"Em termos eclesiais, D. Jaime confidenciou ter sido advertido — em suas leituras nem sempre fáceis entre uma viagem e outra —, de um elemento teológico sumamente importante no Concílio Vaticano II que parece ter ficado 'um pouco à margem da reflexão': a MISSÃO. Embora sem aludir, avultou aqui um aspecto fundamental da Conferência de Aparecida (2007) e do magistério do Papa Francisco com sua Igreja em saída missionária", escreve Vitor Hugo Mendes.
Vitor Hugo Mendes é presbítero da Diocese de Lages, Santa Catarina, Brasil. Doutor em Educação (UFRGS), doutor em Teologia (Salamanca/Espanha), pós-doutor em Pensamento Ibérico e Latino-americano, pós-doutor em Educação, pároco emérito da Par. N. S. das Graças (Lages). Foi secretário do Departamento de Cultura e Educação (2011-2015) e membro da Comissão Teológica do CELAM. Autor do livro, em dois volumes, Liberación: um balance histórico bajo el influjo de Aparecida y Laudato si’. El aporte latinoamericano de Francisco (APPRIS/AMERINDIA, 2021) sobre a Teologia Latino-americana e o Magistério do Papa Francisco. Recentemente lançou o livro O sujeito da educação: a propósito de um sujeito linguístico em educação (2025). Realiza um estágio pós-doutoral no PPG Teologia, PUCRS.
Apesar de sua habitual discrição, a participação do Cardeal Jaime Spengler no Congresso Internacional Teologia e Evangelização: atenção aos sinais dos tempos — PUCRS 04 a 06/08 —, foi notabilizada pela lucidez e contundência de sua breve intervenção. Ao sugerir um roteiro temático para a reflexão teológica hoje, ousou incluir a histórica questão da teologia da libertação latino-americana e a necessidade de reaver a história recente da Igreja no Brasil.
Bispo auxiliar de Porto Alegre desde 2010, arcebispo metropolitano a partir de 2013, Jaime Spengler, 64 anos, doutor em filosofia (2000), foi criado Cardeal pelo Papa Francisco em 24 de dezembro de 2024. Foi o segundo arcebispo da capital gaúcha a receber a dignidade de Cardeal (o anterior foi D. Vicente Scherer). Franciscano como Paulo Evaristo Arns e Leonardo U. Steiner, Jaime Spengler foi o sexto catarinense a receber o título cardinalício. Esteve presente entre os sete cardeais eleitores do Brasil no último conclave que elegeu o Papa Leão XIV.
Ainda no mês de abril de 2023, na 60ª. Assembleia Geral, em Aparecida, Jaime Spengler foi eleito Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No mês de maio, do mesmo ano, em Porto Rico, foi eleito Presidente do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). Recentemente, em janeiro de 2025, o Papa Francisco o fez membro do Dicastério para a Doutrina da Fé e do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. No dia 24 de junho o Papa Leão XIV o nomeou membro do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
Mesmo com essa trajetória singular e imponente, Spengler, com seu jeito franciscano de ser e conviver, recorda aquela brandura que luziam, como poucos, os cardeais Arns, Lorscheider e Hummes; todos discípulos de Francesco, il poverello d'Assisi. Prosseguindo nessa senda, voz influente da Igreja do Brasil e de toda a América Latina e Caribe, D. Jaime tem arregimentado importante acolhida ao magistério do Papa Francisco e suas iniciativas de reforma da Igreja e da sociedade, de modo particular, na condução do CELAM.
As frequentes declarações públicas do Cardeal Spengler evidenciam posicionamentos firmes, críticos, abertos ao diálogo e propositivos. Recentemente, diante do impacto das enchentes que voltaram a atingir o Rio Grande do Sul, o arcebispo lamentou a falta de ações efetivas. No artigo Lágrimas da casa comum (25/06), reclamou que “a burocracia, a morosidade e, talvez, a falta de transparência em alguns setores colaboram para a morosidade diante do que necessita ser feito”.
No lançamento da Ação humanitária em favor do Povo Palestino (5/08), em Porto Alegre — com conhecimento de causa, pois, estudante de teologia, viveu três anos em Israel —, o presidente da CNBB lembrou que “é inadmissível que um mundo que se diz civilizado permaneça em silêncio diante daquilo que ali acontece”. E, acrescentou: “não se pode usar a fome como arma de guerra. Isso é inadmissível, é inumano”.
