05 Julho 2025
"A boa política é a que se esforça por concretizar experiências que promovam, com êxito, expectativas sociais de boas práticas de interação comunitária. A repressão, a postura bruta de desmantelamento dessas iniciativas, desqualifica o gestor e revela a pobreza de sua capacidade de exercitar a política."
O artigo é de José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), com co-autoria de Elma Oara, membra da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF) da Faculdade de Direito da UnB, publicado por Jornal Brasil Popular-DF, 02-07-2025.
Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro. Na sexta, dia 27 de junho, o GDF destruiu, com seus tratores, viaturas e corpo de bombeiros, a horta comunitária no Conjunto 4 da QR 127 de Samambaia. Acontece que essa ação não intimidou a comunidade, pelo contrário, a mobilizou.
A manhã do dia 27 de junho de 2025 não foi como as outras para os moradores da QR 127. Atividades cotidianas como a irrigação e a limpeza da horta comunitária, além da conversa entre os vizinhos, foram interrompidas pela chegada de tratores, viaturas – no plural – e corpo de bombeiros. O ato da chegada já irrompeu no ato de destruição. Não houve espera para diálogo, aviso ou pedido de retirada. A colheita de hortaliças, legumes e frutos que seria realizada no domingo (29) ficou apenas no plano ideológico. Não tinha gente, cachorro e paletes que parassem os tratores. Mas tinha policiais, bombeiros e auditores preparados para parar qualquer um que tentasse, ao menos, recolher os frutos do trabalho coletivo. Após 40 minutos de execução, o que era alimento, virou entulho misturado a terra vermelha.
Ainda sem a certeza de qual foi a motivação que ensejou o mandado de retirada da horta, a única justificativa dada pelos agentes do GDF é que está lastreada em uma denúncia anônima feita ao Ministério Público e ao DF Legal, através da ouvidoria. Frisa-se que ofícios feitos pela comunidade e pelo MTD, em parceria com a AJUP-RLF e com o Gabinete do Deputado Distrital Gabriel Magno, solicitaram a inclusão da liderança comunitária e do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos como interessados em processos administrativos relacionados a horta comunitária, pedidos esses que não foram atendidos nem pela administração distrital, nem pela administração de Samambaia. Nesse sentido, é evidente a omissão, falta de transparência e ausência de diálogo entre o governo e a comunidade.
A horta comunitária de Samambaia, localizada em terreno reconhecido como área pública de uso comum, conforme o GeoPortal, agregava diversas espécies, desde árvores nativas e frutíferas, plantas medicinais e aromáticas, além de variados legumes e verduras. Tinha chuchu, mandioca, alface, salsa, coentro, couve, pimentão, tomate, rúcula, batatas-doces, acelga, beterraba, berinjela, abóbora, espinafre, jiló, inhame, capim-santo, hortelã, citronela, funcho, babosa, erva baleeira, cominho, orégano, arruda, mastruz, guiné, manjericão, erva-cidreira, maracugina, alecrim, babosa, capim-limão, guaco, aroeira pimenteira, erva-doce, mamão, maracujá, banana, manga, cajá-mirim, acerola, seriguela, ameixa, goiaba, pitanga, café, amora, limão, mexerica, morango, baru, ipês, angicos, jerivá, gabiroba.
O terreno amplo, que antes era cerrado, foi se transformando em um ponto de convivência da comunidade que há mais de 30 anos utiliza essa área pública não apenas para o cultivo de alimentos, mas também para promover programas de educação e saúde, com mutirões, oficinas e atividades culturais. Foi em 2024 que a horta foi formalizada como comunitária, atendendo aos requisitos da Administração Regional para que pudesse permanecer. É nesse ambiente que os encontros acontecem e foi lá que a Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho fortaleceu sua interlocução com o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD-DF) e com a comunidade de Samambaia.
