04 Julho 2025
Episódios envolveriam violência sexual, assédio moral e exploração financeira.
A reportagem é de Gabi Coelho, publicada por Agência Pública, 03-07-2025.
Ao menos cinco pessoas acusam os líderes do Nzo Jindanji Kuna Nkosi, terreiro de candomblé, em Belo Horizonte (MG), de assédio moral, violências e até estupro. Os casos teriam acontecido a partir de 2020. Os relatos ouvidos pela Agência Pública incluem episódios de violência religiosa e psicológica, moral, sexual e exploração financeira. Algumas das vítimas formalizaram denúncias contra a instituição no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que instaurou um procedimento ainda em andamento.
As acusações recaem sobre Márcio Eustáquio Antunes de Souza, conhecido no terreiro como Tata Kamus’ende e seu filho Gabriel Lemos Antunes de Souza, o Tata Kilunji. Ambos são líderes no terreiro e no bloco Afoxé Bandarerê, tradicional no carnaval de Belo Horizonte.
Anna Sant’Ana, analista de comunicação de 25 anos, diz ter sido estuprada por Gabriel, seu então namorado, em 2019. Um boletim de ocorrência foi registrado por ela em abril de 2025 e medida protetiva foi concedida.
Anna disse à Pública que comunicou à mãe de santo do terreiro o que tinha acontecido. A matriarca e diretora litúrgica, Angela Maria Miguel, religiosamente conhecida como Nengua Monasanje, teria respondido: “Você precisa pensar bem se quer mesmo ficar aqui, porque o candomblé é o mundo e não se tira ninguém do mundo. Eu não tenho poder de tirar o Gabriel.”
Mesmo assim ela decidiu continuar frequentando o terreiro, por motivações religiosas. Durante os 21 dias de recolhimento da sua iniciação, em julho de 2021, conta que foi “obrigada a conviver diariamente com o meu agressor. Fui forçada a permanecer ao lado dele num momento que deveria ser o mais sagrado da minha vida foi outra violência”, diz.
A convivência com Gabriel trouxe danos emocionais e psicológicos, segundo ela. Durante uma reza de aniversário dele, Anna teve uma crise de ansiedade. “Entrei em desespero e comecei a chorar muito”. O pai de Gabriel, Márcio Eustáquio, teria dito a ela: “eu te prometo que você não vai sofrer mais nenhuma violência aqui, a partir de hoje você não precisa nem tomar benção dele”. Anna entendeu que ele reconhecia a gravidade da sua acusação, já que Gabriel era Xikaringoma, um sacerdote músico.
Ela esperava que as coisas melhorassem após sua “obrigação de um ano”, um rito anual de renovação, mas conviver com Gabriel a fazia sofrer. “Eu entendi que o que me adoecia era a convivência com ele e ver que eu continuaria sofrendo calada e ele sendo respeitado por todos, acobertado pelo pai”, disse.
Em dezembro de 2022, ela conta que se afastou do terreiro por adoecimento físico e psicológico. Disse que a mãe de santo Monasanje a cobrou para “cumprir sua obrigação de estar dentro do terreiro, senão seria punida pelo Santo”, mesmo que isso causasse desconforto ou crises.
Para Anna, a liderança do local foi “falha em diversos sentidos”. “Lá só tinha espaço para o meu estuprador, para mim e para o meu santo não. Não é que não se tira ninguém do mundo [religioso], a vítima pode ser tirada sim, o estuprador não.”
O caso dela está sendo investigado pela Polícia Civil de Minas Gerais, segundo nota do órgão, na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, com medida protetiva de urgência para a vítima requerida e outras diligências em andamento.
Gabriel não respondeu aos questionamentos da reportagem. O espaço segue aberto para sua manifestação. Márcio e a mãe de santo Nengua Monasanje negaram as acusações (leia as respostas deles abaixo).
Juçara*, publicitária de 30 anos, que prefere não ser identificada, ingressou no terreiro em 2018. Ela afirma que, durante o recolhimento da iniciação, vivenciou situações de controle e humilhação. “Teve um momento em que mandaram eu beber um líquido de um copo, de olhos fechados. Dois dias depois, ainda no roncó [espaço sagrado e reservado onde os iniciados permanecem isolados durante o ritual], o Márcio gritou: “Se fosse um pinto, você teria aberto a boca sem pestanejar!”, relata.
Márcio se define como Tata Kamus’ende, título litúrgico que indica uma função de apoio direto à liderança espiritual, sendo auxiliar da Nengua Monasanje e participando da fundação do terreiro. Sua função, portanto, é tanto espiritual quanto administrativa, sempre submetida à autoridade religiosa que preside a casa.
Juçara descreve um sistema de “meritocracia”, onde para participar era preciso “provar o nosso valor”. No cotidiano, diz que era repreendida com gritos e xingamentos, principalmente por parte de Márcio. “Quando eu errava ou tinha dúvida, o Márcio berrava: ‘você quer foder meu candomblé’. Depois ficava dias me tratando com hostilidade, me excluía de obrigações importantes e me expunha ao vexame.”
