31 Julho 2025
"Para os tempos sombrios de agora que outrora denunciou Hannah Arendt, Inácio segue sendo atual e pertinente com suas três intuições daqueles anos em Barcelona: a importância de apostar na lucidez intelectual, o caminho oferecido pela espiritualidade encarnada dos Exercícios e a imprescindibilidade do apoio da comunidade feita carne nas amigas e amigos no Senhor. Aos fascismos e extremismos de cada dia, misturados com a desinformação e os discursos de ódio e arraigados em um hiperindividualismo dos algoritmos resta ao discípulo e discípula de Jesus a profundidade intelectual e espiritual partilhada com as amizades peregrinas do caminho".
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Nosso compromisso com a evangelização integral deve também caracterizar-se por uma séria e ativa investigação intelectual, o que supõe um conhecimento básico das estruturas econômicas, sociais e políticas em que se acham imersos nossos contemporâneos”, asseverou a Congregação Geral 34 (1995) – órgão máximo deliberativo da Companhia de Jesus. Ou seja, “para que a evangelização seja eficaz, são imprescindíveis rigor no conhecimento, respeito aos demais no diálogo intercultural e análise crítica” (CG 34, Dec. 16, nº 3). Além, obviamente, das legítimas autonomia e liberdade necessárias para tanto. Inácio de Loyola também entendeu que precisava se preparar intelectualmente para poder melhor “ajudar as almas”, não sem antes percorrer um longo caminho.
“Depois que o peregrino entendeu ser vontade de Deus não continuar em Jerusalém, veio sempre pensando consigo que faria. Por fim se inclinava mais a estudar algum tempo para ajudar as almas, e determinava ir a Barcelona” (Aut. 50). E ali, há exatos 500 anos (1525), se encontrava o futuro fundador da Ordem dos Jesuítas. Mesmo diante da proposta de sua amiga e benfeitora Isabel Roser de lhe custear os estudos, bem como da oferta de Jerônimo Ardévol para lhe ensinar de graça gramática latina, Inácio ainda não estava convencido.
Desejava retornar a Manresa e reencontrar um monge cisterciense, provavelmente interessado em seu sábio acompanhamento nos assuntos espirituais. Acontece que o religioso falecera e, assim, em face de mais um “redefinir de rota”, o Peregrino abriu-se ao inesperado e deu um passo atrás. “Voltando para Barcelona aceitou os generosos oferecimentos de seus amigos”, sendo que “Inês Pascual hospedava-o, Isabel Roser encarregava-se das despesas e Jerônimo Ardévol ensinava-o” (Dalmases, 1984, p. 79).
Essa rede de apoios será fundamental no árduo itinerário formativo que se iniciava. Inácio foi tomando consciência de que Deus é privilegiadamente experimentado na comunidade de amigos e amigas de caminhada. Foi nessa época que se juntaram a ele alguns companheiros que posteriormente tomariam outros rumos, Calixto de Sá, Lopes de Cáceres e João de Arteaga. Vale frisar que era evidente a importância que Inês e Isabel, a exemplo da outras mulheres, terão no apoio e na estruturação de sua vida-missão. Nesse sentido escreveu a respeito:
“Isabel Roser escreveu-me que em abril próximo me enviará provisões para terminar os meus estudos [...], incluindo alguns livros e outras coisas necessárias. Entretanto, embora a terra seja cara e a situação, por enquanto, não me permita sofrer pobreza ou trabalho físico além do que implica estudar, estou suficientemente provido. Porque Isabel Roser me fez dar aqui, à sua custa, doze escudos, além das outras graças e esmolas que de lá me enviou, por amor e serviço a Deus, Santidade, a quem espero que retribua em boa moeda, não só pelo que faz por mim, mas também pelo grande cuidado que tem com as minhas aflições. Não creio que os pais possam ter maior cuidado com os seus filhos naturais” (Veneza, 12/02/1536, Epp I, 93-99; Obras de san Ignacio, 658-661).
Assim, aos 33 anos de idade – considerado velho para a época – Inácio retoma os estudos. Em tempos de anti-intelectualismo e negacionismo científico, em que o extremismo político volta a atacar o pensamento crítico como se constata nas perseguições às universidades estadunidenses pela administração Trump, a decisão do Peregrino não deixa de ser simbólica. Alguns séculos depois e enfrentando as tensões da cúria romana com o generalato de Pedro Arrupe, os jesuítas reafirmaram: “a reflexão teológica, a análise social e o discernimento são fases de um processo que o Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II chamaram de ‘leitura dos sinais dos tempos’” (CG 34, Dec. 16, nº 7).
Acontece que Santo Inácio na intensidade do seu apostolado foi acometido por distrações, que tinham a aparência de bem. Graças ao seu cuidadoso discernimento espiritual percebeu se tratarem de tentações para lhe desviarem do seu propósito original, que era se dedicar à formação fundamental para seguir na sua missão. Vale destacar que o Peregrino compreendeu que não havia espaço para se ocupar de sucessivas iluminações espirituais em detrimento de seus exigentes estudos.
