas ele admite: “Sim, é um caminho difícil”. Mas ele não está interessado em se deter nisso: para ele, o que importa é que entendamos como as coisas se movem, o que ele quer fazer e, acima de tudo, as dificuldades que enfrenta. E ele não tem intenção de disfarçá-las com otimismo.
Assim que entrou na sala onde o esperávamos, Allende — um homem baixo, mais gordinho do que parece nas fotos, mas também mais radiante — estava visivelmente cansado. Mas se dirigiu a nós diretamente, com um jeito firme: “Obrigado por terem vindo. Vocês são formadores de opinião em seus países, então é muito importante que conheçam o Chile de hoje e o mostrem a todos.” E depois de um pouco de autoindulgência (“Sou médico, não sou político por opção”), fomos direto ao ponto. E falamos sobre as dificuldades atuais do Chile.
Dificuldades em nível internacional? “Nós também temos”, ele responde. “Temos 4.000 km de fronteiras, ninguém poderia defendê-las. Estamos sozinhos aqui no fundo do continente. E incomodamos muita gente.” A referência óbvia e não mencionada aqui, como em toda a América Latina, é ao Brasil; poderoso, violento e expansionista, dirigiu o golpe de Estado na Bolívia e, assim, removeu um possível aliado de Allende. “Não acho que haverá um ataque militar. Mas é essencial que não estejamos isolados. Foi o presidente argentino Alejandro Agustín Lanusse quem abriu as portas para os países do Pacto Andino. Claro…” — e aqui ele me olha de relance, pois sabe o que os exilados argentinos no Chile pensam sobre isso — “… ele também tinha interesse nesta operação. Mas, por enquanto, somos nós que mais nos beneficiamos”.
E ele tem razão: ao chegar a um acordo com Lanusse, fortaleceu sua posição em relação aos Estados Unidos e retirou um possível território para a direita chilena. Não escondeu que contava com hierarcas militares neste imenso Estado vizinho, encostado ao Chile ao longo da Cordilheira dos Andes. “Agora podemos dizer que estamos seguros no Cone Sul, mesmo que o golpe de Estado na Bolívia tenha sido uma reviravolta grave.” Uma reviravolta grave, mas que pode acabar até jogando a favor de Allende: quando o coronel boliviano Hugo Banzer, imprudentemente, desfez a antiga demanda por uma saída marítima às custas do Chile, isso, de um só golpe, restaurou a unidade do exército chileno — ainda o ponto mais incerto nos planos de Allende — em torno do presidente.
Mas e os estadunidenses? Como Allende avalia as declarações do secretário de Estado dos EUA, Bill P. Rogers, depois que o governo chileno se recusou a indenizar os proprietários das minas nacionalizadas? Rogers estava apenas com raiva ou isso foi uma ameaça real?
“Uma ameaça real”, insiste Allende. “Muito mais séria do que qualquer um parece ter percebido, aqui ou em qualquer outro lugar.” E ele repete o argumento que já havia apresentado em uma resposta contundente ao Departamento de Estado. Como ele mesmo afirma, os Estados Unidos não aceitarão que um Estado recupere a riqueza que lhe foi roubada (ainda mais considerando que o caso chileno é um precedente perigoso), e assim, em resposta, os Estados Unidos chantageiam toda a América Latina.
Mas, ao contrário do que a Newsweek (e, ainda mais hipocritamente, o grande jornal de Santiago, El Mercurio — um inimigo de Allende) declarou, o governo da Unidad Popular não só não busca uma ruptura, como age com extrema cautela. Essencialmente, tem como alvo apenas aquelas questões — como as minas — onde inegavelmente tem a justiça do seu lado.
A operação para calcular a compensação devida à Anaconda e à Kennecott [empresas de mineração, cujas participações foram nacionalizadas por Allende], deveria ter terminado com um clamoroso “Não só não lhes devemos nada, como são vocês que ainda nos devem cerca de US$ 400 milhões”. No entanto, foi conduzida sem alarde, com recurso mínimo a bravatas e com a máxima supervisão de especialistas internacionais.
Para Allende, “os Estados Unidos podem nos prejudicar muito. Todas as peças de reposição necessárias para a indústria do cobre vêm dos Estados Unidos. E também os agentes químicos de que precisamos. Eles podem interromper a produção da noite para o dia.” E isso vai acontecer? “Espero que não. Mas é por isso que precisamos de apoio internacional.”
