“É típico da extrema-direita criar um inimigo comum, o qual estaria destruindo a nossa cultura, as nossas bases tradicionais. No caso das femonacionalistas isso ocorre por meio dos migrantes. No caso da extrema-direita brasileira, é sobretudo por meio da ideia falsa da ‘ideologia de gênero’”, compara a socióloga
Se empoderamento feminino já foi sinônimo de mais participação das mulheres nas diversas instâncias da vida social, hoje o termo não só é ambíguo como também promove discursos favorecedores de posições extremadas e que contribuem para a precarização da vida das mulheres. Um exemplo disso, diz a socióloga Lilian Sendretti, pode ser observado nos slogans que giram em torno da expressão. “Aqueles slogans do feminismo pop ou do pink money – ‘o lugar da mulher é onde ela quiser’ (…) – são vendidos nas redes sociais como um estilo de vida hiperprodutivo, mas o foco de fundo é sempre individualista. É um discurso de empoderamento que está completamente desconectado com os problemas estruturais e estruturantes da sociedade”, afirma em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Para a pesquisadora, problemas sociais, como a divisão do trabalho doméstico desigual, foram capturados pelo feminismo neoliberal, que sempre oferece “uma resposta individual para um problema que é estrutural. É aí que está o problema porque isso permitiu uma nova atuação de extrema-direita ao deslocar o problema da dimensão sociológica e estruturante”.
Na entrevista, Lilian Sendretti analisa também os discursos das mulheres que atuam nos setoriais de partidos políticos de direita e extrema-direita brasileiros. Neles, a imagem da mulher é apresentada a partir de um mix entre a mulher empreendedora e aquela que atua em defesa dos valores familiares. “Nos partidos de direita, há uma visão mais naturalizadora e ideologizante e, de certo modo, se reproduzem estereótipos, mas não necessariamente existe uma postura tão alarmista no sentido de apontar bodes expiatórios como inimigos comuns: o comunismo, a esquerda, as feministas, a ‘ideologia de gênero’. A agenda de criar bodes expiatórios é mais ligada à extrema-direita”, esclarece.
Lilian Sendretti (Foto: Arquivo pessoal)
Lilian Sendretti é graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisadora do Núcleo de Instituições Políticas e Movimentos Sociais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). É editora da Revista Leviathan – Cadernos de Estudos Políticos, da USP.
IHU – Quem são, como atuam e o que propõem as principais lideranças feministas conservadoras e femonacionalistas?
Lilian Sendretti – É importante fazer uma diferenciação entre feministas conservadoras e femonacionalistas porque as femonacionalistas, de certo modo, são feministas conservadoras, mas nem toda feminista conservadora é uma femonacionalista.
As femonacionalistas são mulheres que associam um discurso feminista – sobretudo das primeira e segunda ondas do feminismo, ou seja, direitos econômicos e políticos – ao ultranacionalismo. É um fenômeno basicamente do Norte Global porque tem a ver com uma postura da extrema-direita em relação às políticas migratórias e imigratórias na Europa, especialmente em relação às populações islâmicas.
Para o femonacionalismo, os direitos das mulheres são uma criação do Ocidente e, à medida que os países Europeus permitem a entrada de migrantes, eles estariam colocando os direitos das mulheres em perigo porque a cultura islâmica seria mais excludente em relação aos direitos das mulheres. É claro que o femonacionalismo é essencialmente xenofóbico. É uma postura de direita xenofóbica que se apropria de um discurso das mulheres para justificar seus preconceitos. Não temos femonacionalistas no Brasil.
As feministas conservadoras são aquelas que aceitam as pautas das primeira e segunda ondas do feminismo, em outras palavras, os direitos econômicos e políticos das mulheres. Porém, elas necessariamente são contra pautas mais recentes do feminismo, como as pautas e agendas que incorporam uma linguagem mais diversa em relação ao gênero e que incorporam questões da agenda de gênero dentro da agenda feminista.
Do ponto de vista político, enquanto lideranças de grupos específicos, a figura mais conhecida é Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália. Ela é uma femonacionalista que, de certo modo, também é uma feminista conservadora. A questão do aborto, que para as feministas conservadoras brasileiras é muito sensível, para Meloni é um ponto mais relativizado, embora ela seja uma representante da extrema-direita italiana.
IHU – O que significa dizer que uma mulher é de direita ou extrema-direita hoje no Brasil? É possível identificar pautas, valores, ideias e visões de mundo comuns entre elas? Se sim, em que consistem? Se não, quais são as divergências que identifica?