Pode-se dizer que aplicou concretamente as 4ª e 5ª regras de discernimento da Segunda Semana (EE 332 e 333), constatando que apesar do início ser bom (entendimentos espirituais), o mesmo não se podia dizer do fim, uma vez que lhe afastava da necessária preparação intelectual. Nessa esteira esclarece a Autobiografia:
“Voltando a Barcelona, começou a estudar com muita diligência. Mas encontrou um grave impedimento: quando começava a decorar, como é necessário nos princípios da gramática, ocorriam-lhe novas inteligências de assuntos espirituais e novos gostos, e tão intensos que não podia decorar e nem conseguia repeli-los, por quanto se esforçasse” (Aut. 54, p. 64).
Se o foco eram os estudos, refugiar-se na espiritualidade soava alienante e enganador. Inácio nunca deixou de valorizar a oração e um imprescindível serviço pastoral junto aos demais, sem, contudo, jamais resvalar em uma mística desencarnada ou descomprometida com a realidade, especialmente dos empobrecidos. Como reconheceram seus herdeiros espirituais, “a reflexão teológica será tanto mais fecunda quanto mais se enraíze numa fé pessoal, vivida e expressa na comunidade cristã”. Isso significa que “deve estar atenta às questões que a realidade apresenta aos fiéis” (CG 34, Dec. 16, nº 9). Uma Teologia que seja, pois, ousadamente contextual e crítica.
Nesses anos, o Peregrino despertou sua sensibilidade ao atendimento da vida religiosa feminina. Se é verdade que posteriormente rejeitará assumir conventos sob responsabilidade da Companhia, em razão de pôr em risco a disponibilidade apostólica dos jesuítas, ele se preocupava com os clamores de ajuda que chegavam das religiosas. Será dessa época outra amizade que cultivará ao longo da vida por meio de uma constante troca de correspondência, a monja beneditina Teresa Rajadell.
Além disso, como aponta Cândido de Dalmases (1984, p. 82), “parece que em Barcelona deu Inácio, pela primeira vez, os Exercícios, e, provavelmente assim atraiu aqueles que poderemos classificar de seus três primeiros companheiros”. Para o Peregrino o fecundo ministério dos Exercícios Espirituais será aquilo que de melhor deixará à Igreja. Também o Papa Francisco, no seu discurso à 36ª Congregação Geral (2016, p. 97), citando Michel De Certeau disse: “os Exercícios são ‘o método apostólico por excelência’, já que possibilitam o ‘retorno ao coração, princípio de uma docilidade ao Espírito, que desperta e impele o exercitante a uma fidelidade pessoal a Deus’”. Assim confessou Inácio em uma de suas cartas:
“Porque é justo corresponder a tanto amor e vontade como sempre tiveste por mim e demonstraste em obras, e como eu hoje nesta vida não sei de que maneira alguma centelha poderá satisfazer-te, eu te colocaria por um mês em exercícios espirituais [...]. Duas, três vezes e tantas outras vezes quanto eu puder, peço-te com todas as minhas forças para o serviço de Deus N. S., porque [os Exercícios] são tudo de melhor que eu nesta vida posso pensar, sentir e compreender, tanto para que o homem possa beneficiar-se a si mesmo como para poder dar fruto, ajudar e beneficiar a muitos outros. Mesmo que não sintas necessidade do primeiro, verás sem proporção e estimarás o quanto te beneficiará o segundo” (Veneza, 16/11/1536, Epp I, 111-113; Obras de san Ignacio, 668-669).
Portanto, continuar nas pegadas de Inácio significa permanecer com fidelidade na trilha começada há 500 anos, tanto com o exercício corajoso e livre do senso crítico, por meio de uma afiada formação intelectual e do ministério instruído, quanto com o aprofundamento do apostolado dos Exercícios Espirituais, com a criatividade e a adaptabilidade imprescindíveis às “circunstâncias de tempos, pessoas e lugares” (EE 18).
Para os tempos sombrios de agora que outrora denunciou Hannah Arendt, Inácio segue sendo atual e pertinente com suas três intuições daqueles anos em Barcelona: a importância de apostar na lucidez intelectual, o caminho oferecido pela espiritualidade encarnada dos Exercícios e a imprescindibilidade do apoio da comunidade feita carne nas amigas e amigos no Senhor. Aos fascismos e extremismos de cada dia, misturados com a desinformação e os discursos de ódio e arraigados em um hiperindividualismo dos algoritmos resta ao discípulo e discípula de Jesus a profundidade intelectual e espiritual partilhada com as amizades peregrinas do caminho.
Assim, a prece de Pedro Arrupe brotará nos corações buscadores de paz e sedentos de justiça: “ensina-nos teu ‘modo’ para que seja ‘nosso modo’ no dia de hoje, e possamos realizar o ideal de Inácio: ser teus companheiros, ‘alter Christus’, teus colaboradores na obra da redenção” (CG 34, Dec. 26, nº 29). E então o grito dos palestinos de Gaza, dos indígenas massacrados pelo agro e por todas as vítimas da violência será o grito de cada um, inaciano e inaciana desses tempos! Do contrário, a figura do Peregrino de Loyola terá sido transformada em uma grotesca caricatura distorcida e esvaziada. Viva Santo Inácio, o buscador de mente crítica e coração largo!
CONGREGAÇÃO GERAL 34. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
CONGREGAÇÃO GERAL 36. São Paulo: Edições Loyola, 2017.
DALMASES, Cândido de. Inácio de Loyola: Fundador da Companhia de Jesus. São Paulo: Edições Loyola, 1984.
LOYOLA, Inácio. Autobiografia. São Paulo: Edições Loyola, 1987.