17 Julho 2025
Moradores reclamam de ação truculenta. Decreto de Melo obriga prefeitura a encaminhar carrinhos recolhidos à EPTC, mas não há informação sobre o paradeiro dos veículos.
A reportagem é de Valentina Bressan, publicada por Matinal, 16-07-2025.
Uma “operação integrada de segurança” no Loteamento Santa Terezinha, conhecido como Vila dos Papeleiros, resultou na destruição de carrinhos usados por moradores para a coleta de resíduos na segunda-feira (14). Imagens e vídeos feitos pelos moradores do loteamento localizado na Voluntários da Pátria, em Porto Alegre, mostram retroescavadeiras recolhendo os carrinhos e colocando-os na caçamba de um caminhão do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).
O prefeito Sebastião Melo (MDB) assinou um decreto em 25 de junho que definiu que carrinhos de catadores autuados seriam enviados à EPTC. O decreto regulamenta os incisos da lei de 2014, que considera a triagem ou a catação de resíduos em logradouros públicos como uma infração. Os papeleiros autuados precisariam solicitar a devolução no prazo de 30 dias.
Ocorre que a EPTC disse não ter a ver com a operação e que não está com os veículos de tração humana (VTH), contrariando o que diz o decreto. “Falaram que era para combater tráfico de drogas na região e furtos de cabos. Mas já vieram jogando tudo fora, os carrinhos de trabalho, o material reciclado”, relata Ismael Luiz da Silva, dono de um ponto de reciclagem no bairro.
A prefeitura não respondeu às perguntas da Matinal. Enviou uma nota que não responde por que destruiu os carrinhos e para onde foram levados. Em um dos vídeos registrados, um morador diz que os carrinhos custam R$ 2,5 mil e que se sente “perseguido pelos órgãos públicos”. No início deste ano, a Matinal mostrou as tentativas da União Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Brasil (Unicatadores) em debater o projeto de Parceria Público Privada (PPP) da gestão de Melo, que pretende conceder a gestão do lixo por 35 anos a uma só empresa por meio de um contrato bilionário.
A ação deve seguir por 90 dias. Já foram expedidos 17 mandados de prisão no âmbito da operação, que prendeu 12 suspeitos na Vila dos Papeleiros. Pontos de reciclagem considerados irregulares também foram autuados. Um deles é o de Ismael.
Em texto no site, a prefeitura afirma que o foco era “qualificar a zeladoria da região”. “Começou às 6 ou 7 horas da manhã. Vieram com 400 policiais (cerca de 300, de acordo com a Polícia Civil), fiscais da prefeitura, mais de 100 funcionários do DMLU e, para tudo isso, um ou dois assistentes sociais”, comenta Ismael. “Nunca me deram ajuda para tentar regularizar meu ponto de reciclagem. A ajuda que dizem que dão é essa: infração para a gente correr atrás. Não deixam mais ninguém trabalhar na Vila dos Papeleiros”, desabafa.
Ismael conta que cerca de 10 carrinhos de trabalho foram retirados na ação da prefeitura. “Os carrinhos estavam parados na via pública, mas não estavam desorganizados”, diz. Alguns catadores têm o costume de retirar as rodas da ferramenta ao estacionar, para evitar furtos. “Eles acharam que estava abandonado, carregaram como se fosse sucata, lixo”, explica.
Hoje dono de um pequeno ferro-velho e morador da Vila dos Papeleiros, Ismael trabalhou como carrinheiro de 1998 a 2015. “Corri atrás para dar entrada nos papéis e regularizar meu ponto de reciclagem. Tenho uma ordem de operação, mas chega na hora e sempre acham algo para me impedir de tirar o alvará”, conta.
Ele também lamenta a votação do projeto de lei que veda o funcionamento de ferros-velhos em Porto Alegre. De autoria do vereador Ramiro Rosário (Novo), o projeto proíbe o funcionamento de pontos de comércio de sucatas metálicas, o que inclui materiais de cobre e alumínio, caso de latinhas de refrigerante. Nas redes sociais, o prefeito Sebastião Melo declarou apoio à proposta.
A Matinal recorreu à assessoria de diferentes secretarias da gestão municipal para entender a justificativa para retirada dos carrinhos dos trabalhadores de reciclagem. A EPTC, em nota, negou envolvimento com a ação e indicou que a responsabilidade da operação é da Secretaria de Segurança (SMSEG).