Quais, pergunto, são as dificuldades mais sérias a curto prazo? Aqui, também, Allende é direto: “Moedas estrangeiras e garantia de suprimentos”. O Chile sempre precisou importar alimentos e outros bens de consumo: e com um aumento salarial real calculado em cerca de 40%, houve um consequente aumento na demanda por estes últimos. E eles têm que vir do exterior: quase US$ 300 milhões este ano e mais no ano que vem. Então, o Chile tem que pagar US$ 360 milhões por ano para cobrir sua dívida externa, que disparou desde que as minas foram nacionalizadas. E não é mistério que as reservas cambiais estão se esgotando, agora não passam de US$ 100 milhões. “Você realmente tem que pagar?” Allende me olha de soslaio: “O Chile pagará o que lhe é devido”. Estamos falando dos grandes bancos globais — e torná-los inimigos significaria problemas.
On this day in 1973, Salvador Allende, the progressive, democratically elected leader of Chile, was attacked and deposed in a US-backed coup that installed the right-wing dictatorship of Augusto Pinochet. pic.twitter.com/myPvMrNrgr
— Jason Hickel (@jasonhickel) September 11, 2025
“Precisamos de crédito”, explica Allende — e não finge já tê-lo encontrado. “Tudo ainda precisa ser decidido, levantamos o problema com os países socialistas e estamos negociando, mas tudo ainda está sendo discutido — nada foi selado.” Há a Europa também, mas é distante e, como eu descobriria mais tarde, a FIAT — que parecia interessada em facilitar as relações para instalar uma grande fábrica no Chile — foi subitamente coberta por mil garantias do governo italiano. Há a Alemanha. Há o Japão, com todos aqueles milhões de dólares arrecadados neste verão: precisa investi-los em algum lugar. E, de fato, o Chile conversou com o Japão. Mas, claramente, até agora, diante da irritação estadunidense — e talvez da incerteza quanto ao destino doméstico de Allende — ninguém apostou em conceder crédito significativo ao Chile. Sua reconversão industrial levará mais do que alguns dias e, por um tempo, a reforma agrária custará mais do que arrecada. E a cautela soviética é evidente.
Allende não esconde que este é o seu principal problema: tem certeza de que, se conseguir resolver este, poderá resolver todo o resto, à sua esquerda e à sua direita. À sua direita, ele agora está em desacordo com os democratas-cristãos — “Todos se uniram contra tudo”. “Mas [o democrata-cristão progressista] Radomiro Tomic se comportou de forma diferente no início, não?” — “Sim, mas hoje estão todos do outro lado”. Ele diz isso com raiva, amargura, mas também com um meio sorriso, insinuando os limites da oposição de direita. “Mas o exército foi neutralizado por enquanto”.
O exército chileno — ele me diz, como todos aqui — não é o instrumento tradicional de golpes de Estado: é a expressão de uma camada da classe média com fortes laços institucionais. No entanto, ao contrário de outros, o camarada presidente não parece alimentar muitas ilusões: é cauteloso nos adjetivos que usa e, por enquanto, se contenta com a “neutralidade” do país. Para tanto, precisa de uma política de compras externas que não aliene as classes médias, restringindo o consumo, nem forneça uma base de massa para agitações à direita, que tem muito mais filiais do que apenas o partido de Jorge Alessandri [candidato presidencial derrotado em 1970].
Ainda mais considerando que um confronto se aproxima em torno do famoso projeto de lei para determinar as áreas de intervenção estatal. Allende apressou-se em nacionalizar indústrias antes que a maior parte do capital pudesse fugir. Mas é óbvio que, sob a atual tempestade de granizo, apenas pequenas e médias empresas protegidas estão investindo, e os democratas-cristãos buscam limitar até onde as expropriações governamentais podem ir — nisso, auxiliados pela falta de maioria da Unidad Popular no Congresso. Allende propôs, portanto, listar as áreas de passíveis de intervenção estatal, as áreas de intervenção mista e aquelas deixadas para o setor privado. Ele me conta sobre o mecanismo desenvolvido para isso, insistindo que, se nenhum acordo for alcançado, mas o projeto for aprovado, ele o vetará por decreto presidencial e, em vez disso, realizará um referendo. O objetivo: reduzir a margem de apoio popular de seus adversários. E seus adversários sabem disso.
O jogo se desenrola em um curto espaço de tempo e é óbvio que Allende está preocupado. Enquanto fala comigo em voz baixa e com frases curtas (nossa mesa é grande demais para não se dividir em uma série de diálogos entre vizinhos), Allende come muito pouco e não parece inclinado a expressar nada em termos excessivamente diplomáticos. “Como você tem achado o humor das pessoas?”, ele me pergunta. Respondo que o país parece sem tensão: as maiores paixões se encontram entre os jovens recrutas convocados pelo governo e depois no Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Não se vê a participação do povão, das classes baixas.
“No se detienen los procesos sociales ni con el crimen ni con la fuerza. La historia es nuestra y la hacen los pueblos.”