Lilian Sendretti – Uma diferença geral da direita para a extrema-direita é que a extrema-direita tem mais permeabilidade nos discursos de ódio e teorias da conspiração. Tanto em nível nacional quanto internacional, há muitas teorias da conspiração circulando. Por exemplo, uma grande teoria da conspiração da extrema-direita internacional, que serve muito às femonacionalistas, é a teoria do great replacement, a grande substituição. É a ideia de que, ao longo do tempo, por conta do fluxo migratório de populações não brancas e não cristãs para países europeus, aconteceu uma substituição da população local por culturas e etnicidades dessas populações.
A teoria da substituição é uma teoria da conspiração baseada em dados falsos e interpretações distorcidas de crescimento e projeção de crescimento populacional, para dizer que precisamos proteger a nossa cultura para ela não desaparecer. É o discurso do femonacionalismo. É claro que isso tem a ver com a ideia-força que se considera que o feminismo é um produto do Ocidente.
As teorias nacionais da conspiração, que possuem um lastro internacional da extrema-direita, têm a ver sobretudo com interpretações exageradas e falsas do que chamam de “ideologia de gênero”. Nas eleições de 2018, teve a grande conspiração em torno da “mamadeira de piroca” e as falas de que se ensinaria a ser homossexual nas escolas por conta da “ideologia de gênero”. Essas retóricas extremadas e falsas criam um bode expiatório, um inimigo. É típico da extrema-direita criar um inimigo comum, o qual estaria destruindo a nossa cultura, as nossas bases tradicionais. No caso das femonacionalistas, isto ocorre por meio dos migrantes. No caso da extrema-direita brasileira, é sobretudo por meio da ideia falsa da “ideologia de gênero”.
Isso mostra também uma diferenciação entre a direita e a extrema-direita. Embora a direita também seja conservadora, ela não necessariamente é antidemocrática e antipluralista, como mostra uma pesquisa que fiz com um setorial de mulheres de partidos de direita, de centro-direita e de extrema-direita no Brasil.
No setorial de mulheres dos partidos de direita, como o PP ou o Republicanos, quando olhamos o que está circulando nos discursos e cards nas redes sociais sobre o que significa representar as mulheres, vemos uma ideia de liderança feminina, empoderamento, pautas contra a violência contra as mulheres. Essa pauta da violência é transversal e está unindo a esquerda e a direita. O que muda é o tom: a direita dá um tom e uma resposta mais políticos para iniciativas de punição a agressores, enquanto a centro-esquerda foca mais em políticas de prevenção de violência contra a mulher.
O que circula nesse setorial de mulheres da direita é uma linguagem que mistura empoderamento individual, a imagem da mulher como empreendedora, e, por outro lado, sobretudo no Republicanos, circula uma defesa dos valores familiares a partir de uma ideia de naturalização da feminilidade, do cuidado, da sensibilidade. Segundo esse discurso, a mulher vai cuidar da política porque tem um olhar diferente, vai ser mais consensualista. Nos partidos de direita, há uma visão mais naturalizadora e ideologizante e, de certo modo, se reproduzem estereótipos, mas não necessariamente existe uma postura tão alarmista no sentido de apontar bodes expiatórios como inimigos comuns: o comunismo, a esquerda, as feministas, a “ideologia de gênero”. A agenda de criar bodes expiatórios é mais ligada à extrema-direita. Ainda fazendo uma diferenciação com a direita, o discurso do empoderamento circula bastante entre as mulheres de direita, mas é um empoderamento olhado pela chave do indivíduo.
IHU – Por que as mulheres são atraídas por pautas conservadoras? Que tipo de pautas têm mais apelo entre elas?
Lilian Sendretti – Temos que fazer uma diferenciação entre ser atraída para pautas conservadoras e ser atraída para pautas de extrema-direita, porque uma pauta conservadora não necessariamente é uma pauta de extrema-direita. Vou explicar o que as pesquisas mostram sobre o processo de recrutamento e adesão de mulheres para a agenda da extrema-direita.
Algumas pesquisadoras têm feito etnografias digitais com influenciadoras nas redes sociais, sobretudo com aquelas atuantes no Instagram, que é uma mídia muito consumida como estilo de vida, mas também no YouTube. As pesquisas destacam que o papel das influenciadoras na radicalização de mulheres comuns é importante porque elas misturam o conteúdo de um estilo de vida com assuntos políticos que têm pinceladas de radicalização. São mulheres empoderadas, que tratam de conteúdos típicos das redes sociais. Elas aparecem passando maquiagem e comentando um assunto, cozinhando ou limpando a casa e falando de um tema. Então, no meio de um vídeo sobre maquiagem, a influenciadora fala sobre o absurdo de nas escolas ter banheiros agêneros e começam a criar alarmismo em relação a isso. De certo modo, elas são o meio de informação de suas seguidoras, mas são meios de influência também. Então, o papel das influenciadoras no fato de as mulheres serem atraídos para pautas mais radicais é importante.