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) reiterou que as informações estariam concentradas na SMSEG e não confirmou se a pessoa retratada no vídeo acima de fato é um funcionário da pasta. Recebemos da SMSEG e do DMLU uma mesma nota. O texto afirma que “equipes da prefeitura de Porto Alegre realizaram o recolhimento de materiais inservíveis e estruturas abandonadas em via pública, como carrinhos sem rodas, no Loteamento Santa Terezinha, também conhecido como Vila dos Papeleiros, no 4º Distrito”.
A nota alega ainda que, “devido à presença de pessoas em situação de vulnerabilidade, o serviço é prestado com sensibilidade, sem a retirada de pertences ou materiais recicláveis dos catadores”. Mas, segundo Ismael, havia apenas dois assistentes sociais na operação, contra 300 policiais armados.
Sobre o destino dos carrinhos, a nota afirma que “os materiais recolhidos estão sendo encaminhados ao aterro sanitário e às unidades de triagem, conforme o tipo de resíduo”. O DMLU, em nota, se limitou a acrescentar que “só foram retirados materiais inservíveis e abandonados nas áreas públicas durante a operação. Recolhemos resíduos da via pública (como carrinhos abandonados e sem rodas)”.
Buscamos a Brigada Militar para entender por que a ação de segurança foi focada na Vila dos Papeleiros. Não recebemos retorno até o fechamento da reportagem.
Outro “material inservível”, de acordo com a prefeitura, é o carrinho-biblioteca, iniciativa do Museu de Resgates, projeto que reúne em um acervo fotografias, pinturas, câmeras antigas, livros e outros objetos encontrados pelos catadores de recicláveis. “É uma biblioteca itinerante, em cima de um carrinho de papeleiro adaptado. Ele para na praça da Vila, na escola Porto Alegre, na Praça Brigadeiro Sampaio. Estava estacionado aqui na frente e, como outros carrinhos, foi levado como sucata”, conta Antônio Carboneiro, idealizador do projeto.
Livros encontrados em meio aos resíduos descartados pela população da capital são recolhidos, guardados e cuidados. No carrinho-biblioteca, eram distribuídos pela cidade. “Nós não vendemos livros. A pessoa pega e leva para ler, com a promessa de retornar. Se ela não retornar, minha ideia é que o pessoal leia, e vá passando de pessoa em pessoa”, comenta Carboneiro. Ele enfrentou dois incêndios, em que perdeu todo o acervo de livros que coletava, mas resistiu e criou o carrinho-biblioteca.
Além de ter como parceiros o Museu de Arte Contemporânea, a Virada Sustentável, faculdades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e outras entidades, o Museu de Resgates é reconhecido pelo Ministério da Cultura brasileiro como um Ponto de Cultura.
Até agora, a prefeitura não deu informações precisas aos organizadores do museu e a outros catadores sobre a retirada dos carrinhos. “Nós queremos o carrinho de volta, no estado que ele vier. É uma obra, um documento e faz parte do acervo do museu”, defende o fotógrafo e artista Cristiano Sant’Anna, que integra a organização do museu. “Esse carinho sustentou meus filhos, foi ferramenta de trabalho por 25 anos e está há cinco como ferramenta da cultura”, diz Carboneiro.
Segundo Sant’Anna, houve diferentes orientações: a responsabilidade foi repassada para EPTC e para o DMLU. Também circula a informação de que os carrinhos estariam na Unidade de Triagem e Compostagem (UTC) da Lomba do Pinheiro. “O que também inviabilizaria a possibilidade das pessoas se deslocarem até lá. E ninguém confirma que o carrinho de fato pode ser retirado. Não temos nenhuma informação concreta”, adiciona.
Para o artista, a retirada dos carrinhos é só parte da estratégia de especulação imobiliária que pressiona a Vila dos Papeleiros. “Há formas e formas para fazer as coisas. Poderiam fazer autuação e dar tempo para as pessoas se regularizarem, ajudá-las”, afirma.
Para além de promover a iniciativa cultural, Antônio Carboneiro defende a atividade dos catadores. “Dizem ser lixo, mas não é. Reciclamos o material e damos o destino certo. Cada carrinheiro é um pequeno ambientalista. E em vez de nos ajudar, a prefeitura coloca pedras no nosso caminho. Tem gente trabalhando com esses carrinhos. Tudo é servível para nós. O que não é servível são eles. São 20 famílias que ficarão sem trabalho. Como essas pessoas vão viver daqui para frente?”, questiona. “O Quarto Distrito não aceita uma vila de pobres ao seu lado. Mas quem já está enraizado aqui, não vai sair”, diz.