Ela também conta que foi publicamente humilhada por sua contribuição financeira. “Márcio começou a dizer que era um absurdo eu pagar o valor mínimo da mensalidade, na frente de todo mundo, com o intuito de me constranger”.
A tensão emocional teria levado a crises de ansiedade. “Tive que começar a tomar medicação para poder estar ali minimamente sã”. Juçara conta que também testemunhou um episódio de violência física em que Márcio agrediu um jovem bissexual em transe: “No recolhimento, o Márcio batia no erê [entidade espiritual infantil] dele com uma vareta, dizendo que ele tinha que ‘dançar que nem homem’. Ele saiu cheio de marcas, e a mãe de santo viu tudo e não disse nada”, disse.
Ela conta ainda que, em dezembro de 2022, Márcio a teria ameaçado. “Desse jeito o candomblé vai ficar pequeno pra gente, e você sabe que se alguém tiver que sair, esse alguém é você”, teria dito a ela. “Eu fiquei muito fragilizada emocionalmente. Me sentia perdida, sem ter um lugar para cuidar do meu espiritual. Com medo, paranoica, achando que iam fazer algo contra mim no sentido espiritual”, contou.
Ela também acusa a mãe de santo Nengua Monasanje de omissão e conivência. “Mesmo presenciando diversas situações de agressão verbal e humilhações, nunca tomou uma posição firme”, diz.
Dalila da Silva Rodrigues, produtora cultural de 36 anos, ex-companheira de Márcio e integrante do terreiro entre 2018 e 2022, afirma ter sofrido agressões físicas e psicológicas do líder religioso. Em abril de 2025, ela protocolou uma denúncia formal contra o ex-companheiro no MPMG, junto à 18ª Promotoria de Direitos Humanos. O procedimento segue em apuração.
À Pública, Dalila contou que trabalhou por anos sem remuneração em projetos de Márcio, como o Afoxé Bandarerê e a Liga das Escolas de Samba de Minas Gerais. “Nesta instituição [Liga das Escolas de Samba], recebi por um projeto que foi aprovado, mas os demais não”, afirmou. Ela atuava como redatora, produtora e gestora.
“Abandonei meu emprego CLT após insistência de Márcio, que me convenceu a abrir uma produtora com ele e que, desta forma, teria mais tempo livre para me dedicar ao candomblé, prometendo que meu destino era ser sucessora da matriarca do terreiro; por isso eu deveria me dedicar integralmente para aprender”, declarou. Além da produção cultural, ela acumulava tarefas domésticas e apoio a atendimentos espirituais.
Soraia*, servidora pública de 35 anos, que também não quis se identificar, frequentou o terreiro entre 2020 e 2023. Em denúncia ao MPMG, ela relatou abusos psicológicos, morais e omissão de socorro. Em entrevista à Pública, contou que suas roupas de santo, pagas com recursos próprios, foram retidas, sob a alegação de que “pertenciam à casa”. Ela tentou registrar um boletim de ocorrência, mas diz que foi “ridicularizada por uma delegada”, então levou a denúncia para o Ministério Público.
Ela diz que teria sofrido um acidente e machucado o pé enquanto fazia atividades no terreiro, mas foi ignorada pelos líderes: “Recebi o tratamento de silêncio e deboche do Márcio e de outros integrantes, não me deram nenhum suporte”. Ela relatou à reportagem que Márcio ainda a desestimulou a buscar atendimento médico, dizendo que sair por conta de um ferimento era “um descuido com a espiritualidade, só porque eu tinha machucado o dedinho’”.
Ainda no terreiro, durante seu recolhimento, em dezembro de 2022, ela conta que teria sido impedida de tomar sua medicação psiquiátrica pelas lideranças, que ofereceram “chás naturais e até balinhas tic-tac”. Ela sofreu uma convulsão no terreiro, que teria sido testemunhada por mais de 15 pessoas, incluindo Márcio e a mãe de santo, sem qualquer providência.
“Comecei a tomar remédio antidepressivo e até hoje não consegui parar. Minha fé não acabou, mas nunca mais consegui ir a nenhum outro terreiro — e não pretendo fazer parte de nenhuma outra casa”, diz Soraia. Para ela, os líderes “sabem de tudo e não fazem nada para esclarecer; pelo contrário, querem acobertar todo o mal feito e desacreditar as vítimas”.
Pedro*, ex-integrante que preferiu não se identificar, descreve o ambiente do terreiro como opressor, apesar do discurso inicial “acolhedor, com forte valorização da tradição e da herança ancestral”. “No início não era possível perceber com clareza a intensidade das práticas abusivas e das diversas formas de violência presentes no local, mas foram se tornando mais visíveis e recorrentes ao longo do tempo”.