No mês de junho, em Roma, o Cardeal Spengler proferiu uma lectio magistralis no colóquio Transições justas: o papel da Igreja na construção de uma visão latino-americana do desenvolvimento social, econômico e ambiental sustentável. Como presidente do CELAM, ressaltou que "a crise ecológica nos desafia a repensar o bem-comum e a cultivar o diálogo social em torno da ecologia integral".
Muito recentemente, apesar de sua intensa agenda de trabalho, o Cardeal Spengler marcou presença na inauguração do Congresso Internacional Teologia e Evangelização. Atenção aos sinais dos tempos, organizado pela PUCRS (04 a 06 de agosto). Com muita familiaridade, o Grão-chanceler da Pontifícia Universidade sobressaiu, em primeiro lugar, a experiência de participar no Conclave. Uma vivência singular, profundamente espiritual e que culminou na escolha do Cardeal Prevost. “O leão é manso”, disse D. Jaime em tom gracioso, por sua vez, tratando de oferecer, em justa medida, acolhida ao estilo cordial do Papa Leão XIV.
Em seguida, ao perscrutar os sinais dos tempos e, assim, os desafios e oportunidades para a reflexão teológica hoje, sucinto, o Cardeal Spengler foi preciso em traçar um roteiro temático de teologia pastoral. Para além disso, a nosso parecer, o presidente do CELAM, tratando de ser consequente com a extraordinária caminhada da Igreja na América Latina e Caribe — engradecida pelo pontificado do primeiro papa latino-americano, Francisco —, finalmente rompeu o silêncio histórico a respeito da teologia da libertação no âmbito do episcopado da América Latina.
Inicialmente, referindo-se aos sinais dos tempos, o cardeal Spengler — quiçá fazendo jus à sua formação filosófica — quis também implicar na reflexão teológica as Semina Verbi (São Justino). Segundo parece, um jeito de desafiar o alcance evangelizador da pastoral em um contexto de mudança de época: trata-se de reconhecer “nas diferenças da sociedade, do tempo, da história, os sinais, os elementos da presença do Verbo entre nós. [...] aqui está, talvez, o grande desafio da reflexão teológica”. Ressoando, assim, uma nota teológica peculiar ao magistério do Papa Francisco, D. Jaime advertiu: “somente uma teologia que esteja atenta à vida concreta das comunidades, somente uma teologia atenta aos sinais do Verbo pode ter relevância; se não se torna academicismo, coisas de gente [...] que pensa numa outra dimensão que não é a realidade do cotidiano. [...] Esta teologia — enfatizou o bispo — só será possível se ela construir a sua casa em cima de uma pessoa: Jesus. Ele é o fundamento, a nossa fé, e só assim seremos capazes de resistir às intempéries e construir verdadeiramente um futuro”.
Tratando de indicar, no espírito sinodal, essa disposição prévia de uma teologia contextual encarnada na realidade da vida, D. Jaime, ao compreender o contexto social contemporâneo, propôs uma “reflexão sobre a figura do pai hoje”. Contudo, recriando um perfil de pai “entendido como mestre, como guia, como referência na sociedade”. Por ser o dia do padre (04/08) e na proximidade do dia dos pais, em sintonia com o mês vocacional da Igreja no Brasil, recuperou algo de sua homilia, naquela manhã, no encontro do clero da arquidiocese de Porto Alegre: “Pode uma sociedade, podemos nós vivermos sem umas referências seguras, sem raízes, sem pai? Parece que há uma tendência... criar pessoas sem bussola interior, [...] sem origem e sem identidade. Tudo é igual, todos são iguais”. E, citando Dostoiévski — escritor russo que, em suas obras, sopesando uma figura paterna ausente ou em declínio, via nisso motivos de perturbações no desenvolvimento psicológico e social — frisou: “[...] se a humanidade perde a referência do Pai, aqui escrita com letra maiúscula [...] vai morrer de frio”.
À luz dessas imagens, D. Jaime discorreu brevemente sobre a paternidade de Deus que “nos guarda no calor da vida”, lembrando uma realidade social em que “a vida é gerada nos freezers de laboratórios”. Diante disso destacou que, “então, talvez, nós, sejamos, de algum modo, custódios, guardiães, promotores do calor da vida. E a nossa sociedade está necessitada de calor. E aqui, certamente, [...] a teologia está em um lugar de destaque”, se poderia dizer, no cuidado da vida, no cuidado da casa comum em tempos de “aquecimento global”. Com essa meditação trazida pelo cardeal Spengler sobre a “paternidade de Deus”, como não recordar aquela importante expressão do Papa João Paulo I inaugurando um novo caminho teológico: “Deus é Pai, mais ainda, é Mãe” (Angelus, 1978).