Com o título de “Cultivo de fome”, reportagem de Brasil de Fato (disponível aqui), noticia que o “Governo do DF destrói horta comunitária em Samambaia”, denunciando os moradores “ação truculenta”, que fez terra arrasada de uma iniciativa comunitária exemplar no Distrito Federal, de uma experiência que tem modelos nacionais e internacionais, de uso social do acesso à cidade.
A ação desarrazoada do GDF de que trata a notícia, expõe uma situação que se configura como uma das milhares de iniciativas de agricultura urbana que estão se espalhando pelo Brasil e também em muitas partes do mundo constituindo o que tem sido denominado e já conceituado como agricultura urbana. Um conceito “em constante disputa, assim como a política em construção. Mas, de acordo com os especialistas, é importante resgatar sua história. Há quase 30 anos que movimentos sociais, pesquisadores e entusiastas articulam e defendem a sua composição por três grandes pilares: o direito à cidade, a agroecologia e o direito humano à alimentação adequada. Ao longo dessa trajetória, essa temática percorreu vários caminhos, com acúmulo de debates multissetoriais, estando presente nas conferências das Cidades, de Saúde e de Segurança Alimentar, além de integrar documentos dos Encontros Nacionais de Agroecologia”.
Levando em conta práticas que já estão em formulação até no Congresso Nacional, o que é notável é a preocupação, enquanto disposição que configura a política comprometida com a construção de mediações que validem as disposições de gestores e que revelem a competência política de dirigentes que não se alienem da capacidade de articular ações e programas que respondam a objetivos sociais.
Para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), “a agricultura urbana e periurbana pode ser descrita como o cultivo de plantas e criação de animais dentro e nos arredores da cidade. Ela proporciona distintos tipos de cultivos (grãos, raízes, hortaliças, fungos e frutas), animais (aves, coelhos, cabras e peixes), além de plantas aromáticas, medicinais e ornamentais. Em 2014, o organismo publicou o relatório ‘Cultivando cidades mais verdes na América Latina e no Caribe’ sobre experiências exitosas na região. O documento foi lançado no Fórum Urbano Mundial, em Medellín, na Colômbia, e incluiu cidades como Havana, Cidade do México, Tegucigalpa, Manágua, Quito, Lima, El Alto e Rosário. Do Brasil, a cidade de Belo Horizonte foi a que mais se destacou. De acordo com a publicação ‘Cidades mais verdes’, também da FAO, 130 milhões de habitantes urbanos na África e 230 milhões na América Latina praticam a agricultura, sobretudo horticultura, para fornecer alimentos a suas famílias ou obter renda com a venda dos produtos”.
Com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a agricultura urbana ganhou mais destaque, sendo considerada uma prática relevante para a construção de cidades mais sustentáveis e resilientes. Os ODS abrangem uma variedade de temas, incluindo a segurança alimentar, a agricultura sustentável, a ação contra a mudança global do clima e a produção e consumo responsáveis, onde a AUP pode ter um papel fundamental para fomentar segurança alimentar e nutrição, erradicação da pobreza e geração de renda, criar oportunidades de emprego e geração de renda para moradores de áreas urbanas, especialmente para aqueles em situação de vulnerabilidade, sustentabilidade ambiental, saúde. Em suma, fortalece os objetivos do milênio perseguidos pelas Nações Unidas, principalmente porque promove práticas agrícolas mais sustentáveis, como a redução do uso de agrotóxicos, o uso eficiente de água e a reciclagem de resíduos orgânicos, contribuindo para a proteção do meio ambiente e para a saúde, pois atividades como hortas urbanas e jardins comunitários podem promover a saúde física e mental, além de melhorar a qualidade de vida nas cidades (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos. Organizadores: Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrvão Filho, Roberta Amanajás Monteiro e José Geraldo de Sousa Junior. FIAN Brasil/O Direito Achado na Rua. Brasília, 2020).