Pedro diz que Márcio, Gabriel e a mãe de santo exerciam “constantes práticas de pressão psicológica, com o objetivo de impedir que os membros desenvolvessem qualquer atividade externa que não estivesse relacionada diretamente ao terreiro”. Essa pressão se manifestava, segundo Pedro, por “reiterados episódios de violência verbal e moral, especialmente direcionados às mulheres”. Ele relata que as lideranças masculinas frequentemente utilizavam termos depreciativos, referindo-se às mulheres como “porcas”, “desleixadas” e “indecentes”.
Ele relembra um episódio com uma integrante do terreiro que o marcou. “Ao ser xingada e humilhada de forma agressiva por Márcio, ela urinou nas próprias roupas devido à pressão”. Ele [Márcio] a chamava de burra, de porca, fazia questão de demonstrar publicamente a falta de conhecimento ‘técnico’ do candomblé”.
Após testemunhar esse e outros episódios de violência, ele decidiu deixar o terreiro.
Em resposta enviada à Agência Pública, a mãe de santo Nengua Monasanje negou qualquer irregularidade. Em nota, ela disse: “nossa casa é um ponto de acolhimento, formação espiritual e partilha. Foi fundada com dedicação, resistência e fé. Temos um compromisso inegociável com a ancestralidade e com a preservação de uma tradição milenar, forjada por um povo negro, periférico e historicamente marginalizado. Conflitos, incômodos ou afastamentos fazem parte da vida de qualquer comunidade. Mas, na Nzo Jindanji Kuna Nkos’i, todos os processos são conduzidos com base na escuta ativa, no diálogo constante e no respeito à liberdade de cada um. O processo iniciático em nossa casa é voluntário. Existem registros formais, inclusive assinados em cartório, nos quais cada pessoa declara, livremente, seu desejo de participar da tradição. O segredo não é ocultamento. É fundamento sagrado de transmissão e preservação. A casa permanece aberta ao diálogo, à escuta e à reparação quando necessária. Mas também permanece firme na defesa de sua história, de sua liturgia e da sua dignidade.”
Márcio também negou as acusações. Ele argumentou que “o candomblé é uma religião ancestral, com ritos milenares que não operam no improviso”, e que “durante os períodos de iniciação e recolhimento – que são profundamente importantes para o aprofundamento espiritual – existem sim preceitos que precisam ser seguidos”. No entanto, ele afirmou que esses preceitos são “amplamente conhecidos e de livre aceitação”, e que “jamais impôs qualquer regra que não estivesse fundamentada em nossa tradição ou que ferisse a integridade individual de quem quer que seja”.
Por e-mail, Márcio negou ter se beneficiado indevidamente de recursos de membros ou manipulado pessoas para obter vantagens. “Minha vida financeira é independente e pautada na lisura”, negando “qualquer dependência financeira minha em relação a quem quer que seja da comunidade religiosa”. Ele afirmou ainda que “o ambiente no terreiro é de respeito mútuo, acolhimento e aprendizado”.
Em relação ao afastamento das vítimas do terreiro, Márcio afirmou: “Não houve, à época, qualquer solicitação de escuta, mediação ou responsabilização por parte dos que hoje denunciam. Reafirmo meu compromisso com a verdade, a justiça e a integridade do candomblé. Sou um homem negro que usou sua posição para erguer, acolher e proteger.”
Em 23 de maio de 2025, o Ministério Público de Minas Gerais instaurou um inquérito que investiga possíveis atos de improbidade administrativa e crimes correlatos na execução do projeto cultural “Esquenta Avenida”, evento promovido pela Liga das Escolas de Samba de Minas Gerais, em parceria com o Governo de Minas e a Cemig. A apuração aponta indícios de desvio de recursos públicos, fraudes documentais, corrupção, lavagem de dinheiro e envolvimento de agentes públicos e privados. O caso permanece aberto.
Em fevereiro de 2025, um projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), apresentado pela deputada Beatriz Cerqueira (PT), propunha o “reconhecimento da Associação Sociocultural Nzo Jindanji Kuna Nkos’i como de relevante interesse cultural e patrimônio imaterial do Estado de Minas Gerais”. Vítimas e ex-membros reagiram, considerando a honraria inaceitável diante das denúncias.
A mobilização surtiu efeito: em 26 de fevereiro de 2025, após pressão popular e votação em plenário, a deputada retirou o projeto de lei.
Em 27 de fevereiro de 2025, o bloco Afoxé Bandarerê comunicou publicamente o desligamento de Gabriel de todas as suas atividades. Márcio, além de sua ligação com a Liga das Escolas de Samba e a Belotur, respondeu a processo judicial por suposta falsidade ideológica. A ação tramitou na 21ª Vara Cível de Belo Horizonte (2002-2013), sendo arquivada por “prescrição da pretensão punitiva retroativa”.
Isso significa que, mesmo com denúncia, o direito do Estado de punir o acusado por falsidade ideológica encerrou-se devido ao tempo decorrido entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória.
* Os nomes foram alterados para preservar a identidade real dos entrevistados.