Em termos eclesiais, D. Jaime confidenciou ter sido advertido — em suas leituras nem sempre fáceis entre uma viagem e outra —, de um elemento teológico sumamente importante no Concilio Vaticano II que parece ter ficado “um pouco à margem da reflexão”: a MISSÃO. Embora sem aludir, avultou aqui um aspecto fundamental da Conferência de Aparecida (2007) e do magistério do Papa Francisco com sua Igreja em saída missionária. Nessa direção, diante das exigências de pensar “sobre Igreja e Evangelização, tendo presente os sinais dos tempos”, o cardeal enfatizou que “não dá para avançar na reflexão sem ter presente o documento final do Sínodo [sobre a sinodalidade da Igreja], cujo centro [...] pode ser resumido numa palavra: Conversão, CONVERSÃO”. A saber: “conversão das relações, conversão dos processos e conversão dos vínculos”. E concluiu: “Temos um trabalho enorme pela frente, imagino”.
Junto a isso, o cardeal detalhou que “seria muito salutar ter bem presente [...] o magistério do Papa Francisco, os grandes documentos: Fratelli tutti, Laudate deum, Laudato si’...”; “Christus vivit, onde ficou...”, inquiriu com razão e autoridade; indagou também por “Amoris laetitia que — pronunciou em forma de lamento — há quem diga, inclusive bispos, ‘na minha diocese não’”. Finalmente, recorrendo à enorme contribuição do papa latino-americano, D. Jaime ainda incluiu, no seu compêndio, Evangelii gaudium, documento programático de Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual; e, Veritatis gaudium — a meu ver (aqui fala o autor) —, o “esboço” (cf. o proêmio) de uma reforma acadêmica ampla e profunda, francamente desejada pelo papa jesuíta, para os estudos de filosofia e teologia, e que continua pendente.
Dando mostras de sugerir um projeto realmente arrojado na hora “de ler os sinais dos tempos” prospectivamente, D. Jaime, não teve receio de indicar a importância de retroagir historicamente a questões, diríamos assim, de ordem teológica, doutrinal e histórica que ainda pedem reflexão e discernimento. Talvez, neste sentido, o indicativo de retomar também Veritatis splendor (1993), do Papa João Paulo II, sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja. Bento XVI, papa emérito, considerou o documento de “inalterada atualidade” (2014). Em 2016, Veritatis splendor ganhou atualidade sendo fortemente referida nas dubia dos cardeais, dirigidas ao Papa Francisco, a respeito da Amoris laetitia.
E, para além de qualquer limite, D. Jaime ainda deixou o registro de algumas glosas que — a nosso parecer —, tratam de superar importantes entraves históricos na Igreja da América Latina e Caribe e do Brasil. De acordo com o presidente do CELAM, “nós precisamos resgatar as duas instruções do Dicastério da Doutrina da Fé sobre a questão da Teologia da Libertação, que para nós virou parece que um chavão perigoso, estranho, coisa que valha, e perdemos eu creio que um fio da história”.
Para ouvidos atentos, foi uma declaração indiscutivelmente extraordinária e impactante em todos os sentidos.
Como sabemos, a Igreja dos Pobres (CEBs), amplamente referendada na Conferência de Medellin (1968), ao longo de décadas, não foi devida e suficientemente reconhecida em sua fundamentação teológica — Teologia da Libertação. Por sua vez, nem mesmo a formidável “opção preferencial pelos pobres” latino-americana, com toda a sua vivência teologal e grandeza, teria tido um maior impacto eclesial e social se não tivesse sido acompanhada por uma sólida reflexão teológica libertadora (cf. V. H. Mendes, Liberación, um balance histórico bajo el influjo de Aparecida y Laudato si’, 2021).
Libanio, em um de seus muitos balanços a respeito da teologia latino-americana, lembrava que “em tão breve tempo de existência, nenhuma teologia se submeteu a tantas avaliações e balanços críticos como a Teologia da Libertação”. Na verdade — afirma o teólogo jesuíta —, a “TdL assumira, desde o início, um conjunto de ideias, intuições e aspirações que conflitavam diretamente com a situação econômica e política do Continente [...]. No imaginário social dominante em certos meios católicos, soava marxismo qualquer crítica ao sistema capitalista” (cf. J. B. Libanio, Revista Horizonte, n. 32, 2013).