A boa política é a que se esforça por concretizar experiências que promovam, com êxito, expectativas sociais de boas práticas de interação comunitária. A repressão, a postura bruta de desmantelamento dessas iniciativas, desqualifica o gestor e revela a pobreza de sua capacidade de exercitar a política. São já notáveis os casos reconhecidos no Brasil e mundialmente, tidos como pioneiros em apresentar resultados concretos com a implementação da agricultura urbana. Na matéria citada, há o destaque para várias experiências em cidades onde “a agricultura urbana foi utilizada como instrumento de organização social com geração de trabalho e renda”, ou mesmo para incentivar políticas (de agricultura urbana) que venha “a garantir o abastecimento de alimentos em um momento de inchaço populacional”. Como diz Ailton Krenak, “plantar horta na cidade é fazer micropolítica”, é tornar possível, nas cidades, estabelecer “novas alianças” que humanizem e eduquem para a cidadania, que politizem as relações comunitárias, que civilizem a ação política, que qualifiquem o exercício da governança, com agentes de transformação, não como feitores, como capitães-de-mato, agentes de repressão.
Se na administração falta equilíbrio de sentido de mediação política para construir possibilidades equilibradas de gestão da cidade, certamente haverá sempre o Judiciário, mesmo em tempos de redução da dimensão sensível do jurídico. No passado, como anotou Anatole France, em festejada ficção (Prêmio Nobel de Literatura de 1921) ao analisar o julgamento do verdureiro – Crainquebille (L’Affaire Crainquebille) – ele bem lembrou com pena, a ausência do bom juiz Magnaud, que “…pèse les témoignages au poids des armes. Cela s’est vu dans l’affaire Crainquebille…". (“…pesa os testemunhos pelo peso das armas. Isso foi visto no caso Crainquebille.”), para exercer os atributos da política e da justiça “com humanidade e com equilíbrio”, tal como comentado aqui.
A Comunidade, com certeza terá, no limite, para restabelecer esse equilíbrio no que toca a compartilhar de modo equitativo o direito à cidade, não só nas áreas verdes, da Escandinávia brasiliense (Penínsulas Norte e Sul), que ostenta o maior IDH do mundo e a tolerância da edilidade, mas também ali onde atuam os construtores da cidade e os que com sua história conferem à Brasília, não só a condição de urbs e de civitas (como está no projeto, mas também de polis, que só pode ser obra do povo (ver Construtores de Brasília, de Nair Heloisa Bicalho de Sousa; Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Alexandre Bernardino Costa e José Geraldo de Sousa Junior, organizadores; e, sobretudo, Série O Direito Achado na Rua, vol 9: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, José Geraldo de Sousa Junior et al (orgs).
Aqui, pode acudir eventualmente um juiz sensível e consciente de que aplicar o ordenamento é alcançar o fim social a que a norma se destina (Lei de Introdução, art. 5º), com tem feito, em Brasília, o Juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF (disponível aqui).
Em sentença prolatada, em processo de reintegração/manutenção de posse (Processo número: 0003872-11.2015.8.07.0007) reconheceu ao social mobilizado a realização da “função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade” e negou a remoção forçada daqueles que faziam um uso solidário e não possessivo de espaços sujeitos a definição de destinação pelos órgãos públicos.
Valeu no debate a participação da Candanga Assessoria Popular e a AJUP Roberto Lyra Filho (Coletivo O Direito Achado na Rua), para uma conquista que muito se deveu à organização coletiva e a luta política pelo direito.
Com efeito, na Sentença, o Juiz qualifica a ocupação comunitária do espaço negligenciado pela administração, de certo modo abandonado e degradado, para acolher o argumento de “não ter havido invasão, já que o espaço estava abandonado há mais de dez anos, servindo apenas de especulação imobiliária, além de propiciar a propagação da dengue; menciona que os ocupantes são pessoas reivindicando direito constitucional à moradia, cultura e exercício profissional” e que buscam apenas “estabelecer função social ao local”.