IHU – Qual é o perfil das mulheres que se identificam com as pautas da direita e da extrema-direita? Que fatores influenciam essa identificação política?
Lilian Sendretti – A pesquisa que fiz em parceria com o Instituto Update com eleitoras brasileiras notou que as mulheres de 40 anos para cima, não só evangélicas, mas que têm religião e são praticantes da sua religião, tendem a se identificar como mais conservadoras. No entanto, importa ressaltar que mesmo as mulheres que se identificaram nessa pesquisa como sendo de esquerda, na pergunta sobre “o quanto você se considera conservadora nos costumes”, elas responderam “um pouco” ou “muito”.
Então, existem mulheres de esquerda que são conservadoras nos costumes. Tem uma questão sociológica e geracional de fundo que explica isso: as pautas do feminismo das primeira e segunda ondas já foram muito normalizadas na sociedade. As mulheres terem direito a voto e direitos econômicos não são questões questionadas nem pela extrema-direita. Assim, ser conservadora ou antifeminista não é ser contra o direito a voto ou ser contra a mulher poder trabalhar fora ou o direito de ter conta bancário. Ser conservadora ou antifeminista vai em outro sentido; tem a ver com a agenda antigênero, que se formou como um confronto às pautas mais recentes dos movimentos feministas, que colocam no centro do debate tanto os direitos reprodutivos das mulheres quanto a dimensão da generificação da divisão sexual do trabalho, já que o amor é um trabalho não pago e cuidar da casa é um trabalho não pago.
Hoje, as tradwifes estão romantizando aquele período em que as mulheres só ficavam em casa, porque agora nós trabalhamos e também cuidamos da casa. Então, tem uma certa fadiga da emancipação. Que emancipação foi essa, que fez com que as mulheres pudessem trabalhar fora de casa, mas a jornada feminina ficou dupla? No discurso conservador, tem um retorno a esses papéis de cuidado, de que a mulher deve ser cuidadora, e da valorização disso como virtude.
Mas as mulheres de esquerda mais velhas também são conservadoras nos costumes. Elas têm dificuldades de entender as questões típicas de hoje, como, por exemplo, qual é o pronome da pessoa. Isso não faz parte do imaginário dessas mulheres comuns porque, se pensarmos em termos sociológicos históricos, as mulheres no Brasil só puderam ter conta em banco a partir dos anos 1970. O divórcio é uma lei de 1977. São mudanças recentes.
Cobrar dessas mulheres um entendimento sobre pautas mais atuais do feminismo, que para elas são entendidas como muito radicais, e colocá-las como inimigas dessas pautas, é deixá-las mais suscetíveis aos discursos da extrema-direita. Não é porque elas não sabem qual pronome vão usar para falar sobre uma mulher trans, que elas necessariamente são preconceituosas. Tem uma questão de letramento aí que deve ser tomada com muito cuidado.
IHU – Como o feminismo é captado como estratégia política nos partidos de direita e extrema-direita?
Lilian Sendretti – No Brasil, as palavras feminista e feminismo, para a direita e a extrema-direita, diferentemente do que acontece no Norte Global, com as femonacionalistas, ainda são conceitos gatilhos porque há duas estratégias. Por um lado, a estratégia de não falar sobre feminismo e gênero e simplesmente usar outras palavras, como empoderamento, direitos da mulher no singular (como uma essencialização), não falar sobre gênero, que é uma estratégia de se colocar como defensora do direito da mulher, essencializando o que é ser mulher, ou seja, a dona de casa, a esposa, a mãe, ou a mulher que é tudo isso e ainda vai para a política ou trabalha fora, essecializando-a também com o elemento biológico.
A outra estratégia é a criação do bode expiatório: dizer que é por culpa do feminismo que o mundo está caótico, que é por culpa do feminismo que as mulheres não são valorizadas, que é por culpa do feminismo que a família está desestruturada, porque o feminismo, com as suas políticas emancipatórias, desestruturou a família tradicional que era o pilar de estabilidade da sociedade. São duas estratégias diferentes e vejo ambas sendo aplicadas em setoriais de mulheres de diferentes partidos, da direita à extrema-direita. Os partidos da centro-direita aplicam mais esse discurso e quando mais à direita, mistura-se uma retórica antifeminista com uma retórica essencializadora do que é ser mulher, sem criar um bode expiatório. Quando vai para a extrema-direita, vemos uma guerra cultural. Não gosto muito desse termo, mas agora ele simplifica a explicação.