A análise de Libanio é representativa quando diz que, “choca-nos ainda mais o pesado silêncio sobre a teologia latino-americana da libertação. Depois de séculos cultivando uma teologia-reflexo, a América Latina produz teologia própria, original, encarnada no contexto continental, escrita com vigor em obras de valor, reconhecidas pela teologia mundial. E o episcopado do Continente a desconhece como se não existisse [...]”. Segundo Libanio, “nem Aparecida conseguiu superar tal tabu de usar a expressão ‘Teologia da Libertação’”, embora, pondera, abriu-se à colaboração de seus teólogos e teólogas (Cadernos de Teologia Pública, IHU, n. 37, 2008).
Com estes poucos elementos, podemos ter uma noção mínima da importância e do alcance do pronunciamento do Cardeal Spengler ao indicar que a teologia da libertação continua sendo um assunto-tarefa pendente na Igreja latino-americana. Também, porque, há pouco mais de uma década (2014), quando o Papa Francisco já sinalizava a necessidade de escuta e diálogo, a então presidência do CELAM, durante uma visita oficial ao Vaticano, viu-se envolvida num discutida polêmica. O descompasso deu-se por um pronunciamento que se pôs a celebrizar aquelas vozes que, repetidas vezes, anunciavam o “óbito” infundado da teologia da libertação; um bordão ao qual G. Gutiérrez, com bom humor, respondia: “Morreu a TdL? Não me convidaram para o enterro”. Inclusive, naquele mesmo ano, em fevereiro, Gutiérrez, havia sido convocado a participar, no Vaticano, do lançamento do livro Pobre para os pobres: a missão da Igreja (2014), que escreveu com o Cardeal Müller e foi prefaciado pelo próprio Papa Francisco.
Na sequência de sua preleção, D. Jaime, na mesma linha de resgatar a memória eclesial, observou “que a história da Igreja no Brasil, nos últimos quarenta anos, precisaria ser escrita”. E dando algumas razões, explicou os motivos: “porque tudo aquilo que nós vivemos nos anos 80 e 90, que de alguma forma foi escanteado, não colocamos nada no lugar — e as consequências nós estamos sentido hoje em diferentes ambientes. Eu creio que precisaríamos de determinação e coragem para uma leitura crítica da história da Igreja no Brasil”. As palavras conclusivas de D. Jaime foram estas... “creio que precisaria ser retomado um pouco esse discurso [...], afim de que, realmente, o trabalho da evangelização possa avançar com dinamismo, com vigor, com a paixão que o Evangelho requer”.
Obviamente não cabe aqui fazer uma análise desse período de várias décadas, a fim de dar andamento às pertinentes orientações do presidente da CNBB, contudo, vale lembrar que em 1978 foi a eleição do Papa João Paulo II. No Brasil, a década de 1980 foi marcada pelo fim do regime militar (1985) e o início da redemocratização do país, acompanhada por intensas mobilizações sociais e políticas. A participação e a contribuição profética da Igreja no Brasil e da CNBB naquele momento da história nacional continua sendo objeto de muitos estudos, pesquisas acadêmicas e, de modo geral, conta com grande reconhecimento na sociedade civil.
Temos aí um período em que a Igreja católica se destacou por ao menos três razões: “(a) forte presença das classes populares e pobres, não como simples objeto de uma evangelização e pastoral paternalista, mas como sujeitos ativos e participativos na vida eclesial, organizados em comunidades eclesiais; experiência da perseguição; (b) por causa da luta pela justiça dentro de um país declaradamente católico; (c) episcopado maduro, com mais de trezentos bispos, reunidos numa conferência de longa tradição, acostumado a superar suas dificuldades através do diálogo” (cf. Dionísio Ailton Pereira, A fé em ação, PUC-Rio, 2010).
Como se pode notar, o Cardeal Spengler colocou, de início, uma medida bastante alta tendo em vista acompanhar os objetivos do Congresso Internacional da PUCRS em refletir Teologia e Evangelização: atenção aos sinais dos tempos. Vale lembrar que não foi uma conferência, mas apenas palavras iniciais e de acolhida que, por sua lucidez e contundência, merecem ser repercutidas e devidamente aprofundadas.
Tínhamos a intenção de ser breve nessa apresentação, mas a boa intenção foi vencida pela versatilidade provocativa do interlocutor. As oportuníssimas reflexões de D. Jaime tornaram-se uma sementeira fecunda para todos nós, pesquisadores engajados na evangelização e interessados em dar voz a uma Igreja inculturada e intercultural na América Latina e Caribe, “uma Igreja pobre e para os pobres”.