12 Agosto 2025
A fome existe em um espectro. Em um dos extremos está a insegurança alimentar, quando as pessoas são forçadas a se adaptar a menos refeições. À medida que o alimento se torna escasso, o corpo começa a consumir suas próprias reservas. A jornada da fome à inanição começa com a queda nos níveis de energia; em seguida, o corpo quebra gordura e, depois, músculos. Eventualmente, órgãos vitais começam a falhar.
A entrevista é publicada por The Conversation, 07-08-2025.
Da subnutrição à desnutrição aguda e, por fim, à inanição, o processo atinge um ponto em que o corpo já não consegue sustentar a vida. Hoje, em Gaza, milhares de crianças com menos de cinco anos e mulheres grávidas ou lactantes estão sofrendo de desnutrição aguda. No Sudão, o conflito e o acesso humanitário restrito levaram milhões à beira da inanição, com alertas de fome cada vez mais urgentes a cada dia.
Pedimos às nutricionistas Ola Anabtawi e Berta Valente que explicassem a ciência por trás da inanição e o que acontece com o corpo quando ele é privado de alimento.
Qual é o mínimo de nutrição que o corpo precisa para sobreviver?
Para sobreviver, as pessoas precisam de mais do que água potável e segurança. O acesso a alimentos que atendam às necessidades diárias de energia, macronutrientes e micronutrientes é essencial para preservar a saúde, apoiar a recuperação e prevenir a desnutrição.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), adultos necessitam de quantidades diferentes de energia dependendo da idade, sexo e nível de atividade física. Uma quilocaloria (kcal) é uma medida de energia. Na nutrição, indica quanta energia uma pessoa obtém dos alimentos ou quanto o corpo precisa para funcionar. Tecnicamente, uma quilocaloria é a quantidade de energia necessária para elevar a temperatura de um quilograma de água em um grau Celsius. O corpo usa essa energia para respirar, digerir alimentos, manter a temperatura corporal e – especialmente em crianças – para crescer.
As necessidades energéticas totais vêm de três fontes:
O gasto energético em repouso geralmente representa a maior parte das necessidades energéticas, especialmente quando a atividade física é limitada. Outros fatores, incluindo idade, sexo, tamanho corporal, estado de saúde, gravidez ou exposição ao frio, também influenciam a quantidade de energia necessária para cada pessoa.
As necessidades energéticas variam ao longo da vida. Bebês precisam de aproximadamente 95 kcal a 108 kcal por quilo de peso corporal por dia nos primeiros seis meses e entre 84 kcal e 98 kcal por quilo dos seis aos 12 meses. Para crianças com menos de dez anos, as necessidades energéticas se baseiam em padrões normais de crescimento, sem distinção entre meninos e meninas.
Por exemplo, uma criança de dois anos normalmente precisa de cerca de 1.000 a 1.200 kcal por dia. Uma criança de cinco anos necessita de cerca de 1.300 a 1.500 kcal, e uma de dez anos geralmente requer entre 1.800 e 2.000 kcal por dia. A partir dos dez anos, as necessidades energéticas começam a diferir entre meninos e meninas devido a variações no crescimento e na atividade física, e as recomendações passam a ser ajustadas com base no peso corporal, nível de atividade e ritmo de crescimento.
Para adultos com atividade física leve a moderada, a necessidade média diária de energia para homens de 19 a 50 anos é de cerca de 2.900 kcal, enquanto mulheres na mesma faixa etária necessitam de aproximadamente 2.200 kcal por dia. Esses valores incluem uma margem de mais ou menos 20% para compensar diferenças individuais no metabolismo e na atividade física. Para adultos acima dos 50 anos, as necessidades energéticas diminuem levemente, sendo cerca de 2.300 kcal para homens e 1.900 kcal para mulheres.
Em emergências humanitárias, a assistência alimentar deve garantir a ingestão mínima de energia amplamente aceita para manter a saúde e a função básicas, fixada em 2.100 kcal por pessoa por dia. Esse nível visa atender às necessidades fisiológicas fundamentais e prevenir a desnutrição quando o fornecimento de alimentos é limitado.
Essa energia deve vir de um equilíbrio de macronutrientes: carboidratos fornecendo 50% a 60% (como arroz ou pão), proteínas 10% a 35% (como feijão ou carne magra) e gorduras 20% a 35% (como óleo de cozinha ou castanhas).
As necessidades de gordura são maiores para crianças pequenas (30% a 40%), assim como para mulheres grávidas e lactantes (no mínimo 20%).
Além de energia, o corpo precisa de vitaminas e minerais, como ferro, vitamina A, iodo e zinco, essenciais para a função imunológica, o crescimento e o desenvolvimento cerebral. O ferro é encontrado em alimentos como carne vermelha, feijão e cereais fortificados. A vitamina A vem de cenouras, batata-doce e folhas verdes escuras. O iodo é comumente obtido do sal iodado e frutos do mar. O zinco está presente na carne, em nozes e grãos integrais.