— Historiadora (@anaais1982) September 11, 2025
Últimas palabras de Salvador Allende, 52 años después, del golpe de Estado que acabó con su vida y la democracia en Chile. Siempre en la memoria. pic.twitter.com/k38zwFLVSh
“Podemos mobilizar as massas quando quisermos”, explica. “Mas não é importante que elas se mobilizem sozinhas? Se houver uma situação difícil, não seria melhor que as massas tivessem suas próprias ferramentas para intervir?” Aqui Allende não entra na brincadeira, embora um momento depois um sorriso surja em seus olhos e ele interrompa: “Então a camarada é ultraesquerdista!”. Ele acrescenta: “Cabe aos partidos mobilizar e organizar as massas. Existem partidos e sindicatos. O que você achou do Partido Socialista?” Achei-o interessante como uma esponja absorvendo diferentes forças, menos fechada que o Partido Comunista e mais capaz de refletir as pressões contrastantes de uma base política diante de uma nova situação. Allende — com razão — o considera pouco organizado. Ele me diz que não tem tempo para se ocupar disso, embora participe de reuniões do partido todas as quartas e sextas-feiras.
Mas é claro que algo mais o preocupa, justamente por ultrapassar seu próprio horizonte político. E este é o primeiro surgimento de uma presença massiva, ou de classe — aquela convocada pelo MIR com as ocupações de terra, que não obedecem às regras do jogo político-institucional. Essas massas (e o MIR), que às vezes rompem com qualquer ritmo combinado, também precisam ser “neutralizadas” ou pelo menos “canalizadas” — embora Allende não diga isso abertamente. Não por acaso, ele me garante que suas relações com o MIR são excelentes, no nível pessoal: sua irmã Laura, médica, explica ele, tem um filho que é quadro do MIR e sempre o recebe com seus companheiros em sua casa. No Chile, esses laços contam.
Pouco depois, terminado o café da manhã, sinto-me envergonhada por ter monopolizado o presidente — e tento deixar os outros conduzirem seus temas. Mas o tom logo muda. A discussão se volta para o julgamento que Allende iniciou contra um sobrinho seu no MIR, que foi ainda mais longe nas críticas ao exército, nas páginas do jornal do partido, o Rebelde. “Você precisa entender, o fato de ele ser meu sobrinho não muda nada!” O presidente adota um tom mais ríspido: “Não se deve brincar com fogo. Não permitirei provocações irresponsáveis. Se alguém acredita que no Chile um golpe de Estado do Exército se desenrolaria como em outros países latino-americanos, com uma simples troca de guarda aqui em La Moneda [o palácio presidencial em Santiago], está redondamente enganado. Aqui, se o Exército rompe a legalidade, significa guerra civil. Foi o que aconteceu na Indonésia. Você acredita que os trabalhadores deixariam que a indústria lhes fosse tirada? Ou os camponeses, a terra? Haverá cem mil mortos, um banho de sangue. Não permitirei que ninguém brinque com isso.”
On #September11, 1973 the US backed a military coup in Chile resulting in the death of democratically elected president Salvador Allende and the institution of a military junta, also supported by the US. Hundreds of thousands of people were killed or disappeared. #NeverForget pic.twitter.com/ohY4GhJz1d
— Geaux Tigers 🐯 (2-0) (@stealyoredbull) September 11, 2025
Ele realmente acredita nisso. Mas, mais uma vez, assim como no relacionamento com as massas, a única garantia que ele vê está no tempo que ele próprio estabeleceu para a operação, seu estilo de “ofensiva legalista” combinado com uma rara capacidade de fragmentar a frente inimiga. Cada ofensiva de classe mais direta e incisiva corre o risco de desequilibrar a balança. Duvido que seu sobrinho vá para a cadeia: mas pressionar o MIR agora é de rigueur, assim como chamar os trabalhadores à ordem, quando necessário.
Enquanto nos preparávamos para encerrar, por volta das 14h30, Allende nos conta que está indo para o Norte, para a grande mina de cobre de Chuquicamata, onde os trabalhadores reivindicaram um enorme aumento salarial — um aumento entre 50% e 70%. “Eles não podem fazer isso, e eu vou lá para dizer isso a eles. Contra quem eles estão em guerra? Eles agora são os donos da mina.” “Não são eles os donos, camarada presidente, mas o Estado.” O Dr. Allende me encara como um paciente recalcitrante: “o povo é o dono.” “Bem, camarada presidente…” — “É. Será!” Um momento depois, depois de nos despedirmos, ele me liga de volta. “Eu sei que amanhã você vai para Concepción, fico feliz, é importante que você vá para lá, quero conversar sobre isso depois, com calma.” O fato é que o convite para Concepción vem de uma universidade “pró-MIR”, e é lá que o movimento organizou ocupações de terra. Allende, que já me surpreendeu ao mostrar que sabe o que é il manifesto, acredita na virtude do debate, quer convencer, defender “seu” Chile, sua linha, conquistar a todos — inclusive os “ultraesquerdistas”.