Atualmente, vemos que existem lideranças e partidos de direita e extrema-direita com retóricas antifeministas e antiprogressistas. Essas lideranças se utilizam das conquistas feministas para se colocarem contra esse mesmo feminismo. Isso parece contraditório quando pensamos que a luta pelo direito ao voto, mas também pelo direito a se candidatar e a ser uma cidadã, a ser uma representante política, foi uma luta clássica do feminismo. Foi essa luta por emancipação que colocou as mulheres no espaço público e as tiraram do espaço privado e do lar, da dimensão de invisibilidade cidadã.
Desde a redemocratização e também por conta da luta de mulheres, foram implementados vários dispositivos institucionais, alguns com mais força, outros com menos força, como a Lei de Cotas, a lei de destinação dos recursos das candidaturas para incentivar a presença de mulheres na política. Mas quando olhamos para quais são os temas dos setoriais de mulheres da direita à esquerda, vemos duas pautas presentes em todas, mesmo que existam divergências: mais mulheres na política e contra a violência contra a mulher.
É importante acrescentar que, dado que a regra do jogo mudou, a direita e a extrema-direita foram muito perspicazes em entender que não dá para deixar as mulheres fora da política e fora do jogo eleitoral porque elas, no Brasil, são a maior parte do eleitorado e definem eleições. Então, existe uma estratégia dupla de suavizar o discurso da extrema-direita. Nesse sentido, fica mais palatável e é melhor recebido quando é Michelle Bolsonaro quem fala em defesa da família, mesmo falando frases preconceituosas, do que quando é o próprio Bolsonaro.
Isso blinda a extrema-direita no sentido de poder dizer que um político de esquerda, que se diz pró-direito das mulheres, está gritando com uma mulher de direita ou a criticando. Tem também a estratégia de validação porque é uma mulher falando contra o feminismo ou contra determinadas políticas. Então, do ponto de vista político, é muito útil e perspicaz ter mulheres conservadoras de direita ou extrema-direita disputando o que é representar o direito das mulheres.
IHU – A hipótese da sua pesquisa é que um novo tipo de atuação feminina de extrema-direita foi gestada pelo feminismo neoliberal e pelo feminismo popular. Pode explicar essa ideia? Que visão de feminismo as mulheres entrevistadas manifestaram?
Lilian Sendretti – Para pensar isso, precisamos pensar a ideia de empoderamento feminino. Aqueles slogans do feminismo pop ou do pink money – “o lugar da mulher é onde ela quiser”, “ela é dona da sua história”, “protagonismo feminino”, “liderança feminina”, “empoderamento”, que querem colocar a imagem do empoderamento da mulher, aquela mulher que está arrumada para ir ao trabalho, mas come saudável e vai para a academia – são vendidos nas redes sociais como um estilo de vida hiperprodutivo, mas o foco de fundo é sempre individualista. É um discurso de empoderamento que está completamente desconectado com os problemas estruturais e estruturantes da sociedade.
A divisão do trabalho doméstico desigual é tratada pelo feminismo do empoderamento por meio de um produto para a mulher relaxar. Diz-se para a mulher comprar um produto para ela poder dormir melhor ou uma influenciadora vai falar sobre técnicas de skincare ou mindfulness. É sempre uma resposta individual para um problema que é estrutural. É aí onde reside o problema porque isso permitiu uma nova atuação de extrema-direita, ao deslocar o problema da dimensão sociológica e estruturante.
Lembro de quando estava fazendo uma pesquisa, olhando para as mulheres evangélicas e para o discurso do empoderamento. Assisti a vídeos das mulheres empoderadas da Convenção das Mulheres Empoderadas em Deus, evento da Igreja Assembleia de Deus. É um grupo de mulheres que se reúne para falar sobre questões de mulheres. Homens não são permitidos nesses encontros. No encontro, a pastora dava recados sobre como as mulheres serão vencedoras, prósperas, como Jesus as ajudaria se fossem virtuosas. É um discurso do “você consegue, tenha fé”, ou seja, é um discurso individual. Não é um discurso a respeito de discutir com o marido sobre o quanto ele também pode cuidar das crianças ou da casa.
Lembro da pastora falando algo interessante: as mulheres têm uma certa infantilização dos homens, de que eles precisam ser cuidados, de que eles não conseguem fazer as coisas sozinhos. A mulher empoderada é aquela que está no telefone resolvendo uma coisa do trabalho e, ao mesmo tempo, está empurrando o carrinho da criança. O esmalte está parado porque ela precisou parar de fazer a unha para atender o telefone, e aí o marido chega e pergunta onde está o tênis e ela lembra e diz. Ou seja, é a mulher que consegue dar conta de tudo. É um pouco essa a ideia de empoderamento que se vende à custa da saúde mental e, por isso, neoliberal, porque o elemento da responsabilidade do indivíduo é basicamente a ideia-força desse discurso, enquanto a dimensão da estrutura social não é questionada.