Quando os sistemas alimentares colapsam, esse equilíbrio se perde.
O que acontece fisicamente quando o corpo é privado de alimento?
Fisiologicamente, os efeitos da inanição no corpo humano se desenrolam em três estágios sobrepostos. Cada um reflete a tentativa do corpo de sobreviver sem comida, mas essas adaptações têm um custo fisiológico elevado.
Primeira fase: dura até 48 horas após a interrupção da ingestão de alimentos. O corpo recorre ao glicogênio armazenado no fígado para manter estáveis os níveis de açúcar no sangue.
Esse processo, chamado glicogenólise, é uma solução de curto prazo. Quando o glicogênio se esgota, inicia-se a segunda fase.
O corpo passa à gliconeogênese, produzindo glicose a partir de fontes não carboidráticas, como aminoácidos (dos músculos), glicerol (da gordura) e lactato. Esse processo abastece órgãos vitais, mas leva à degradação muscular e ao aumento da perda de nitrogênio, especialmente dos músculos esqueléticos.
A partir do terceiro dia, a cetogênese se torna o processo dominante. O fígado começa a converter ácidos graxos em corpos cetônicos – moléculas derivadas da gordura que servem como fonte alternativa de energia quando a glicose está escassa. Esses corpos cetônicos são usados pelo cérebro e outros órgãos para gerar energia. Essa mudança ajuda a poupar tecido muscular, mas também indica uma crise metabólica mais profunda.
Alterações hormonais – incluindo a redução da insulina, do hormônio da tireoide (T3) e da atividade do sistema nervoso – desaceleram o metabolismo para conservar energia. Com o tempo, a gordura se torna a principal fonte de energia. Mas, quando as reservas de gordura se esgotam, o corpo é forçado a degradar suas próprias proteínas para gerar energia, o que acelera a perda muscular, enfraquece o sistema imunológico e aumenta o risco de infecções fatais.
A morte, muitas vezes causada por pneumonia ou outras complicações, geralmente ocorre após 60 a 70 dias sem alimento em um adulto saudável.
Durante a privação prolongada de nutrientes, os sinais visíveis e invisíveis da inanição se intensificam. Fisicamente, há perda substancial de peso, atrofia muscular, fadiga, desaceleração dos batimentos cardíacos, pele seca, queda de cabelo e dificuldade de cicatrização. As defesas imunológicas enfraquecem, aumentando a vulnerabilidade a infecções, especialmente pneumonia – uma das principais causas de morte por fome.
Psicologicamente, a inanição provoca grande sofrimento. Relatos apontam apatia, irritabilidade, ansiedade e preocupação constante com comida. As habilidades cognitivas diminuem e o controle emocional se deteriora, podendo levar à depressão ou isolamento.
Em crianças, os efeitos a longo prazo incluem atraso no crescimento e prejuízo no desenvolvimento cerebral, ambos potencialmente irreversíveis.
Durante a inanição, o corpo se adapta em etapas para sobreviver: inicialmente, usa o glicogênio; depois, quebra a gordura; e, por fim, o tecido muscular. Essa mudança gradual explica tanto a fraqueza física quanto as alterações psicológicas, como irritabilidade ou depressão.
Mas a fome não para no indivíduo – ela destrói famílias e comunidades. À medida que a energia diminui, as pessoas não conseguem cuidar de si mesmas nem dos outros. Em crises humanitárias como em Gaza e no Sudão, a fome agrava o trauma da violência e do deslocamento, levando ao colapso total da resiliência social e biológica.
Quais são os passos para quebrar o ciclo?
Após um período de inanição, o corpo está em um estado metabólico frágil. A reintrodução súbita de alimentos, especialmente carboidratos, provoca um pico de insulina e uma rápida transferência de eletrólitos como fosfato, potássio e magnésio para dentro das células. Isso pode sobrecarregar o organismo, levando ao que se conhece como síndrome da realimentação, que pode resultar em complicações graves como insuficiência cardíaca, dificuldade respiratória ou até morte, se não for cuidadosamente controlada.
Os protocolos padrão começam com leites terapêuticos chamados F-75, especialmente formulados para estabilizar pacientes na fase inicial do tratamento da desnutrição aguda grave, seguidos por alimentos terapêuticos prontos para uso – uma pasta ou biscoito à base de amendoim capaz de levar uma criança desnutrida da beira da morte à recuperação nutricional completa em apenas quatro a oito semanas –, sais de reidratação oral e pós de micronutrientes.
Esses recursos precisam ser entregues de forma segura. O acesso humanitário consistente é essencial.
Lançamentos aéreos não garantem segurança alimentar. Sobreviver requer esforços sustentados e coordenados que restaurem os sistemas alimentares, protejam civis e respeitem o direito humanitário. Qualquer coisa menos que isso arrisca repetir ciclos de fome e sofrimento.
Quando a assistência alimentar falha em qualidade ou quantidade, ou quando não há acesso a água potável, a desnutrição piora rapidamente.