Mas não haverá um “depois” e não verei o Dr. Allende novamente. Há apenas um dia entre o retorno de Concepción e minha partida, e na noite anterior a isso um enorme escândalo estoura. Por ocasião da Feira Agrícola Latino-Americana, realizada com a presença de ministros e embaixadores, a direita agrária decide incautamente denunciar o “estatismo” do governo, acusando-o de minar os valores da propriedade e da iniciativa camponesa. Allende, que deveria comparecer à Feira, só vê o discurso de Benjamin Matte — que talvez pensasse ter costas quentes por ser presidente do Instituto para as Relações com Cuba — uma hora antes de seu discurso. Enfurecido, o presidente não só desiste de abrir a Feira, como também pede a Matte que leia antes de seu discurso uma carta do próprio Allende, chamando-o de irresponsável em termos inequívocos. A Feira começa em uma atmosfera extraordinária, com pessoas aplaudindo freneticamente a carta de Allende e Matte tentando se fazer ouvir em meio aos assobios e gritos de “momio, maricón!” (“múmia, viadinho!”), enquanto embaixadores e ministros se retiram e países amigos fecham seus pavilhões mais cedo. No dia seguinte, há sensacionalismo nos jornais, uma reunião de gabinete e uma discussão violenta com os democratas-cristãos. É impossível ver o presidente — e entendemos o porquê.
Mas este episódio também faz parte do retrato: de fato, a personalidade é talvez o terreno em que ele é mais forte, imbatível até. A razão pela qual amigos e inimigos à esquerda e à direita o respeitam. Falam dele — “El Chicho” — com uma mistura de afeto e rancor. Listam seus defeitos, mas com alguma reserva. Pode-se adotar posições radicalmente diferentes, como o MIR, mas ninguém nega que a determinação de Allende é a de um político de grande estatura: um velho socialista que — contrariamente ao costume de socialistas e presidentes na América Latina e em outros lugares — não quer ter rabo preso. O Dr. Allende fez três tentativas de entrar no governo para realizar seu experimento: e agora não o negociará com ninguém. O que resta avaliar é a estabilidade interna de seu projeto: se está destinado a perdurar, ou se penderá para a derrota ou para a revolução que Allende acredita já ter alcançado.
🇨🇱 Un 11 de septiembre de 1973 cambió la historia de Chile y de toda Latinoamérica. El golpe de Estado a Salvador Allende, marcó un antes y un después, pero dejó un legado que jamás se borrará.
— El Tío Play (@RTVCPlay) September 11, 2025
Mira el documental completo, gratis, aquí 👉🏽 https://t.co/NBgBwFe6lI pic.twitter.com/Fi21GZzLew
Uma semana depois que o General Pinochet e sua junta tomaram o poder em um golpe de Estado sangrento, resultando na morte de Allende, o il manifesto publicou o relato de um telefonema com um camarada na capital chilena, Santiago.
Ontem à noite, finalmente conseguimos contato com Santiago. Ligamos para a casa de alguns camaradas e, depois de muitas tentativas infrutíferas, finalmente encontramos alguém que atendesse. Foi uma ligação dramática. Do outro lado da linha estava a esposa de um camarada, com a voz embargada pelas lágrimas. Não conseguíamos expressar nossas perguntas em palavras, devido à nossa ansiedade e ao medo de comprometer a pessoa que atendeu. Eis nossa breve conversa, interrompida por interferências e repentinamente encerrada após alguns minutos.
il manifesto: Conte-nos como você está.
Santiago: Só há uma palavra: Jacarta, Jacarta.
il manifesto: A luta ainda continua?
Santiago: A junta está destruindo tudo. Mas Santiago está isolado. Não sabemos o que está acontecendo no resto do país.
il manifesto: Há muitos mortos?
Santiago: É um massacre só, um massacre. Agora é quase simplesmente um massacre. Milhares de comunistas, camaradas e trabalhadores foram mortos.
il manifesto: Você pode nos dizer quem?
Santiago: Centenas de nossos amigos pessoais foram mortos.
il manifesto: O que a junta planeja? Ela já declarou sua linha política?
Santiago: Todos os quatro na junta são fascistas. São fascistas. Isso foi compreendido na Europa, na Itália? Todos condenaram?
il manifesto: Sim, há uma condenação geral da junta, ela está isolada. Há greves e manifestações. Toda a imprensa denuncia o massacre.
Santiago: As fronteiras não serão abertas novamente por enquanto, entende? É impossível. Faça alguma coisa..
Nesse momento, a ligação caiu. A ligação foi feita com precauções especiais. Pedimos aos camaradas que não liguem para Santiago.